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Quando uma biblioteca se queima (Homenagem a V.Y. Mudimbe)

ensaio de Severino Ngoenha e Filomeno Lopes

Hampâté Ba dizia: “Quando um velho morre, é uma biblioteca que se queima.”
No caso de Valentin-Yves Mudimbe (1941-2025), essa sentença torna-se quase tautológica: era ele, simultaneamente, o velho, o sábio e a biblioteca. Uma biblioteca viva que, ao fechar-se, deixa entre as cinzas o testemunho raro de uma vida atravessada pela história, pelas metamorfoses e pelas dores do continente africano. Não apenas do seu Congo natal, mas da África inteira.

Mudimbe carregava em si os ecos das esperanças que moldaram a África pós-colonial e, ao mesmo tempo, os testemunhos amargos das traições dessas mesmas esperanças. A sua obra — de The Invention of Africa a The Idea of Africa, passando pelas confissões literárias de The Rift — inscreve-se nesse duplo movimento: afirmar uma palavra africana e, ao mesmo tempo, desconstruir a biblioteca colonial que se havia erguido para nos negar a humanidade.

Como Eboussi Bulaga e como tantos da sua (nossa) geração, Mudimbe conheceu a filosofia pela porta estreita da teologia, através do seminário, lugar onde a filosofia já não era escola da dúvida, mas serva da fé. Quando entramos na filosofia pela mão da ancilla teologiae, fazíamos um gesto anacrónico: em pleno século XX, éramos levados a caminhar por uma estrada que o próprio Ocidente já abandonara séculos antes. Era uma filosofia cativa, e precisávamos libertá-la.

Libertá-la foi também desviar-se para a história, para a antropologia, para a sociologia — lugares onde a nossa voz parecia poder, enfim, pronunciar-se.
Mas era uma armadilha: quem definia a África éramos ainda nós, usando instrumentos que nos vinham da mão do colonizador. E, mesmo na crítica, mesmo no gesto de desconstruir, permanecíamos presos aos esquemas que pretendíamos superar.

Mudimbe soube fazer desta armadilha um campo de combate. Analisando a “biblioteca colonial”, ele mostrou como a construção da diferença africana servira de alicerce para a dominação, para a negação de uma coautoria africana da história universal. Com paciência de arqueólogo e ousadia de hermeneuta, desvelou os mecanismos pelos quais se roubava à África a sua genealogia antiga, egípcia, filosófica, científica.

Porém, este gesto de libertação nunca foi um regresso à pureza perdida: era, necessariamente, um trabalho de travessia. Não se tratava de substituir a razão ocidental por uma razão africana “pura” — o próprio Mudimbe sabia que tal pureza é um mito —, mas de criar uma nova cartografia, onde a África pudesse, sem negar o seu exílio epistemológico, abrir novos caminhos para o pensamento.

É neste lugar, onde a crítica se faz consciência dolorosa da sua própria condição de dependência, que o legado de Mudimbe atinge a sua profundidade trágica. Pois, para pensar a África, para sonhar a sua emancipação, foi necessário atravessar as bibliotecas da Europa, respirar os ares de Paris, de Louvain, de Stanford. Foi preciso ir viver no exílio. Mesmo os que ficaram em África continuaram, de certo modo, a viver nesse exílio invisível, usando métodos, categorias, instrumentos que já não eram seus, mas de outros.

E assim acontece o paradoxo: ao tentar pensar para libertar a África, Mudimbe, como muitos dos seus contemporâneos, formou mais discípulos entre os europeus do que entre os próprios africanos. Alimentou, com a sua inteligência rara, não apenas a resistência africana, mas também, inadvertidamente, o poder epistemológico daqueles que continuam a dominar. E a sua obra, por mais africana que seja, é lida, citada, debatida, sobretudo nos centros acadêmicos do Norte.

Ficamos, então, suspensos nesta ambiguidade: fascinados pela sedução do universalismo europeu, herdeiros de sua ciência, de sua técnica, de sua filosofia — mas, ao mesmo tempo, feridos pela memória da escravatura, do colonialismo, da exploração contínua.

Mudimbe não resolve este paradoxo. Deixa-o, como uma herança ardente, às gerações futuras:
Como ser africano, como pensar a África, como construir uma história nossa, sem cair na imitação servil nem na oposição ressentida? Como participar do universal, sem nos dissolvermos?

Este é o seu legado, esta é a sua pergunta infinita.
E talvez, como ele próprio nos ensinou, o destino do pensamento africano seja este:
não um caminho de chegada, mas uma travessia sem fim, entre ruínas e esperanças, onde seremos sempre estrangeiros — até em nossa própria casa.


Severino Ngoenha e Filomeno Lopes

Marcos Carvalho Lopes

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