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Os ventos da mudança

ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Samuel Ngale, Augusto Hunguana e Filomeno Lopes


No Fédon, Platão diferencia o que ele chama de primeira navegação (que se realiza sob o impulso do vento da filosofia naturalista) da segunda navegação, feita pelo Homem (que, na antiga linguagem dos marinheiros, se realizava quando o vento cessava e, não funcionando as velas, se recorria aos remos). Antes de o Ser (Dasein) ter sido elevado (de Aristóteles a Heidegger) a estandarte da metafísica, Heráclito tinha identificado no devir – vir a ser, movimento (navegação) – o centro nevrálgico da reflexão filosófica: nada é permanente, excepto a mudança.

Os seres, como os eventos, estão em contínua mutação, sujeitos e à mercê das metamorfoses dos tempos. Quando os eventos se produzem unicamente pela força das marés, dos ventos ou de tsunamis, não têm relevância histórica. Quando o vento não sopra, o mar está quieto (mar chão) e até as folhas mais ligeiras não abanam: perde-se a noção do tempo. Só são históricos os eventos que resultam do liber arbitrium, que mobilizam vontades e determinações para se atingirem teleologias (finalidades) escolhidas e desejadas.

A chegada das caravelas às margens do Índico foram os maiores tsunamis que os povos locais conheceram. Elas foram o advento de 700 anos de a-historicidade e de intemporalidade (Filomeno Lopes); 700 anos em que choros, gritos, cânticos, súplicas, na busca de sentimentos humanos no rosto do outro Homem (E. Levinas), tiveram como única resposta trucidamentos, morticínios, dizimações, crucificações (…).

Temos que dar a mão à palmatória, não por termos dito “bela ku nyumbani” aos novos chegados (C.H. Kane), mas por termos esquecido o tempo que passou (Samora Machel) e por não termos ensinado aos nossos filhos, com insistência e tenacidade, que a chegada deles significou 500 anos de escravatura (dor, sofrimento, mortes), que a escravatura (que durou até 1885 no Brasil) foi imediatamente substituída (também em 1885) pela partilha de África, pelo colonialismo (ocupação, trabalhos forçados, animalização…). Somos culpados por não termos ensinado aos nossos filhos que, por ter ousado a liberdade, Toussaint Louverture foi capturado, deportado e deixado morrer de frio nos Alpes; que o grande (para os franceses) Napoleão mandou uma força expedicionária, comandada pelo seu cunhado General Charles Leclerc, para restabelecer a escravatura em Haiti, única Revolução de escravos – e ainda por cima negra – bem-sucedida na história.

Somos culpados por não termos ensinado nas nossas faculdades de Economia que a França manteve o Haiti na miséria (e hoje a soldo de gangues), obrigando-o a pagar, durante um século e meio, cerca de 21 bilhões de dólares americanos para indenizar os antigos colonos escravistas; somos culpados por não termos ensinado nos nossos cursos de História que, depois de terem lutado pela liberdade da França contra os nazis, os “tirailleurs” (sinónimo de africanos) senegaleses foram massacrados em Thiaroye (Senegal) pelas tropas francesas, proibidos da liberdade pela qual tinham lutado para os outros (Frantz Fanon); que, depois da guerra, o grande (para os franceses) De Gaule criou a maldita França-África, o pior sistema neocolonial de que a história tem memória: um sistema maléfico, uma máquina para produzir famintos, desigualdades, assimetrias, morticínios, que não tem nada a invejar aos métodos nazis.

Não ensinámos nas nossas faculdades de Filosofia e Ciência Política que o conceito político de moderado, quando usado no linguajar ocidental com referência aos africanos, designa os lacaios, capitães do mato (como diria Jorge Amado) os senghores, os houphouët-boignys, os bongos, mobutus, ao passo que extremistas é usado para aqueles (sékou tourés, nkrumahs, lumumbas, macheles, sankaras…) que buscaram a soberania e o bem-estar dos seus povos. Não é um acaso que todos estes tenham sido vítimas de golpes de Estado e/ou assassinatos. O ápice destes métodos nazistas, que a historiografia ocidental imputa unicamente a Hitler e ao nazismo, foi o esquartejamento e a dissolução do corpo de Patrice Lumumba em ácido.

Num discurso pronunciado no parlamento sul-africano em 1960, o então primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Harold Macmillan, invocou os ventos da mudança que então sopravam sobre o continente, mas envolveu-os nas suas veleidades neocoloniais de controlo e domínio, sob o manto da Guerra Fria. Caído o muro de Berlim e com ele a Guerra Fria, os vendavais que sopraram, vindos da superpotência vencedora, foram a impostura da globalização; a retórica (sofisma) de que a partir daí vivíamos numa povoação global (Marshall McLuhan) e, por isso, a subida em flecha da economia neoliberal traria prosperidade para todos os povos do mundo. Quid juris? O que aconteceu foi que alguns países aproveitaram para aumentar a própria riqueza e supremacia, algumas empresas do Norte se deslocaram para o Sul, onde passaram a pagar menos salários e impostos, mas isso não ajudou a diminuir a discrepância entre países ricos e países pobres, pelo contrário, acentuou-a.

Em seguida concentrámos a atenção do mundo sobre os idais e kenneths do mundo, resultantes das mudanças climáticas. O evangelho passou a ser que todos estávamos no mesmo barco periclitante de Noé e, por isso, tínhamos que remar juntos e na mesma direcção. Mas o presidente Bush pai colocou logo os pontos nos is: os americanos viajavam em iates e o nível de vida deles era inegociável. Que remassem os outros, que se multiplicassem florestas amazónicas no mundo e em África em particular, o que resultou na multiplicação de parques, na reintrodução de animais selvagens, na protecção da biodiversidade, ao ponto de se esquecer que a primeira das bio (isto é, vida) diversidades é a humana.

Depois veio a Covid-19 e com ele o slogan (moçambicano) “Cuida de ti e dos outros”. Parecia que os ventos do medo da morte levavam à tomada de consciência do quanto as vidas (de ricos e pobres) estavam intrinsecamente imbricadas, não somente em certos espaços geográficos, pessoas, grupos, espécies, mas entre todos os humanos e até entre todos os seres vivos. Paroles, paroles, paroles (Dalila), plus ça change, plus c’est la même chose (…). Como sempre, foi a um apartheid vacinológico que assistimos, com países ricos a comprarem e constituir stocks de vacinas de que não precisavam, mesmo que fosse só para impedir que os mais pobres tivessem acesso a elas.

Os EUA, que não tinham meios para vacinar os muitos pobres (negros, mendigos, sem-abrigo…) que acabaram por morrer nos estádios, mas, de repente, tem bilhões para alimentar a guerra na Ucrânia; mas isso tem a ver com o grande sentido de respeito que nutrem pelo Direito Internacional, como aliás tinham já demonstrado no Afeganistão, Síria, Líbia, Iraque etc. O acolhimento solidário feito aos ucranianos na Europa era a demonstração do seu espírito hospitaleiro, nos antípodas do Mediterrâneo, que, de mare nostrum dos romanos, se tornou em morte vostrum para os africanos. A presença da Rússia na Ucrânia é um colonialismo inaceitável em pleno século XXI, mas as bases americanas no mundo e a presença militar francesa no Sahel (apesar da hostilidade dos seus habitantes) é um acto que releva da velha filantropia do século XIX.

Ninguém que conheça o Ocidente pode ficar indiferente e sem admiração diante da sua esplêndida cultura: as suas catedrais góticas, os mozartes, beethovens, dantes (…), as suas invenções técnicas, as suas instituições. Só que essas instituições e leis levaram, intramuros, a um cada vez maior gozo de liberdades e democracia, porém, extramuros, desde os seus alvores – com o Direito Internacional Público da Escola de Salamanca com Grócio, Vitória, Soares – continuam a legitimar a ius ad bellum, uma postura (e impostura) selvagem cada vez mais sofisticada, com aviões de guerra, mísseis e, os últimos chegados, os drones e a inteligência artificial.

É porque o Ocidente trapaceia com os seus princípios (Césaire) morais, filosóficos, religiosos e jurídicos, é contra a sua selvajaria feita lei dos mais fortes (escravatura, colonialismo, França-África, sistema de dívidas) que em muitas partes do mundo e de maneiras diferentes os povos continuam a levantar-se, em nome daqueles princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que o Ocidente lhes ensinou.

O que é interessante nos BRICS não é substituir o Wagner – músico predilecto do Führer (ou daqueles que conosco se comportam como ele) – pelo Wagner das Kalashnikovs de Putin; não é a nova China, cuja (longa) marcha não é a de Mao Tse Tung, mas a Rota da Seda expansionista e predadora de Xi Jinping; não é o Brasil que, além de Lula, tem as Vales com os buracos em Tete; não é a Africa do Sul dos que Machel chamava bóeres negros, xenófobos, que queimam carros de moçambicanos e até fazem um muro, como os americanos (na fronteira com o México) e polacos (contra os refugiados sírios); ainda menos a Arábia Saudita, que, com os seus petrodólares, antes de arrebatar jogadores de futebol financia o terrorismo. O que é interessante nos BRICS é a busca de uma alternativa aos 700 anos de hegemonia desumana do Ocidente feita lei e imperativo de relações entre nações e povos. Não se trata só da desdolarização da economia-mundo, mas também da revisão do estatuto das instituições globais (Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial…), que desde o fim da Segunda Guerra regem, tutelam e garantem o status quo: as assimetrias das relações económicas e de poder entre as potências vencedoras da guerra e o resto do mundo.

A questão que se nos põe, como país e como região, é como participar neste esforço de mudança de paradigma, participar para prevenir que não seja uma ulterior partilha do mundo, desta vez entre os antigos ricos e os ricos emergentes. Aliás, se não estivermos atentos, se não anteciparmos a direcção dos ventos, os BRICS (potenciais novos-ricos) não vão representar simplesmente uma subida em flecha de uma nova força económica global, eles vão confrontar-se, como já acontece hoje no Sudão, Etiópia, Sahel (…), com as velhas forças de dominação (EUA e a Europa) em conflitos económicos e até bélicos, com os nossos países e continente a servirem de campo de batalha.

O outro evento histórico – de grande magnitude axiológica – em curso, que aliás é complementar ao primeiro, é o desvelar da imoralidade das condições impostas para as independências na África francófona (onde a França controla os recursos, as finanças, determina os poderes, legitima os regimes políticos em função dos seus interesses), a sua denúncia e a recusa de a perpetuar; o que nos permite medir (avaliar), no seu justo valor, o histórico “Não” de Sékou Touré – e a luta de Nkrumah pela unidade africana – e confirmar o juízo mordaz da Negritude (e os seus senghores de avatares) com servidão e vassalagem (Marcien Towa). É contra a piovra da normalização das desigualdade, contra a institucionalização de sistemas políticos e económicos de tutela e clientelismo – em detrimento dos direitos políticos e económicos dos povos – que se levantam os ventos de mudança no Sahel…

A estes ventos (e eventos) históricos, que decorrem nos nossos tempos de vida e existência, não podemos ficar alheios, sob o risco de perdermos (ulteriormente) o barco e nos alienarmos da história. Estes ventos dizem outra coisa, diferente da verbiagem neocolonial -do status quo– do retorno à ordem constitucional. Se ficarmos apáticos e indiferentes, não será por questões geográficas (a FRELIMO teve apoio da Argélia e coordenou a luta de libertação com o PAIGC), mas por incapacidade de compreender e apreender o sentido histórico e existencial em jogo.

Não pertencemos à CEDEAO, não usamos o Franco CFA, não depositamos as nossas reservas no Banco da França (apesar de este já estar presente, com razões obscuras e intenções estranhas, com e através da Total e dos Ruandeses), mas a nossa economia está também tutelada, os nossos recursos fazem ricos os países do Norte e ainda mais pobres os Moçambicanos, usamos um Metical Dólar-dependente; temos dívidas a pagar oriundas da colonização, da guerra de libertação, das guerras impostas pelo Ocidente, das falcatruas orquestradas por bancos (com a cumplicidade dos nossos burros e merdas), temos dívidas a pagar devido às condições de troca que o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial nos impõem.

O que está em jogo com os BRICS e no Sahel é o futuro das relações entre os impérios do Ocidente e nós, é o significado que queremos que tenham as nossas independências; é o nosso relacionamento de países independentes com os países que se acreditam donos e senhores do mundo. Não podemos, de maneira alguma, ficar alheios e apáticos aos ventos da história em curso. Temos o dever de pensar sobre como nos apropriarmos e fazer nossos esses movimentos de revolução e revolta que se engajam pelo mundo fora, para criarmos um Moçambique e uma África um pouco menos dependente das hegemonias mundiais, das imposições neoliberais e dos economicismos.

Os ventos continuam a soprar, eles são fortes (e oxalá irresistíveis!); como Danton durante a Revolução Francesa, temos que juntar a eles as nossas vozes e gritar: “L’audace, encore de l’audace, toujours de l’audace” (audácia, mais audácia, sempre audácia), no Senegal, na Costa do Marfim, no Benin e em todos os Moçambiques de África. Porém, quando os ventos varrem os símbolos da tirania, ninguém sabe o que virá a seguir. Quando os símbolos caem, todos os denunciam, mas todos querem preservar os seus próprios interesses. Os bidens e os macrons (que até convocou o Conselho de Guerra) estão fazendo tudo o que está ao seu alcance para enquadrar, limitar e redireccionar os ventos da mudança. A nós incumbe fazer o impossível para que os ventos da mudança sejam mais fortes, para que não seja fácil para eles enquadrá-los, limitá-los e redireccioná-los.

Amílcar Cabral já defendia que as lutas de libertação foram o programa fraco, o programa forte são as lutas pela existência que estamos ou (cobardemente) não estamos a enfrentar. Mais do que nunca, as palavras de ordem do primeiro pan-africanismo (Primeiro Congresso de 1900 em Londres) ecoam actualidade: unidade e resistência! África deve unir-se (Nkrumah) e desenvolver uma forma africana de ver o mundo, que tenha em conta os interesses africanos.

Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Samuel Ngale, Augusto Hunguana, Filomeno Lopes

Marcos Carvalho Lopes

3 Comentários

  1. Grande reflexão, precisamos realmente escancararmos a nossa visão para o além de forma a compreendermos a conjuntura actual k teve o seu início no passado longínquo mas com o mesmo objetivo mesmo actuando de forma diferente. Mto obrigado professor Ngoenha e os colaboradores

  2. Muito interessante, sábio e oportuno.
    Daqui um abraço ao Dr. Severino, com quem tive o privilégio de conviver por um curto tempo na UP, em Maputo

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