Gonzalo Armijos Palácios (publicado originalmente no Jornal O Popular em 2015)
Leio hoje, sexta-feira 22, no Los Angeles Times: “No Brasil, a taxa de homicídios é alta, apesar da prosperidade crescente”. No The New York Times de ontem: “Brasil, farto com o crime, aceita sombriamente a violência policial”. Ao clicar na matéria aparece uma manchete que refere o “desespero” sobre as mortes causadas pela polícia. Na reportagem da ONG In SightCrime [sic], Organized Crime in America, “A Violência Policial Continua a Assolar o Brasil”, se faz referência a um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública segundo o qual, de 2009 a 2013, mais de 11 mil civis foram mortos pela polícia. Igualmente, o número de policiais mortos subiu de 264, em 2009, a 490, em 2013. Que o número de civis mortos seja de mais de 11 mil não nos deve causar mais repugnância que o dos 490 policias, só por este ser um número bem menor. O simples fato de pessoas inocentes serem mortas nos deve causar indignação, sejam estas civis ou policiais.
Em relatório do Human Rights Watch, do ano passado, se afirma que o Brasil continua enfrentando “sérios desafios nos direitos humanos, incluindo mortes ilegais causadas por policiais, uso da tortura, sobrepopulação prisional, e contínua impunidade por crimes cometidos durante o período da Ditadura Militar”.
Numa manchete do Bloomberg View sobre América Latina lemos: “Brasil tem uma Ferguson por dia”, fazendo alusão ao jovem assassinado nessa cidade pela polícia de Missouri. A matéria cita este dado do relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e compara dados dos dois países: “a violência das polícias estadual e federal [brasileiras] reclamou mais vidas em cinco anos (11.200) do que as de todas as polícias dos Estados Unidos, combinadas, NOS ÚLTIMOS TRINTA ANOS (11.090)”! (Meus grifos) O autor da matéria cita um sociólogo especializado em crime e violência policiais que faz uma comparação entre as reações do público brasileiro e estadunidense: “O que é diferente […] não é só o grau ao que se estende a violência policial, mas como as duas sociedades reagem: os Estados Unidos com protestos e tumultos, Brasil, com um dar-se de ombros coletivo”.
O fato é que há um estado de guerra, mais visível nas grandes cidades brasileiras, cujas causas são a miséria e o tráfico de drogas. A maior parte das vítimas dessa guerra é de inocentes, crianças, mulheres, trabalhadoras e trabalhadores, tanto civis como policiais. Mas as autoridades, os responsáveis por políticas públicas, os legisladores, maniatados por políticos de direita, ficam omissos e se contentam em ver como normal esse derramamento de sangue. Repito, de inocentes, pessoas honestas, tanto cidadãos comuns como policiais.
A diferença entre os dois países, por exemplo, está nisto: o Ministério da Justiça de lá (chamado de Departamento da Justiça) decidiu levar a cabo um inquérito sobre as práticas racistas da polícia de Ferguson, publicando há pouco um relatório condenatório. A prefeita de Baltimore, Stephanie Rawlings-Blake, por sua vez, solicitou ao mesmo Ministério da Justiça uma investigação exaustiva da polícia dessa cidade motivada pela morte de mais um negro que estava sob custódia policial. Ela pediu que fossem analisadas as práticas de uso de força excessiva, policiamento discriminatório, falsos arrestos, revistas ilegais e detenções.
A ONG In SightCrime faz também uma comparação entre Brasil e os Estados Unidos. Referindo-se aos números de 2012, em que no Brasil houve 1890 civis mortos pela polícia, no mesmo período, nos Estados Unidos, com uma população SESSENTA POR CENTO maior e com um número muito superior de armas em circulação, o número de civis mortos pela polícia foi de 410. Assim, apesar de a população dos Estados Unidos ser 60% maior, o número de civis mortos pela polícia, aqui no Brasil, é mais de quatro vezes superior.
Esses números explicam o resultado de uma pesquisa de Anistia Internacional publicado nesta semana. Os dados estão na página da BBC-Brasil sob a seguinte manchete: “Brasil lidera ranking de medo de tortura policial”. A pesquisa aponta que, ao serem questionados, 80% dos brasileiros “ainda teme por sua segurança ao serem detidos por autoridades”. É o maior índice dos 21 países pesquisados e quase o dobro da média mundial (44%). Por que será? Entre outras razões, é um resquício da impunidade pela anistia dos agentes da Ditadura Militar.
Agora, volto à situação dos negros, lá e cá, que é o que motivou os artigos que venho escrevendo desde agosto do ano passado. O Bloomberg View considera que não é surpresa que, aqui no Brasil, o número de negros, mortos pela polícia, seja o dobro que o dos brancos. Assim, por exemplo, apesar de que no estado de São Paulo os negros representem 34% da população, eles constituem 58% do número de mortos pela polícia. É isso que leva à conclusão de que no Brasil ocorre uma Ferguson por dia.
O propósito deste artigo, assim como do anterior e outros que eventualmente venha a escrever sobre o assunto, é chamar a atenção sobre uma situação intolerável de uma guerra não declarada na qual inocentes são diariamente assassinados, civis e policiais, crianças, mulheres, jovens e anciãos, trabalhadores e trabalhadoras — a maior parte desses civis sendo de negras, negros e pobres. Por isso, devemos ter muito cuidado com quem pensa que aquele que levanta sua voz para pôr o dedo numa mazela social está agindo contra a própria sociedade. Como quem escreveu isto: “aquele que fala mal da polícia acaba por falar mal da sociedade e consequentemente, de si mesmo”! Esse foi um dos “raciocínios” de um leitor que leu enviesadamente meu último artigo e repete aquela perversa e intolerável palavra de ordem dos ditadores: quem falava contra a Ditadura brasileira falava contra o Brasil. Daí, o triste, truculento, infame e prepotente: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”.
José Gonzalo Armijos Palacios - Possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás.