Como Osamu Tezuka usou o conflito na Palestina como epílogo para pensar os erros nacionalistas da Segunda Guerra
Arnaldo Antunes está certo em lembrar que “todo mundo teve infância”, mesmo as pessoas mais admiráveis ou execráveis. Diante de guerras, as imagens de violência contra crianças mostram o terror e o mal de um modo que desafia a capacidade de imaginação e empatia. Quais as lealdades que devemos manter se queremos ser justor? Com quem podemos/devemos nos identificar para agir com justiça? Osamu Tezuka ilustra a dimensão trágica deste dilema, já que usualmente constrói suas narrativas em torno de no mínimo dois personagens principais que encarnam visões de mundo e valores diferentes. No começo da estória os dois se conhecem pessoalmente como amigos ou são relativamente próximos. No entanto, na medida em que crescem e tornam-se mais velhos, seu relacionamento inevitavelmente muda. Quando novamente se encontram com velhos amigos estes têm perspectivas religiosas ou políticas diferentes, o que gera complicações; entram em conflito e tem que decidir se brigam ou não um com o outro.Tezuka mostra como a mudança de contexto histórico forçam os personagens também a mudar.
É importante lembrar que Osamu Tezuka, apesar de formado, deixou a medicina convencido de que s seus mangás poderiam funcionar como “exercícios espirituais”, como uma espécie de “medicina da alma”, qua alcançaria resultados diferentes daqueles da medicina tradicional, sustamente por se aproximar delas a partir da abertura empática que narrativas em mangá proporcionam.
Adolf de Osamu Tezuka é uma narrativa que pode ser útil para questionar os pressupostos essencialistas que ainda hoje fazem parte da concepção que temos de Justiça. Geralmente estas concepções se fundam em uma ideia do que é o homem em si mesmo, deduzindo, a partir desta essência – a razão – quais são as formas corretas de agir em qualquer contexto. Esta simetria geralmente se vale de uma confusão entre a percepção da justiça como um fator de sociabilidade e a justiça como uma virtude individual.
A série Adolf nitsugo (Recado para Adolf) foi publicada originalmente entre 6 de janeiro de 1983 e 30 de maio de 1985 como uma série numa revista semanal de literatura chamada ShukanBunshun. Para adequar-se ao formato limitado de 10 páginas semanais muito de seu material precisou ser cortado e o roteiro que Tezuka pretendia desenvolver foi prejudicado. Esta dificuldade em parte foi amenizada com uma revisão e ampliação para a publicação em 1985 da série em 4 volumes independentes com capa dura. Desde o principio projeto editorial tinha “pretensões literárias”: os editores queriam que Tezuka desenvolvesse um drama histórico sério para adultos que seguiam uma revista literária. Como consequência deste desafio e do sucesso na realização da obra, quando Adolf ganhou uma edição independente tornou-se o primeiro mangá japonês a ser vendido na seção de literatura das livrarias (WHALEY, 2012: p. 45). Por conta de suas diversas traduções pelo mundo e por ter recebido o prestigioso premio Kodansha (em 1986 )no Japão, Adolf é considerado o mais famoso mangá de Osamu Tezuka.(FEUILLASSIER, 2010: p.16) .
A história parte da infância de duas crianças chamadas Adolf: o judeu-alemão Adolf Camil e o alemão (de mãe japonesa) Adolf Kauffman. Ambos vivem no Japão e são amigos de infância, que aos poucos vão se seprando e entrando em confronto na medida em que o “outro Adolf” da história ganha espaço: Adolf Hitler. Não cabe aqui entrar nos detalhes da narrativa, mas Adolf Kauffman se torna um violento soldado nazista que mata o pai de Adolf Camil de forma gratuita, no contexto da solução final. Tezuka trabalha com a ideia de uma ascendência judaica de Hitler, segredo que moboliza parte da trama, e que, ao ser revelado, faz Kauffman ter uma reação histérica. Na última parte da narrativa, como um epílogo, vemos a construção do Estado de Israel, em que “o judeus lutavam para conquistar sua terra. Os árabes lutavam para expulsar os invasores”. Neste contexto, temos Adolf Kauffman lutando ao lado da resistência dos palestinos, enquanto Adolf Camil, faz parte do exército de Israel e abraça suas práticas terroristas. Os dois Adolfs tem um último contronto, o judeu mata o alemão, mas, podemos considerar que, de algum modo, ambos se tormam o mesmo. A narrativa torna-se um recado para todos os Adolf do futuro.
Tezuka explicando seu livro disse que: “O tema não é simplesmente a guerra. Eu diria que é a justiça. A ideia de nação sempre traz consigo uma boa dose de egoísmo,que normalmente é chamada de nacionalismo. Cada país possui sua própria política. Nunca podemos afirmar que um dos dos lados esteja com a razão em uma guerra ou disputa qualquer entre países. É sempre um atrito étnico e um confronto entre a noção de justiça de ambas as partes, o que torna a matemática ainda mais complicada” . E finaliza falando da guerra: “A guerra – esse ato que o ser humano vem condenando de tempos em tempos como o único pecado da humanidade – na verdade é apenas a história se repetindo em forma de invasão, não invasão, opressão, não opressão.Portanto, nessa obra, tentei captar a guerra de forma metafísica”.
Referências:
•FEUILLASSIER, Rémi Luc. REMEMBERING WORLD WAR II AND NARRATING THE NATION: STUDY OF TEZUKA OSAMU’S WAR MANGA.
•WHALEY, Benjamin Evan.DRAWING THE SELF: RACE AND IDENTITY IN THE MANGA OF TEZUKA OSAMU
•BAN, TOSHIO. Osamu Tezuka: uma biografia manga. 4 volumes Toshio Ban & Tezuka Productions; [tradução Adriana Sada] . – São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.
•TEZUKA, O. Adolf. São Paulo: Editora Conrad, 2006. (volumes 1,2,3,4 e 5).