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PARA QUE FILOSOFIA IV: Da contribuição do filósofo

Gonçalo Armijos Palácios

O pensar filosófico não simplesmente contempla o mundo, mas o refaz

A arte não existe sem artistas, assim como a ciência sem cientistas. Não há nem arte nem ciência sem artistas e cientistas que as façam. Do mesmo modo, não há filosofia sem filósofos. Sem filósofos, isto é, que constantemente estejam fazendo filosofia, como os artistas fazem arte e os cientistas, ciência. O fato de haver existido grandes cientistas e grandes artistas no passado não significa que novos artistas e novos cientistas não possam aparecer. Por ser novos, claro, não ingressam na arte e na ciência como grandes gênios nessas atividades. Ninguém se admira com que alguém queira ser compositor, pintor ou físico, por exemplo — no sentido de se admirar porque queira fazer o que Mozart, Leonardo ou Einstein fizeram. Noutras palavras, ninguém pensa que quem é e se diz compositor ou físico está insinuando que é um Bach ou um Picasso. Por isso, quem se dedica a essas atividades não tem nenhum problema em se chamar artista ou físico. Estranhamente, no entanto, na filosofia não ocorre o mesmo. Pelo menos em certos lugares. Pois, para muitos, o termo ‘filósofo’ está atrelado, parece que umbilicalmente, a nomes como Platão e Aristóteles. Assim, quem se diz filósofo — pensam muitos — de alguma maneira esta se querendo igualar a um desses grandes pensadores, ou está querendo dizer: ‘eu sou um Aristóteles’, ou ‘eu sou um Platão’.

A verdade é que em lugares em que se faz filosofia não há essa identificação de ‘filósofo’ com ‘ser um Aristóteles’ ou ‘ser um Platão’. Fazer filosofia — tenho dito tantas vezes — é resolver problemas teóricos que não é possível resolvê-los com os instrumentos das outras ciências ou de outras áreas da atividade intelectual ou espiritual do ser humano. Naqueles lugares o papel do filósofo compreende-se claramente: está aí para resolver problemas, muitos dos quais afetam à maioria das pessoas. Outros, no entanto, não afetam a muita gente, mas isso não fez dessas questões menos filosóficas. De maneira análoga, o fato de a maioria de pessoas não se preocupar pelo que muitos matemáticos fazem não torna esses problemas menos matemáticos.

A questão central é que há matemáticos, físicos ou filósofos na medida em que há alguém que se dedica a resolver problemas nessas áreas. E aí radica, precisamente, a contribuição de cada um deles. O interessante de áreas como essas é que constantemente a realidade nos está obrigando a dar soluções. Pois é na própria realidade que, no momento menos esperado, ocorrem fatos graves, incompreensíveis e mesmo inaceitáveis. “Isso”, dizemos muitas vezes, “não pode — ou não deveria — ser assim!” A gravidade ou incompreensibilidade das coisas força-nos a procurar soluções. Porque nos obriga a rever conceitos e procurar saídas. Matemáticos e físicos teóricos tentam resolver seus problemas propondo novas formulações, teoremas ou teorias dentro dessas áreas. O filósofo, pesquisando e escrevendo. No fundo, não são muito diferentes essas três atividades: há algum problema que exige uma pesquisa, a pesquisa leva a certas reflexões, reflexões que, por sua vez, levam a determinados resultados. Resultados que, obviamente, são obtidos por este ou aquele físico, este ou aquele matemático, este ou aquele filósofo. Muitos matemáticos e físicos podem até não acreditar que suas pesquisas e resultados sejam importantes. Ocorreu um caso que mudou a história da ciência. Um geômetra achou que suas pesquisas terminavam em propostas tão aparentemente absurdas que decidiu, no início, não publicar seus resultados. E na pasta em que esse trabalho particular estava guardado escreveu “Geometrias imaginárias”. Pois essas geometrias “imaginárias” iriam provocar uma revolução científica: a revolução das geometrias não-euclidianas.

Assim, a obrigação de todo pesquisador, de todo pensador, é publicar o fruto do seu trabalho, mesmo que ele pense que não tem nenhum valor. Na filosofia não é nem pode ser diferente. A contribuição do filósofo é precisamente essa: levar ao público o resultado de suas pesquisas, de suas reflexões, de seu trabalho. Tornar públicas suas preocupações e os resultados aos quais essas preocupações o levaram. Assim como a contribuição do historiador pode consistir em descobrir um fato que tinha permanecido ignorado ou dar subsídios, documentos, para a reinterpretação de um fato conhecido, o filósofo jamais se limitou a repetir o que já fora feito, mas sempre contribuiu descobrindo novos problemas ou fornecendo novas interpretações ou soluções a problemas conhecidos. De qualquer forma, nós, se formos filósofos, devemos mostrar a que viemos. Devemos estar em condições de dizer quais são os problemas que nos afligem assim como as soluções que pretendemos dar — ou já demos — a tais problemas. Não somos, certamente, papagaios de sala de aula, isto é, não somos como aqueles bonecos que mexem os lábios enquanto é outro quem fala. O trabalho do filósofo, assim como o do físico e do matemático é, por isso, original. Não pelo prurido da originalidade, mas porque é impossível que alguém tenha um problema e encontre uma solução que, tanto um quanto a outra, sejam exatamente iguais ao problema e à solução de outro filósofo. É por isso que, numa universidade, num departamento de filosofia, seus membros, se filósofos, devem dizer quais são seus problemas — não unicamente quais foram os dos grandes filósofos clássicos — e quais suas soluções. Essa é a contribuição do filósofo. Caso contrário, seu silêncio é o silêncio do charlatão e não merece o salário que recebe. Pois se for para repetir o que já se disse e se fez no passado ou se diz e se faz noutros lugares, as bibliotecas e livrarias seriam o melhor lugar para que alguém procure a filosofia: ali estão as idéias dos filósofos como eles próprios as escreveram — e certamente não as escreveram para exegetas privilegiados e sim para o grande público, ou, pelo menos, para aqueles com condições intelectuais para lê-los. Na filosofia, como nas ciências e nas artes, o aparecimento de novas visões, de novos problemas e soluções é o que faz que elas continuem vivas, caso contrário, elas já teriam morrido em museus e em bibliotecas empoeiradas. Mas o filósofo, o verdadeiro filósofo, não vive remexendo livros empoeirados para simplesmente comentá-los, está constantemente forçado a refletir pelos — e sobre os — problemas que aparecem em cada coisa que o ser humano faz. Sem reflexão, sem crítica, sem filosofia, o mundo seria completamente diferente. As mãos não fazem nada por si mesmas, elas obedecem a idéia prévia, a reflexão anterior. Por isso que o trabalho filosófico é essencialmente criativo e, como poucos, refaz o mundo em que vivemos. No entanto, não são muitos que percebem os frutos que o filósofo plantou.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1983), da revista Philósophos (1986), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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