Marcos Carvalho Lopes
Se alguém –diz-nos Sócrates— pudesse estar presente quando qualquer um dos oradores públicos estivesse tratando desses mesmos temas, poder-se-ia ouvir discursos similares aos de Péricles ou algum outro orador capaz: mas supõe que se coloque uma questão para qualquer um deles – eles são como livros, incapazes seja de responder ou de colocar uma questão própria; se se questiona mesmo um pequeno ponto do que foi dito, assim como objetos de bronze vibram por um longo tempo depois que eles foram batidos e prolongam o sinal até que se ponha a mão sobre eles, esses oradores também, ao serem indagados sobre uma pequena questão, estendem sua fala por um longo período. (Platão, Protágoras, 329 a)
O pensamento era o diálogo da alma com ela mesma, disse Sócrates em algum escrito de Platão. Mas os textos de Platão não eram escritos para serem lidos sem voz, encenavam diálogos para a escuta comum. É no diálogo que se desenvolvia o jogo de pedir e dar razões, o que se chamava de elenchus, que buscava uma coerência maior entre as afirmações de uma pessoa. Este diálogo transformador seria a filosofia para Sócrates. Não por acaso, Derrida descreve a Metafísica como o desejo interminável de se ouvir a si mesmo. Nesse desejo a voz se perdeu e a palavra perdeu seu tom, a leitura tornou-se silenciosa, e não havia mais dois logos em disputa (diálogo), mas uma pressuposição de convergência em um discurso único.
Essa forma de pensamento como escrita matemática, mecanismo de razão, foi desafiada pelo gênero ensaio, no qual se busca o jeito de escrever, colocando-se em jogo e encenando a própria procura de caminho, o tatear e o perigo de se perder no meio do vale, chegando a conclusões incertas, errantes, experimentais. Ensaiar, buscar uma voz.
O desenvolvimento acelerado da técnica e de seus aparatos, trouxe consigo novos desafios: o rádio permitiu a articulação de uma voz onipresente, artefato em que a interiorização do sentido dispensaria a distância da leitura e promoveria o acesso direto ao que se impõe como voz total, sem pensamento ou distância. Os ouvintes totais resgatam o pesadelo da imitação que degenera, da multidão em que se perde a responsabilidade: nos dissolvemos no coro do comum. Esse pesadelo da técnica, em seus totalitarismos, inicialmente gerou grandes conflitos, mas depois se apazigua também como lugar comum: colonizando o cotidiano, impondo estridentemente a necessidade de construção de si mesmo pelo consumo. Mesmo a escolha de denunciar a imposição de escolhas, tomaram a forma de novas técnicas e não de livros sagrados.
Não por acaso, as revoluções contra o colonialismo se valeram das rádios pirata, que colocavam em cena vozes proibidas, vozes destoantes e desafinadas, por vezes em línguas reprimidas pela cultura oficial. Claro que nestes casos as técnicas de transmissão eram o menos importante, o ruído e a interferência, a precariedade precisa ser tratada com alguma indulgência, quando o que se quer é desafiar os padrões e trazer novas vozes, tons e palavras.
Na tecnologia do podcast as rádios se misturaram ao telefone, com a possibilidade de seleção ativa por parte do ouvinte e abertura para a produção independente: programas que não tinham patrocinadores, limite de tempo, formato definido etc. O ouvinte poderia escolher com quem pensar, quem receber em sua casa, quando e em que velocidade (2x nessa chatice necessária…).
O podcast filosofia pop surgiu e continua sendo um ensaio de filosofia, uma tentativa de tatear e buscar coerência para nossos discursos, de aprender, questionar e propor novas questões. Neste livro reunimos trechos de transcrições de alguns episódios do primeiro ano do podcast filosofia pop. A princípio, as conversas com Murilo Ferraz eram ensaios muito errantes e cheios de reticências. Nessa precariedade havia uma qualidade, no jogo de se expor, pedindo e dando razões, procurando um formato, mas aceitando também a carência, a incompletude, mas buscando uma articulação. Aos poucos essa busca criou uma comunidade e ganhou forma com a proposição de temas, pessoas convidadas para falar de suas especialides, escolhas por buscar assuntos e vozes que não ocupam o centro do palco acadêmico etc. Nestas transcrições do primeiro ano do podcast temos os seus momentos fundamentais, a construção do caminho que ainda hoje seguimos, depois de 5 anos, com mais de 75 episódios e cerca de 1,5 milhões de downloads.
Mais do que quaisquer números ou estatísticas, formamos com as pessoas convidadas, as que escutam o programa, uma comunidade, uma gente que tenta pensar a filosofia em seu sentido de diálogo da alma com ela mesma. É que não existe mais a alma como uma entidade compartilhada, uma fagulha de sentido comum: somos a linguagem e desejo de linguagem, nos descrevemos e redescrevemos, encenamos, atuamos e tentamos ser narradores de nossa autocriação. Compartilhamos essa busca, não de uma verdade final e definitiva, mas de alimentar a dúvida, o pensamento, que gera novas crenças e hábitos: diálogos de filosofia.
Marcos Carvalho Lopes, 01 de Julho de 2019