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EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E ONTOLOGIA SOCIAL NA LITERATURA-IV

MUNDOS POSSÍVEIS, VIDAS, PESSOAS E PERSONAGENS

Luís Kandjimbo*

A leitura e análise das histórias ficcionais do sistema literário oral angolano permitem concluir que, tal como já vimos, as narrativas contêm elementos do sobrenatural. Mas a experiência estética que essa leitura suscita dá lugar à caracterização das personagens ficcionais, por exemplo, a identidade do herói. Por outro lado, a interpretação do estatuto e existência de um herói dos Misoso e Jisabhu da literatura oral em língua Kimbundu como Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, representa um exercício de descodificação de dilemas morais que, no mundo possível em que vive, são  veiculados através de enigmas de natureza cognitiva. Na presente conversa, interessa-nos a compreensão dos universos semânticos e as relações de contiguidade que  esse herói ficcional propicia. Para tal a primeira porta de entrada é a semântica do seu nome próprio. Por essa razão, justifica-se a demanda de respostas para as seguintes questões. Este nome próprio tem sentido? Qual é a descrição que corresponde ao nome de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala?

Ficcionalidade literária oral

Estamos em presença de um fenómeno  da ficcionalidade literária que solicita diferentes abordagens. Em Angola, a guinada literária, a que nos referimos, deu uma oportunidade para a inscrição dos estudos literários e da ficção literária, em especial, no campo da antropologia e da filosofia. Apesar disso continuam a ser áreas marginais do saber, sem qualquer consagração disciplinar e académica. Durante a segunda metade do século XX, registaram-se incipientes manifestações que, lamentavelmente, se circunscreviam ao nível da poesia e da narrativa em língua portuguesa, bem como da crítica literária, da antropologia cultural e da antropologia visual. Os escritores desempenharam aí um papel decisivo.

A renovação dos estudos da literatura oral, no período que se seguiu à independência, teve início no quadro institucional do Departamento de Folclore da Secretaria de Estado da Cultura, durante a década de 80  do século XX. Data desse período, o surgimento de uma geração de investigadores à qual pertence o antropólogo Virgílio Coelho. Sobre o tópico da nossa conversa, publicou duas versões de um artigo. Em 1991, no Jornal de Angola, «Textos orais, cultura e práxis Ákwàkimbùndu: Kimàláwèzù kyà Túmba à Ndàlà, um modelo de conduta», já referido; e uma outra versão revista e aprofundada, «Textos orais, cultura e práxis Ákwàkimbùndu: Kimàláwèzù kyà Túmba à Ndàlà, um modelo de conduta, um modelo cultural», em 2002, na revista «Metamorfoses» da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O antropólogo angolano explora os textos orais, enquanto narrativas mitológicas, cujo herói é Kimàláwèzù kyà Túmba à Ndàlà. E organiza-os em ciclos  com base no critério da origem, no território que se estende entre o Alto Kwanza, o Baixo Kwanza e o Atlântico. A perspectiva de Virgílio Coelho filia-se na tradição africana de uma antropologia estruturalista que tematiza o mito como forma particular de literatura oral.

Sem prejuízo da focagem assente na exploração da mitologia dos heróis de narratativas da literatura oral, desde a década de 90 do século passado, o autor destas linhas vem privilegiando o estudo da ficcionalidade literária e os mundos possíveis em que habitam semelhantes personagens das literaturas orais africanas e angolanas. Por exemplo, Kalitangi e Nambalisita são duas personagens, respectivamente, da literatura oral em língua Umbundu e em línguas Nyaneka e Humbi, às quais já dedicámos algumas linhas. Para todos os efeitos, importa reconhecer que, presentemente, no contexto angolano, os potenciais patrimónios literários orais justificam a consagração disciplinar e académica da antropologia literária e da filosofia da literatura.

Antropologia  literária

No seu livro, «Literary Anthropology: A Reader», o antropólogo e linguista norte-americano, Dell Hymes (1927-2009) observava que a antropologia literária procura definir as formas através das quais os textos literários, histórias, mitos e símbolos, reflectem e revelam a cultura e os valores das sociedades que os produziram para dar sentido ao mundo e como são transmitidas de geração em geração. Nos meios académicos ocidentais, o objecto da antropologia literária cabe no espaço coberto pela antropologia cultural. Mas não constitui uma subdisciplina, na medida em que concorre a seu favor uma autonomia epistémica. Tal autonomia disciplinar verifica-se quando confrontamos as diferentes demarcações do campo da antropologia literária. Por exemplo, a definição do teórico da estética da recepção e crítico literário alemão, Wolfgang Iser (1926-2007) distingue-se daquela que foi elaborada por Dell Hymes. Para Wolfgang Iser a heurística de uma antropologia literária deve ter em atenção as manifestações históricas e conceptualizações da ficção e do imaginário. A sua determinação é  contextualmente dependente. Ora, nas últimas décadas do século XX, a antropologia literária tornou-se um fecundo campo de investigação, contando com subsídios  da crítica literária e dos estudos culturais.  O seu objecto cobre o estudo de obras literárias, sua interpretação e os valores morais que delas emanam. Deste modo, admite-se que a sua caracterização dê lugar a duas perspectivas: 1) a antropologia literária dos antropólogos e etnólogos; 2) a antropologia literária dos críticos literários.

Com os seus dois livros , «Prospecting. From Reader Response to Literary Anthropology» [Prospecção. Da Resposta do Leitor à Antropologia Literária], 1989, e «The Fictive and the Imaginary. Charting Literary Anthropology», [O Ficcional e o Imaginário. Mapeando a Antropologia Literária], 1991, Wolfgang Iser dá um relevante contributo para a institucionalização da antropologia literária e diálogo desta com a filosofia da literatura.  É no segundo livro que ele operacionaliza a tríade: realidade, ficcão e imaginário, transpondo assim a barreira da antítese conhecida que opõe o ficcional ao real. No entender de Wolfgang Iser, essa tríade permite identificar o que é especificamente ficcional do texto literário. Chega-se aos mundos possíveis e à correspondente estrutura conceptual e liquida-se assim o modelo binário do pensamento cartesiano.

Sentido do nome próprio

As respostas para as duas questões enunciadas requerem o abandono do modelo binário da antítese, tal como sugere Wolfgang Iser. Esse nome próprio tem sentido? Qual é a descrição que corresponde ao nome de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala?  O tópico da próxima conversa terá aí os seus núcleos temáticos e na tríade que articula a realidade, a ficção e o imaginário.

Há dois anos, nesta coluna, afirmei que o  crítico literário e professor nigeriano Dan S. Izevbaye, tinha sido um dos poucos a dedicar especial atenção ao tópico dos nomes próprios nas literaturas africanas, num texto publicado em 1981: «Nomes Próprios e Carácter da Ficção Africana». Numa perspectiva intercultural, Dan Izevbaye reconhecia que os nomes próprios representavam um dos temas mais controversos da filosofia ocidental, pois já Platão (427-428 a.C) o tratou em «Crátilo», um dos seus livros de diálogos socráticos. No entender, Dan Izevbaye era comum ignorar-se as funções dos nomes próprios, que consistem em tornar possível a classificação dos fenómenos e identificação do carácter ou a categoria de cada pessoa ou objecto. Por essa razão, considerava que deviam ser tidos em conta dois tipos de contextos socioculturais subjacentes à atribuição de nomes próprios. Em primeiro lugar, o contexto cultural arquetípico no âmbito do qual os nomes próprios são vivos e significativos, como o contexto recorrente observável em descrições das práticas de nomear nas diferentes culturas africanas. Em segundo lugar, as circunstâncias em que os nomes próprios perdem o seu significado social, revelando-se os nomes comuns mais significativos do que os nomes próprios. As propostas de Dan Izevbaye eram formuladas no contexto dos estudos da narrativa literária africana, ocupando o escritor o lugar de demiurgo da correspondência entre o nome e o objecto nomeado. O texto do professor nigeriano é coevo da publicação do mais importante livro do filósofo norte-americano Saul Kripke (1940-2022) sobre a problemática dos nomes próprios, «Naming and Necessity» [O Nomear e a Necessidade], 1981. Nessa altura tínhamos concluído que o ensaio de Dan Izevbaye, era uma tematização seminal dos nomes próprios na filosofia da literatura contemporânea em África, inscrevendo-se na cronologia dos debates interdisciplinares, filosóficos, linguísticos e literários, que tiveram lugar durante o século XX.

 Semântica dos nomes próprios

Na filosofia ocidental a referência dos nomes próprios, houve dois períodos distintos na filosofia analítica e da linguagem: 1) Anterior ortodoxia, teve como figura tutelar o filósofo alemão, Gottlob Frege (1848-1925), no século XIX, formulando a proposta de uma visão descritivista dos nomes próprios, segundo a qual os mecanismos de referência são internos. No século XX, destacaram-se Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Bertrand Russell (1872-1970), A. J. Ayer (1910-1989), J. L. Austin (1911-1960) e P. F. Strawson (1919-2006); 2) Nova ortodoxia, tem início com  Saul Kripke e Keith Donnellan (1931-2015), nos anos setenta do século XX com as visões histórico-causais dos nomes próprios.

Em síntese, existem duas categorias de teóricos dos nomes próprios: a) Descritivistas, são internalistas, concentram a sua atenção no vínculo cognitivo interno existente entre o nome e seu portador, considerando-o como semanticamente fundamental e geralmente exprimível por meio de descrições definidas, no que diz respeito ao significado ou conteúdo semântico; b) Referencialistas, são geralmente externalistas, concentram a atenção  no significado, dando relevo à nomeação do referente externo, identificando o conteúdo semântico com o referente (o objeto, o portador).

Kimàláwèzù e a metonímia

Por ora, não temos preocupações relativamente às duas orientações em que se analisam as posições teóricas no capítulo da semântica dos nomes próprios, entre descritivistas ou internalistas, e referencialistas ou  externalistas. Continuaremos a explorar o problema do sentido.Vamos ocupar-nos do processo cognitivo com o qual se torna possível interpretar os textos breves dos jinongonongo, isto é, enigmas e adivinhas. Nos seis exemplares trazidos à conversa o recurso linguístico é a metonímia. Tratada geralmente como dispositivo da linguagem figurada ou figura de pensamento é um poderoso instrumento do processo cognitivo em que uma entidade conceptual (lagoa, uma propriedade da personagem cujo nome próprio é Kimalawezu), constitui o veículo que conduz à outra entidade conceptual (o fogo).

Por exemplo:

  1. Dizanga dia Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, a disukila jimbandu.

Tradução literal: Lagoa de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, não se costuma lavar pelas margens.

Interpretação: Tubia a tuotela mujimbandu.

Na fogueira, aquece-se pelos lados.

Conclusão

Portanto, ao determinar  sentido do nome próprio de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala e a descrição que lhe corresponde, deveremos ter em conta a relação existencial das duas entidades conceptuais, isto é, Lagoa de Kimalawezu e o fogo. A semântica subjacente aos nomes faz apelo a conhecimentos e experiências culturais concretas. Há dois conceitos e dois referentes, mantendo entre si nexos de fonte (Lagoa de Kimalawezu) e alvo (fogo). Cada um deles suscita uma interpretação que se socorre de uma imaginação fundada nas convenções e contextos da cultura Kimbundu.  


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 12 de Novembro, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 12/11/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/experiencia-estetica-e-ontologia-social-na-literatura-iv/

Marcos Carvalho Lopes

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