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Pandemia, ironia e brasilidade

Texto feito a pedido de um colega indiano, tentando descrever a situação da pandemia no Brasil.

Marcos Carvalho Lopes

Existe um arco entre 1989 e 2020: se antes a hegemonia dos EUA e a consagração da democracia liberal eram celebradas indulgentemente como o suprassumo dos artefatos sociais produzidos pela humanidade, uma forma de governança que seria o Destino necessário para todos os povos, mesmo que imposta pela força, na construção de uma Paz Perpétua; hoje, em um cenário marcado pela suspensão da vida cotidiana causada pelo distanciamento social, as consequências do aquecimento global e de toda ação destrutiva em relação às condições ambientais da existência foram reveladas ao mesmo tempo. A pandemia causada por um vírus deixou claro que a luta pela hegemonia global e o colapso do Império norte-americano põe em questão as possibilidades de existência de todos os outros, não mais por causa da principal ameaça de bombas atômicas, mas pela manutenção dos níveis de exploração, pela forma de capitalismo rentista que transforma todo o jogo político da Democracia em uma encenação da escolha de um bufão, às vezes um bufão gângster, que ironicamente exerce o duplipensar de desconsiderar a morte de milhares em nome da liberdade (de mercado).

A propósito, a promessa de liberdade no Brasil nunca pode ser pensada sem considerar que este país foi fundado sobre o trabalho escravo (mantendo este sistema legalizado até 1888) e massacre contínuo das populações indígenas. Não por acaso, o país mantém formas de desigualdade extrema, apesar de ser uma das maiores economias do mundo. O tipo de liberdade que as elites brasileiras desenvolveram está ligado à manutenção da maioria da população em situações de extrema pobreza; permitindo aos primeiros uma acumulação ilimitada de terras (latifúndios) e riquezas. Hoje no poder, o discurso do governo brasileiro não esconde seu desejo de assumir a supremacia branca como destino; de buscar um alinhamento automático com os EUA (de Trump); de promover uma espécie de anti-imperialismo predatório que visa destruir todas as áreas de resistência ao agronegócio, queimando florestas, deixando as populações indígenas sem assistência médica em tempos de pandemia.

A grande ironia desta situação é que, cada vez mais, o modelo de exploração e desigualdade que o Brasil fundou, se impõe como a nova ordem mundial. O Brasil está na vanguarda de um tipo de experiência social que naturaliza desigualdades extremas e o genocídio de todos os corpos não-alinhados (as taxas de violência diária no país são de guerra, o que torna a população cega de ver morte e violência contra mulheres, indígenas, negros, gays, lésbicas, transexuais …). A ideia de administrar a morte e a violência, no país que foi a maior experiência de escravidão moderna, faz parte da própria estruturação de práticas que permitem a manutenção de desigualdades extremas. A mesma celebração do gesto violento e autoritário explica a crença negacionista de que a COVID-19 só chegaria àqueles que não são “homens de verdade”, que não têm um histórico de atleta, que não enfrentam a doença de cabeça erguida … por isso a pandemia foi tão grave por aqui. Pela mesma razão, a morte de mais de 200 mil não é tão assustadora: mesmo em um primeiro semestre de isolamento social, o número de pessoas mortas pela polícia aumentou, sendo mais de 3 mil (70% delas negras). Neste quadro geral, no qual a pobreza e a desigualdade estruturaram a liberdade de uma elite durante séculos, a ideia de que o Brasil é o país do futuro – muitas vezes parte das narrativas sobre a nação – se repete como uma tragédia e  novo destino global.

Marcos Carvalho Lopes

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