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PARA QUE FILOSOFIA

Gonçalo Armijos Palácios


Quem senão o filósofo pode ocupar a tribuna para chamar a atenção sobre os perigos de a prática política converter o país numa cloaca?

Para que filosofar? Para nos ajudar a sair da ignorância sobre aquelas coisas que mais nos preocupam como seres humanos. Não para responder questões que nos permitam, imediatamente, resolver as necessidades de nossos instintos animais. Somos animais, sim, mas também somos homens. Algo devemos ter a mais que os animais não possuem. Isso que temos a mais deve, de alguma maneira, produzir necessidades que os animais não poderiam ter. Pois é evidente que temos outras necessidades. De abrigo, de comida, sim, temos necessidades. Mas há algo em nós que nos empurra a buscar o que não temos, o que não temos e precisamos ter. E isso que nos empurra é algo interior que só nós possuímos e que aparece em forma de reflexões, de pensamentos, de dúvidas. Tudo aquilo que nos leva a adquirirmos conhecimentos. Saberes sobre aquilo que o que alimenta nosso corpo não nos pode dar. Pois, à diferença dos animais, queremos saber, queremos entender, procuramos resolver as dúvidas que nossa natureza diferente, nossa natureza peculiar, encontra. Problematizamo-nos sobre todo tipo de coisas. Muitas respostas podem, com efeito, ter conseqüências práticas. Mas a praticidade imediata de nossas reflexões e problemas talvez seja algo que nos preocupa só colateralmente.

Nesse sentido, matemáticos e filósofos se assemelham. Foram curiosidades peculiares, únicas, que levaram alguém a se preocupar pelas propriedades da circunferência. Quando iria ele imaginar as aplicações práticas que os resultados das suas preocupações teriam? Por séculos um problema geométrico permaneceu uma questão puramente teórica — a de se o Quinto Postulado de Euclides era mesmo um postulado, uma verdade básica e fundamental, ou se era derivável de outras verdades geométricas anteriores e mais fundamentais ainda. Por mais de 20 séculos esse problema perseguiu os geômetras até que, da sua solução, surgiram as geometrias não-euclidianas. Geometrias que teriam um papel fundamental no desenvolvimento da Física do século XX, com todas suas incalculáveis conseqüências práticas. Quem poderia prever que tais problemas puramente teóricos teriam tão monumentais conseqüências e aplicações práticas?

Por que e para que, então, filosofar? Porque não somos bestas, não somos porcos que se contentam com encher avidamente suas panças e se reproduzir. Porque vivemos com outros seres humanos e desse convívio surgem problemas. Problemas decorrentes, entre outras coisas, da ambição dos nossos semelhantes. Do amor pelas riquezas, pelas posses e do desejo de ter poder para usá-lo no seu benefício.

Filosofamos não só porque nos admiramos das maravilhas que nos rodeiam no universo em que estamos, mas porque há um tipo de problemas que nos afetam intimamente e que os que se ocupam de seus assuntos particulares não poderiam resolver. Sim, há pessoas que só se ocupam de seus problemas. E com toda razão e direito. Nasceram talvez com inclinações para isto e aquilo e com gostos compatíveis com suas habilidades. Querem resolver questões concretas, específicas. Mas há outros que enxergam mais longe. Que não só olham para si, seus parentes e amigos. Olham para o conjunto. Preocupam-se não só com seus problemas, os de seus parentes e seus amigos, mas com aquelas questões que atingem a todos nós, pelo mero fato de se viver em comunidade e de se viver de certas maneiras e não de outras. Pois há pessoas cujos desafios não se limitam a resolver os problemas dos seus e do seu pequeno círculo; são, pelo contrário, tocadas pelas dificuldades que afetam o todo. E esse todo é a sociedade em que vivem. Talvez os que se sintam afetados pelas dificuldades do todo sejam uma minoria. Mas isso não significa que esses problemas sejam menos importantes e menos urgentes. Muito pelo contrário, já que atingem a todos.

Quem levanta sua voz quando a sociedade é fustigada pela prática política corrupta, por exemplo? Quem reage quando ouve gritar-se aos quatro ventos que um punhado de políticos pode se enriquecer só trocando de sigla partidária. Quem vem a público para chamar a atenção de todos sobre os meandros imorais da prática política que faz de poucos muito mais ricos e de outros, muitos, miseráveis? Quem quer advertir aos seus concidadãos sobre as conseqüências nefastas de se ignorar o surto de imoralidade que de tempos em tempos assusta o convívio sadio dentro de uma sociedade? Quem senão aquele que não tem compromisso com o grande capital? Quem senão aquele que não tem compromisso com o poder e os poderosos? Quem senão aquele que se preparou durante anos para refletir sobre as possibilidades de o ser humano se elevar e descer ao inimaginável? Quem senão aquele que estudou como e por que o homem pode se elevar às alturas da generosidade e do altruísmo máximos, mas pode também descer aos abismos sem fim do egoísmo, da prepotência e da infâmia? Quem senão aquele que compreende as conseqüências desastrosas da soberba com que alguns políticos exercem seus mandatos? Quem pode apontar as causas assim como indicar as possíveis soluções para que o país se levante da poça de estrume que deixam para trás tantos políticos depois de governarem? Quem senão o filósofo? Sem filosofia, um povo está condenado ao vazio moral e à miséria espiritual.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005


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Marcos Carvalho Lopes

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