1

PARA QUE FILOSOFIA XIII: Filosofia, poesia e os mil caminhos do racional

Gonçalo Armijos Palácios

Entender a força poética é como querer conter a força do mar

O poético merece ser visto com um olhar que não seja o do limitado e estreito cientificismo. No texto sobre o qual tenho refletido nos últimos artigos — Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo : EPU, 1977, p. 24 —, Bochenski menciona filósofos, como Jean Wahl, que identificam filosofia e poesia. Contra essa posição, Bochenski defende a tese de que, desde seu início, lá nos antigos gregos, a filosofia foi uma atividade racional. Mas devo perguntar: acaso a poesia, em qualquer uma de suas formas, não é racional? Que devemos entender por racional? Quando se introduz a suposta diferença entre a racionalidade da filosofia e da ciência e a ‘irracionalidade’ da arte e da poesia, que mesmo se está querendo dizer? Quer se insinuar que há um tipo de atividade mental que produz filosofia e ciência, de um lado, e outra, indeterminável, que produz, de outro lado, arte e poesia? Dá-se por assentado que a primeira é superior e a segunda inferior. As distinções, como na maioria das vezes, são feitas de forma arbitrária e falaciosa. Falaciosa porque se pretende passar a impressão de que há um tipo de atividade mental, batizada de ‘racional’, claramente determinável e especificável, que está por trás de um procedimento mental claro e transparente. Arbitrária porque não produz nenhuma outra justificação que o preconceito que já existe a favor do pensamento científico e contra outros processos mentais considerados inferiores.

Ora, do que se trata é justamente de se provar a superioridade de uma e a inferioridade da outra que não esteja baseada na tendência prévia a, de início, já se pressupor que é e deva ser assim. Quando, no entanto, entramos no estúdio dos processos racionais das ciências, dos seus métodos, da história da ciência e da filosofia da ciência, o panorama muda completamente.

Há uma pergunta simples que um defensor ferrenho da existência de um suposto procedimento racional propriamente científico e superior ao poético, artístico ou literário não pode responder: como se chega, na matemática, na física ou na lógica, a uma descoberta empírica ou a uma prova teórica? A resposta, dada por cientistas da estatura de um Einstein ou de um Poincaré, é: de inúmeras maneiras. E deve-se acrescentar: muitas delas, talvez as mais importantes, não totalmente conscientes!

As pessoas têm a tendência a acreditar que existe um método — aliás, “o” método — científico. Método que supostamente se estuda numa disciplina denominada Metodologia da Pesquisa Científica. Essas pessoas não percebem que a disciplina começa por ter um problema sério no seu nome. Pois não existe uma metodologia científica, existem inúmeras. Cada metodologia deve se adequar ao problema, ao objeto e, sem dúvida, ao próprio pesquisador. Há um ditado que se aplica muito bem no caso que nos ocupa: por muitos caminhos chega-se a Roma. Com efeito, por caminhos os mais variados os cientistas têm chegado às suas descobertas científicas. Muitas delas por engano ou por acidente e contra todas suas expectativas e desejos.

Tomemos um dos exemplos que eu posso dar por ter trabalhado na área. Estudei lógica matemática convencido de que, de alguma maneira, iria descobrir a estrutura racional que reproduzia a lógica do mundo, isto é, que refletia a estrutura lógica da própria realidade. Mas quanto de artifício e de arbitrariedade fui paulatinamente percebendo nos “princípios” lógicos que era obrigado a aceitar acriticamente. Para citar apenas um: o fato de a lógica que estudei trabalhar com apenas dois valores de verdade. Percebi que, assim como ocorreu com o aparecimento das geometrias não-euclidianas, que trabalhavam com espaços completamente diferentes do euclidiano, era possível trabalhar com lógicas que trabalhassem com mais de dois valores de verdade. De todas as lógicas possíveis, as consistentes, as paraconsistentes, as bivalentes, as polivalentes, qual é a que reflete “o pensamento”? Assim como não pode haver uma resposta autoritária para a pergunta: “qual geometria reflete o espaço real?” Não há uma resposta autoritária para aquela última pergunta, pois não há como privilegiar um sistema lógico em detrimento de outro.

Voltando então, ao nosso problema inicial. Os processos mentais que ocorrem no cérebro do físico, do matemático, do escritor, do poeta ou do escultor, não são, em sua natureza, diferentes. Nem são completamente conscientes nem totalmente inconscientes. A racionalidade incorpora um número muito maior de processos mentais dos que poderíamos imaginar. Pretender abraçar, aprisionar, a força poética é como querer aprisionar, num abraço, a força de uma onda que arrebenta no mar. Além do mais, não há apenas uma onda, nem apenas um mar. Há ondas e há mares, e não há uma gota de água idêntica a outra, portanto, mais uma vez, haverá ondas e haverá mares…

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo e professor da UFG, é articulista do Jornal Opção.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Muito importante essa contribuição, somar argumentos e estabelecer novamente a possibilidade do conhecimento muito além e diverso do científico. Este ainda que fundamental, não pode continuar ser imperial em nossas mentes e nem nos modos de pesquisar e construir conhecimentos na academia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *