0

PARA QUE FILOSOFIA III: De filosofia e utilidade

Gonçalo Armijos Palácios

A sociedade que apenas estimula o que dá lucro, colherá o fruto da corrupção que cegamente semeou

Mais do que nunca podemos ver, nos momentos pelos quais atravessamos, não só a importância da filosofia como quanto ela vale e como ela é necessária. Explico-me. Por trás das constituições das nações modernas, assim como das antigas cidades-estados gregas, o berço da nossa civilização, temos as idéias de filósofos. Um dos pensadores que contribuíram para a elaboração de várias constituições americanas no século XIX, por exemplo, foi John Locke, pensador do século XVII. O que não é coincidência, pelas idéias liberais e libertárias que foram defendidas nas campanhas de luta pela independência dos países latino-americanos.

A última disciplina que ministrei no Curso de Pós-Graduação em Filosofia da minha universidade tratou, basicamente, da questão do Estado. Concentrei-me nos problemas que se desenvolvem ao longo da Republica de Platão, e os comparei com o tratamento dos mesmos assuntos nos textos clássicos de filósofos modernos, como Hobbes, Locke e Rousseau. O curso atende os anseios e as necessidades teóricas não só de formados na filosofia, como de graduados em cursos de Economia, Psicologia, Direito, Educação e até Física, entre outras áreas. Na última aula da disciplina, aproximou-se um estudante formado em Direito e me deixou saber o quanto ele tinha se esclarecido, sobre sua própria área, em geral, e sobre legislação, em particular, com aquelas aulas e com as leituras dos textos clássicos desses filósofos. Mas esse é um caso apenas. A cada semestre, o número de pessoas das mais diversas áreas que procuram a filosofia vem progressivamente aumentando. Tanto, que não faz mais sentido que o curso só aceite formados nas chamadas áreas afins. A partir da próxima seleção deveremos abrir o curso para os formados em qualquer área. Pois, se uma das nossas linhas de pesquisa envolve a filosofia da ciência, todas as ciências estão contidas na possibilidade de pesquisa filosófica e, portanto, um número ilimitado de atividades profissionais.

Agora, imagine-se uma sociedade em que a reflexão sobre a política, o Estado e as leis coubesse unicamente a políticos de profissão. Que realmente poderíamos esperar de pessoas muito mais interessadas na prática política do que na sustentação, fundamentação e justificação dessa prática? Imaginem se deixássemos a reflexão sobre os fundamentos e o valor da democracia, da representatividade política e da lei, a políticos como aqueles envolvidos nos escândalos que enchem de revolta e frustração qualquer cidadão honesto deste país. Imagine-se o caso extremo em que, numa sociedade determinada, todos os políticos fossem ambiciosos e corruptos, mas não houvesse filósofos. Uma sociedade em que todos os que se dedicassem à política tivessem seu preço e que a absolutamente ninguém lhe interessasse pensar e refletir sobre o valor das coisas, sobre o certo e errado, sobre o correto e o incorreto, sobre o justo e o injusto. Ou numa sociedade corroída pela imoralidade administrativa na qual uma pessoa íntegra, uma que não compactuasse com a corruptela generalizada, quisesse refletir sobre as mazelas dessa sua realidade. Aqui podemos ver o quanto seria necessária para uma tal sociedade a presença de pessoas de boa índole, capazes intelectualmente e suficientemente preparadas para contribuir com a reflexão crítica sobre tudo aquilo que nessa sociedade ocorre. O fato é que é impossível que numa sociedade não haja pessoas honestas, capazes e com vocação para refletir sobre questões de fundamento, como a justiça, a correção, a moralidade.

Que um grupo minoritário assalte o poder para usá-lo imoralmente no seu benefício não significa que a maioria carregue nas suas almas o vício e a vileza, nem que à sua estreiteza moral e espiritual se alie a incapacidade intelectual. Não, não podemos generalizar nem pensar de forma tão pessimista.

Contra todas as aparências, há pessoas de bem, e competentes, tanto na vida privada como na vida pública. E acredito que formam uma maioria. Mas não é suficiente termos numa sociedade cidadãos de bem e pessoas competentes. Devemos saber aproveitá-los. E é aqui que entram as instituições de ensino. Pois é claro que uma sociedade, e as grandes civilizações mostram isso, não se faz só com aqueles que levam a cabo tarefas práticas, concretas, nem, pior ainda, tarefas práticas repetitivas. É importante o domínio de uma técnica. Mas até esta, a técnica, se desenvolve pela reflexão sobre ela, pela teoria, isto é. Precisamos a reflexão sobre o todo, sobre o próprio saber, precisamos a auto-reflexão, a reflexão sobre nós como indivíduos e como um grupo. Necessitamos, portanto, de filosofia, que é a atividade autocrítica e reflexiva por excelência.

Aproveitar as potencialidades dos jovens significa, para uma sociedade, estar em condições de recebê-los em todas as áreas em que eles poderiam eventualmente ser úteis a ela. Limitar o leque de possibilidades para a escolha profissional dos jovens é agir tirânica, cega e torpemente. É forçá-los a escolher profissões em que muito provavelmente não vão desenvolver todas suas capacidades e, como conseqüência, não vão entregar à sociedade aquilo que poderiam dar. É forçá-los, também, a escolher atividades em que não vão se realizar como pessoas. A natureza deu-nos mãos para fazer, mas, e principalmente, deu-nos um cérebro para pensar, para refletir, para analisar, para questionar, para teorizar. Temos algo que toda sociedade esclarecida tem a obrigação de aproveitar, receber, estimular e ajudar a desenvolver: nossa capacidade puramente teórica. Mas engana-se quem pensa que a pura teoria não tem nenhuma aplicação ou conseqüências práticas. As matemáticas desmentem essa idéia equivocada, pois talvez não haja nada mais teoricamente puro do que elas e, mesmo assim, sem elas nada pode ser construído, planejado e, talvez, nem sequer pensado. Uma sociedade que só mede a importância e o valor das coisas em termos utilitários ou monetários, merecerá colher os frutos da corrupção que uma vez plantou.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1983), da revista Philósophos (1986), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *