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A pessoa humana no contexto africano segundo Fabien Eboussi-Boulaga – II

Luís Kandjimbo |*

Eboussi-Boulaga é um dos pilares da Escola Camaronesa de Filosofia, uma das duas mais fortes escolas da África Central. Adensa malha da sua argumentação ensaística expõe uma idiossincrasia que contraria o sentido de postulados e fórmulas clássicas ocidentais.

O seu estilo contra-discursivo, as estruturas sintácticas e semânticas com que opera são corrosivos. Em última análise, isso é perceptível no modo como explora o seu principal pressuposto. Para o Muntu, a primeira epifania “não é o espanto nem a admiração, mas apenas a apatia causada pela derrota total”. À derrota subjaz uma oposição dialéctica entre sujeitos autónomos e seus dispositivos filosóficos. De um lado, está o Muntu, sujeito metafísico africano. No lado oposto está o sujeito ocidental que domina no momento com a filosofia que se apresenta como “alegoria do poder de vencedor”.

Eboussi-Boulaga na  Escola Camaronesa

É na Escola Camaronesa de Filosofia que encontramos a maior parte da geração de filósofos Africanos, críticos da etnofilosofia tempelseniana, no século XX. Essa geração é integrada pelos seguintes filósofos e professores de Filosofia:Meinrad Hebga (1928-2008), Marcien Towa (1931-2014), Basile-Juléat Fouda (1934-2020), Fabien Eboussi Boulaga(1934-2018) eEbénézer Njoh Mouellé (n.1938).Trata-se de uma geração em que se podem identificar cultores de diferentes correntes de pensamento, distinguindo-se especialmente pelas suas posições críticas contra a etnofilosofia. De acordo com uma proposta de avaliação historiográfica, G. O. Ozumba classifica esse escol de filósofos como “movimento híbrido da filosofia africana”, tendo em conta a prática de um discurso filosófico assente em hipóteses e hibridez de sistemas de pensamento ocidental e africano. Inscreve-se aí o filósofo que trazemos à conversa. É igualmente o caso, por exemplo, do ganense Kwasi Wiredu (1931-2022), dos nigerianos Olusegun Oladipo (n.1950) e Peter Bodunrin (1936-1997), do beninense Paulin Hountondji (n.1942), do democrata-congolês Ernest Wamba Dia Wamba (1942-2020).

Entre os críticos da etnofilosofia, há dois membros da Escola Camaronesa. Mas o nome de Fabien Eboussi-Boulaga ocupa um lugar cimeiro. É o que acontece na narrativa produzida em três obras de História da Filosofia Africana de que são autores, designadamente, Barry Hallen, D. A. Masolo e Grégoire Biyogo. Nem sempre se tem em atenção o facto de o momento genético da crítica sistemática contra a etnofilosofia ter iniciado em 1968 com o texto “Le Bantu Problématique”, O Bantu Problemático. Ignora-se esse acontecimento que assinala a emergência de um outro discurso  ontológico cujo sujeito é o Muntu em crise. O primeiro artigo de Paulin Hountondji sobre essa matéria, escrito em 1969, foi publicado na revista “Diogène” no primeiro trimestre de 1970. Portanto, importa proceder à correcção desse equívoco historiográfico que remete ao esquecimento o texto de Eboussi-Boulaga, através do qual se evidenciam os textos de Paulin Houndondji e Marcien Towa. Apesar de a palestra “Le décollage conceptuel: conditions d’une philosophie bantoue”,Descolagem Conceptual: Condição de uma Filosofia Bantu proferida em Kinshasa pelo filósofo belga, Franz Crahay (1923-1988), ter sido publicada em 1965, não assinalou qualquer esforço sistemático do autor.

Etnofilosofia e seus críticos

Enquanto filão discursivo da filosofia africana, a etnofilosofia adquiriu o seu estatuto com obras de autores de origem europeia e africana.Esuscitou contra-discursos, através das posições críticas de autores de escolas filosóficas dos países de língua francesa e língua inglesa da África Central e Ocidental, principalmente, de Vincent Mulago (1924-2012)Fabian Eboussi-Boulaga, Marcien Towa e Paulin Hountondji.

Em 1951, o filósofo ruandêsAlexis Kagame (1912-1981), publicou a sua tese de doutoramento em Filosofia, apresentada na Universidade Gregoriana de Roma: “A Filosofia Bantu-Ruandesa do Ser”. Em 1958, o nigeriano Adebayo Adesanya, publicou um trabalho relevante, “Yoruba Metaphysical Thinking”, O Pensamento Metafísico Yoruba. Na década seguinte, intensificou-se o “grande debate”.Importa mencionar outros autores. É o caso do teólogo e filósofo democrata-congolês,François-Marie Lufuluabo(1926-1998), o teólogo e filósofo queniano John Mbiti (1931-2019) e o teólogo e filósofo camaronês Jean-Calvin Bahoken, o filósofo senegalês Alassane N’daw (1922-2013) e o filósofo senagalês Assane Sylla (1928-2012). Em seguida, surgem os críticos. Os livros de Fabien Eboussi-Boulaga, “La Crise do Muntu” e Paulin Hountondji foram ambos publicados em 1977.

Ironias e alegorias contra-discursivas

Em”La Crise do Muntu”,Eboussi-Boulaga assume claramente um compromisso que consiste em descrever a crise e passar à crítica da etnofilosofia, termo cuja paternidade chegou a ser erradamente atribuída a Paulin Hountondji.O neologismo foi introduzido no léxico africano pela mão de Kwame Nkrumah. Enquanto objecto de crítica, a etnofilosofia, que tem a sua circunstancial manifestação na obra de Placide Tempels, caracteriza-se pelo seu método fundado na recuperação de materiais da etnologia ortodoxa. Para Eboussi-Boulaga, tal método permite manipular o acervo constituído por  categorias da linguagem, mitos, provérbios e cosmogonias, transformando-os em  formas de filosofia. A crítica que se exercita é uma “crítica mais clássica, apontando os seus limites e as consequências nefastas” da etnofilosofia. Operando com ironia e alegorias, o filósofo camaronês entende que a etnofilosofia é súplica ou apologética, servindo-se da retórica da verossimilhança, tendo em vista a persuasão, o apelo à benevolência do “mestre”, isto é, o sujeito europeu, para obtenção de reconhecimento. Na década de 50, a filosofia é “um atributo do poder”, constituindo uma forma de conhecimento e dispositivo instrumental de dominação, mas igualmente de legitimação. Por essa razão, revelava-se necessário desmistificar e denunciar o seu carácter tautológico. No contexto colonial em que surge o objecto do libelo crítico de Eboussi-Boulaga, a filosofia é um atributo do poder. Neste sentido, é redundante a afirmação segundo a qual a filosofia é ocidental. Perante tal situação, Eboussi-Boulaga considera que a crítica correspondia a um método para a “auto-recuperação”. O que implicava convocar cinco elementos externos, designadamente, a particularidade, o corpo, a cor, o histórico e o acidental. Admitia assim a possibilidade de recurso útil à tradição, longe do espectro etnológico ocidental, através de “uma utopia crítica e mobilizadora”, tendo no horizonte a “emancipação do Muntu alienado”. Conquistar a liberdade significava desenvolver-se através do falar, do ser, do fazer e do sentir. Estava implícita uma dialética da autenticidade que exigia”rigor de pensamento para lá de slogans e abusos da época”.

Posição do Muntu

Do ponto de vista filosófico, Eboussi-Boulaga reitera o seu lapidar pensamento acerca do  Muntu. É o homem inteligente “que se retirou do mundo para compreendê-lo”. Por outras palavras, é preciso morrer para si mesmo, para renascer como Outro, em pensamento puro, atemporal e incolor, vindo de lugar nenhum e de todos os lugares. O Muntu encontra-se livre de qualquer lealdade. Por isso, pode ocupar o lugar central donde tudo parte, inclusivamente a institucionalização da filosofia. Emergem alternativas de construção discursiva. Num impiedoso diagnóstico dos obstáculos, Eboussi-Boulaga refere uma “filosofia do subdesenvolvimento” que é também expressão do “subdesenvolvimento da filosofia”. Sobre ela pairam os perigos do mimetismo e do recurso a “exemplos africanos apropriados”, parecendo ser necessário socorrer-se de muletas para “chegar ao terreno das realidades africanas”. Nisto consiste aquilo a que Eboussi-Boulaga designa por “perigo de uma ignorância confortável e preguiçosa…”.

Obstáculos

A institucionalização e o ensino da filosofia são tópicos abordados por Eboussi-Boulaga, na sua problematização da “crise do Muntu”. Ao interrogar-se acerca das fontes e dos lugares de que emana a “filosofia”, nega que a etnia seja útil para essa localização.  É na “Escola” que se concentra o monopólio  da filosofia, responde peremptoriamente.  Assim, ao serem confrontadas com a vocação e o monopólio da “Escola”,escreve Eboussi-Boulaga, as”etnofilosofias” caracterizavam-se pelo seu esgotamento, devido ao estatuto conferido à filosofia, enquanto disciplina rigorosa e obrigatória do sistema de ensino colonial.

No entender de Eboussi-Boulaga, o ensino  de filosofia é “uma das principais instâncias de legitimação”e de “exercício efectivo de poder e dominação”. A fonte de autoridade da Escola é a mesma à qual se vincula a filosofia como disciplina do programa. Há um grupo dominante que delega o poder de ensinar. Por conseguinte, o professor de filosofia é um agente administrativo. Eboussi-Boulaga sublinha a seguinte ideia: “Não existe outro espaço livre onde alguém possa praticar filosofia, autorizando-se com uma ciência adquirida por si mesmo, adquirindo autoridade através do exercício da filosofia, dedicando-se a ela, à maneira dos sofistas, e confiando em seu próprio génio”.

A tematização dos obstáculos institucionais suscitou igualmente o interesse de Marcien Towa que identifica alguns problemas específicos, ao nível do ensino da filosofia africana. Por exemplo: a questão das inscrições de estudantes e os obstáculos metodológicos. Quanto ao primeiro, conclui que a África moderna “dificilmente produzirá grandes filósofos enquanto não houver um número significativo de africanos que se dediquem aos estudos e à reflexão filosófica”.Quanto ao segundo problema, concorda parcialmente com Paulin Hountondji, quando este fala dos cultores da etnofilosofia  como autores que se limitam a apresentar a filosofia da África tradicional, veiculando as suas  próprias concepções. Marcien Towa afasta-se de Paulin Hountondji, quando ele nega qualquer possibilidade de existir filosofia na cultura tradicional, afirmando que “a filosofia africana nada mais é do que o trabalho dos etnofilósofos”. Marcien Towa defende a perspectiva segundo a qual  a África tradicional produziu textos filosóficos. Por outro lado, sustenta que”a chamada filosofia africana dos etnofilósofos não pertence propriamente à filosofia, ao invés, tem conexões com a teologia”. Observa que a “lista dos etnofilósofos coincide com a lista dos teólogos africanos”. Em conclusão, derivam daí as “fragilidades metodológicas da etnofilosofia do ponto de vista filosófico. Além disso, acrescenta Marcien Towa, a principal característica da etnofilosofia reside no alargamento dos limites do conceito de filosofia até  às linhas do conceito de cultura.

Teologia filosófica

A teologia filosófica apresenta-se como um domínio interdisciplinar. Os universos conceptuais da teologia tornam-se objectos de análise da filosofia.Ora, em que medida é que as conexões com a teologia se traduzem em fragilidades metodológicas da etnofilosofia do ponto de vista filosófico? Esta é uma pergunta que faz sentido formular, se quisermos compreender essa original textura argumentativa de Eboussi-Boulaga, explorando a sua teologia filosófica. Para tal, há que ler os textos que escreveu, abordando temas relativos a igrejas africanas, identidades dos cristãos Africanos, conceitos de Deus em África e monoteísmo.Uma leitura atenta da obra de Eboussi-Boulaga que explore essa vertente permite compreender o desenvolvimento das tendências em que se analisa a Filosofia Africana da Religião e os seus diálogos com as diferentes teologias, além do papel por ele desempenhado na teologia africana de libertação, ao lado de outros teólogos da Escola de Yaoundé, de que fazem parte Engelbert Mveng (1930-1995), Jean Marc-Ela (1936-2008) e Meinrad Hegba. Pessoalmente, tenho particular interesse em identificaras influências que os mestres jesuítas da Nova Teologia europeia, tais comoYves Congar (1904-1995), Henri de Lubac (1896-1991), Karl Barth (1886–1968) eHans Urs von Balthasar (1906-1988)podem ter tido na edificação do pensamento de Eboussi-Boulaga.

Conclusão

Ao chegar aqui é possível perceber que a argumentação crítica de Eboussi-Boulaga se centra numa legítima pretensão do Muntu, a de possuir filosofias e ontologias. A este propósito, afirma que  a ontologia suscita a interiorização do estado de  esgotamento de si, lá onde o Muntu foi reduzido à mais simples expressão de si, ao conceito mais pobre que transmite o sentido denada, ausência de existência.Eboussi-Boulaga condensa todo esse movimento em três ideias.

Em primeiro lugar, o discurso do Muntu constitui-se,inicialmente,em si mesmo. A identidade representa o núcleo da atitude e da consciência partilhada pelos Africanos.

Em  segundo lugar, o discurso do Muntu, para  si mesmo,dota-se de forma e conteúdo, através das linguagens da sua história, revelando-se assim uma razão histórica.

Em terceiro lugar, o discurso do Muntu adquire uma forma perante Outros. Isto quer dizer que é universal e inteligível.O Muntu está situado, ao abrigo das coordenadas do tempo e do espaço. Não vive isolado. Por isso, não tem necessidade de renunciar a si mesmo para ser reconhecido pelos  Outros. A relação que se estabelece entre o universo do Muntu e o mundo, é expressão de um mundo plural.

A afirmação do Muntu pressupõe o ser, o ter e o fazer. Neste sentido,Eboussi-Boulaga entende que para ser, por si e para si, o Muntu realiza  uma articulação do ter e do fazer, eliminando a violência e a arbitrariedade. Inclui-se aí a filosofia cuja prática implica ter e fazer. Consequentemente, deixa perceber a sua existência. Mas não é suficiente declarar apenas que se faz filosofia. Pertencer a um lugar na “tradição filosófica”, deve ser o resultado de um questionar do sentido sobre a razão da sua entrada na cena filosófica. Portanto,no que diz respeito à filosofia, Eboussi-Boulaga conclui: a) A Filosofia Africana não existe fechada nas línguas africanas, reivindicando um potencial para ser veículo  da existência dos Africanos; b) Não existe língua que impeça osAfricanos de falar a verdade, pois  as línguas são neutras, em relação à verdade. Deste modo, a crise do Muntu de que fala Eboussi-Boulaga, revela-se como o tempo da fala, da historicidade e da génese. Com ela  se revitalizam osconceitos e se resolvem diversas questões, tornando-se possível alcançar a lucidez, a autodeterminação e a autenticidade.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 03/09/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-pessoa-humana-no-contexto-africano-segundo-fabien-eboussi-boulaga-ii/

Marcos Carvalho Lopes

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