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PARA QUE FILOSOFIA XIV – O autoritarismo da razão

Só faz filosofia e ciência aquela espécie que pode poetizar

Gonçalo Armijos Palácios

Entre outras, uma das causas que impede que as pessoas compreendam o que é filosofia é o autoritarismo com que tradicionalmente ela é ensinada. Cada grande filósofo dá sua particular definição sobre o que é filosofia e não podemos imaginar que não saiba que outros grandes filósofos a conceberam de formas diferentes. Mas, compreensível e lamentavelmente, mesmo o grande filósofo tende a apresentar sua concepção de filosofia como se fosse a única, evita discutir as outras ou as trata com desprezo.

Alia-se a isso o preconceito de que a filosofia deve ser algo incompreensível e, pior ainda, escrito numa língua muito complicada, como o grego ou o alemão. Já tenho escrito e insistido muito sobre isso, mas a luta contra o preconceito não é curta, e requere insistência, paciência e muita argumentação.

Concebe-se a filosofia, assim, como algo que deve necessariamente ser feito numa linguagem hermética e que refletiria o supra-sumo da racionalidade. Mas, surpresa, ninguém ousa definir de modo claro o que deve entender-se por esse tipo de racionalidade. De algum modo, tende a se conceber a filosofia como um discurso muito próximo ao da matemática ou ao da física teórica, isto é, um discurso só compreensível para verdadeiros iniciados.

Como conseqüência do anterior, divide-se o trabalho intelectual em, pelo menos, dois tipos, aquele que seria ‘propriamente’ racional, e aquele outro, menos importante, que seria não só ‘menos racional’ como, diretamente, ‘irracional’. Opõe-se, assim, o racional ao irracional, como se fossem naturezas contrárias, ou aspetos contrários, como o positivo e o negativo, o superior e o inferior, o desejável e o indesejável.

No texto que venho analisando há algumas semanas 1, J. M. Bochenski identifica ‘explicar’ com ‘pensar racionalmente’. E ‘pensar racionalmente’, com ‘usar a inteligência’. Isso é muito mais problemático ainda que opor ‘racional’ e ‘irracional’ sem fornecer um bom fundamento para tal oposição. Pois agora devemos perguntar: sobre que base se identifica ‘explicar’ com ‘pensar racionalmente’ e, por último, com ‘usar a inteligência’. Significa que os processos mentais que produzem as artes ou a poesia, por exemplo, não unicamente não são racionais como não são fruto da inteligência humana? Bochenski chega a essa conclusão porque pensa que o pensamento filosófico, essencialmente, explica. Vejamos: “Explicar, porém, quer dizer interpretar racionalmente o objeto proposto, o que só se consegue com o auxílio da inteligência [entendimento]. Mesmo aqueles que resolutamente se negaram a usar a inteligência [entendimento] na filosofia — como Bergson — não procederam de modo diferente. O filósofo, ao que parece, é um homem que pensa racionalmente, que procura esclarecer, que procura pôr ordem no mundo e na vida — e tudo isso quer dizer conhecimento, inteligência.” (p. 26) Do que se deve concluir, portanto, que quem não procede como fazem as ciências ou a filosofia, não procede com inteligência, ou não usa o entendimento. É assim como os antigos preconceitos racionalistas se difundem.

Bochenski, naturalmente, esquece de definir o que é ‘racional’, ‘irracional’, ‘entendimento’ etc. Por quê? Por ser levado pelo preconceito tradicional de que deve ser óbvio que existe na mente humana um lado racional e outro irracional. Mas, é justamente essa diferença que deve ser, antes de nada, provada, não pressuposta.

Bochenski recorre à história da filosofia para sugerir que o que ele quer defender ‘sempre foi assim’. No entanto, eu proponho, como uma vacina contra preconceitos filosóficos tão arraigados, como o da diferença entre ‘racional’ e ‘irracional’, que se leiam as declarações dos próprios cientistas. E, de preferência, os grandes, como Einstein e Poincaré. Recomendo, também, filósofos da ciência, como Paul Feyerabend quem, no seu Contra o Método, desmascara a farsa cientificista e racionalista que pretende que há uma via para se descobrir a verdade e que há um tipo de processo mental para fazê-lo, o ‘racional’. Foi sua concepção racionalista que levou Platão a expulsar os poetas da pólis… Que teria feito com pintores como Salvador Dalí?

As grandes descobertas científicas não poderiam ter sido feitas sem um algo a mais, isto é, sem o impulso do ímpeto criativo e imaginativo da mente humana. Só nossa espécie faz ciência e filosofia porque só o ser humano pode ser poeta.

1 Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1977.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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