Severino Ngoenha, Eva Trindade, Giveraz Amaral, Carlos Carvalho
Numa entrevista concedida ao jornalista e filósofo Filomeno Lopes, da Guiné Bissau, Nelson Mandela reconheceu ter aprendido dos revolucionários africanos de língua oficial portuguesa (E. Mondlane, S. Machel e A. Cabral) a separar pessoas e raças dos sistemas de opressão, o que lhe permitiu evitar a armadilha da pandemia “anti-racismo racista”, que o Apartheid lhe tendia; e isso constituiu o essencial da sua política.
As outras tradições africanas de pensamento, a anglófona e sobretudo a francófona, algumas vezes penaram para evitar esta armadilha. O grupo dos estudantes negros (étudiants noirs) que se reuniam em volta do Étienne Léro na década de cinquenta do Séc. XX, e algumas facções da Negritude, como a linha de Léon-Gontran Damas, com a sua retórica manifesta de ódio, sucumbiram à pandemia do “anti-racismo racista”.
Dizemos facções, porque em volta da negritude reuniam-se o já citado Guianense Damas, o Martiniquês Césaire ou o senegalês Léopold Senghor, para mencionar apenas os que a historiografia considera como os pais fundadores do movimento. Todavia, por detrás destes nomes – e de muitos outros – que vão constituir a Negritude, escondiam-se diferentes concepções do Homem negro e do seu lugar no mundo. Unia-os porém, uma revolta comum contra a colonização francesa que, por sua vez, se gabava de lhes ter dado uma língua, uma cultura e uma ancestralidade que ia para além das pertenças cosmogônicas (Bamaliké, Wolof) do Vodu transferido do Benim e depois fonte de identidade do Haiti ou até da(s) crioulidade(s) defendida(s) de uma maneira soberba pelo romancista e filósofo Édouard Glissant
A ancestralidade que a França pretendia ter dado, se queria mais antiga e mais nobre que as etnicidades africanas. O enfant noire ou enfant Baule (títulos famosos da etnografia francesa) aprendia que os seus ancestrais eram nada mais, nada menos, que os gauleses; nous ancêtres, les gaulois…
A generosidade portuguesa, (filantropia colonial) nunca chegou a tanto. Nem mesmo Cabo Verde, filho predilecto do luso tropicalismo, chegou ao estatuto nobre e romano de descendentes lusitanos. A nossa pobre etnografia e a nossa etnohistória quer sejam de Liegme, Junod ou da plêiade de monografias dos administradores coloniais, não conseguiu nos situar para além do século XIX; os changanas vem de Sochangane, os chopes de kuchopa, contra as armadas zulos de Ngungunhana, etc.
Todavia, esta aparente pobreza genealógica, pode também constituir uma oportunidade de escolha, a partir do nosso livre arbítrio e interesse; podemos ir ao mercado das ancestralidades e escolher aqueles que nos convêm. Esse procedimento não seria inédito, esteve muito em voga na Europa do século XIX e, hoje está presente na busca afro-brasileira da africanidade.
O filósofo afro-americano Alain Locke que apelidou o movimento cultural, entre os anos 1920 e 1940, de Renascimento Negro, pretendeu que o coração do mundo negro tinha começado a bater em Harlem. Hoje porém, mais do que em qualquer outro lugar – África inclusa – o coração do mundo negro parece bater na Bahia (Salvador-Brasil). Este pulsar do coração negro se manifesta pela busca constante de uma ancestralidade africana, e isto constitui um dos fundamentos da filosofia afro-brasileira.
No centro de Salvador da Bahia, em volta da Fundação do pai dos Capitães de Areia (Jorge Amado), existem as casas do Benim, da Nigéria, de Angola (…), uma espécie de mercado de ancestrais, onde cada um pode ir pescar os seus Orixás, que estão na origem das linhagens dos filhos de Oxalá, Yemanjá, Iansa, Ogum, etc. Não existe porém, uma casa de Moçambique, talvez porque não tenhamos ancestrais disponíveis, a propor. Por isso, mais ainda do que os baianos, precisamos, nós próprios, de buscar ancestrais fecundos, susceptíveis de dar elã à nossa historicidade.
Entre os ancestrais nobres disponíveis, poderiam estar os lusitanos, que nos são hoje propostos, mas com quinhentos anos de atraso (quem uma vez foi português pode voltar a sê-lo); os Gauleses (que a TOTAL vai de certeza nos propor), os Vaudois da missão Suíça, os Windsores – que estiveram sempre presentes com as suas companhias majestáticas (de tal maneira que Rita Ferreira pôde dizer que Moçambique era uma colónia inglesa com uma administração portuguesa) ou ainda os faraós egípcios, desde há alguns anos muito na moda entre os afrocentristas, em busca de uma alternativa aos gregos e romanos.
O nosso internacionalismo histórico (militante) até nos dá o direito de buscar os nossos ancestrais entre os Czares (apesar do bolchevismo do camarada Lenine), ou ainda nas dinastias chinesas, não obstante as longas marchas do companheiro Mao, (aliás, o monumental edifício confucionista no campos da UEM parece nos dirigir nessa direcção).
A mundialização, do agostiniano mundus, -que não se deve confundir com a globalização, do globus, primeiro geográfico e hoje da economia neoliberal- ligada à busca do sentido da história, autoriza-nos a procurar, no vasto panorama da geo-cultura-mundo, ancestrais que se pareçam conosco ou com os quais nos podemos identificar.
Hoje existem técnicas científicas que através do estudo do nosso ADN nos permitem conhecer as nossas origens e ascendências (MyHeritage/dna). Porém, para o nosso propósito parecem mais pertinentes os estudos psicossociais e de Sociologia histórica, que se interessam pelo comportamento das massas, hoje ameaçados de substituição pelos big datas, que estudam os comportamentos para influenciar (manipular) as escolhas individuais e colectivas (cfr. Cambridge analítica).
Rebelote, Repetita Iuvanti bis; no panteon ou no mercado das ancestralidades os que mais se parecem conosco, ou melhor, com quem nós mais nos parecemos, são os Astecas. Não há História, e nem povo, mais proto moçambicano, que a história e o povo asteca. Na derrocada do império Asteca do século XVI estão, por analogia, todos os ingredientes – e protagonistas – do drama do Moçambique de hoje: dum lado, um grupelho de aventureiros comandados por Cortez que se apodera de um dos maiores impérios de então, doutro lado, um poder fraco e crédulo à espera de deuses estrageiros para salvá-lo (Montezuma), tradutores e intermediários (Malinche), que dão razão ao dito italiano tradutore-traditore (tradutor/traidor), um povo dividido que se deixa manipular e o desfecho óbvio, a queda definitiva do império Asteca.
O aventureiro Hernan Cortez apresentou-se aos Astecas e a Montezuma como um generoso benfeitor (hoje chamaríamos, na nossa linguagem pós-política, ‘doador’, ‘parceiro de cooperação’, ‘parceiro estratégico’) predispondo-se, sempre e em qualquer circunstância, a ajudar os nossos Montezumas do momento e os seus Governos, a encontrar solução para o bem-comum do seu povo.
Depois das tratativas diplomáticas, Cortez e a sua escumalha acedem ao palácio fortificado de Montezuma, e uma semana mais tarde, o hóspede sequestra (captura) o anfitrião (Estado) e, com uma pistola apontada na têmpora, obrigava-o a fazer uma política contrária aos interesses do próprio povo (assim como o FMI e o BM hoje), deixando porém entender ao povo que o imperador Montezuma era quem fazia aquelas leis anti-populares.
Como hoje, os pistoleiros de então escondiam as armas debaixo do casaco e deixavam o povo crer que as decisões que o doravante falso soberano anunciava, vinham mesmo dele. A artimanha era de tal ordem, que levou o povo a aceitar que era Montezuma o autor das leis e, por isso mesmo, desesperado, a revoltar-se contra ele, como fazem hoje em Moçambique, os partidos da oposição, as ONGs, as igrejas etc.
O que permitiu a Cortez ganhar, foi ter conseguido dividir os povos indígenas totonaques (os Macuas, os Changanas, para além de Macondes, Senas, Ndaus e outros muitos de então); ter dividido os astecas moçambicanos em RENAMOS, FRELIMOS, Chongos; ter contraposto Estado e Sociedade civil em seu benefício; ter encorajado uns e financiado outros para lutarem uns contra outros. O desfecho foi, é, a destruição do império/do país em curso.
Montezuma foi sequestrado (estado capturado) pelas doações de armas de fogo, pelo terror dos cavalos e pela sua credulidade. Por que são os nossos Montezumas e o seu séquito de nobres, sacerdotes e guerreiros hoje capturados? como são sequestrados, seduzidos?
Nas Américas de então (dos escombros do qual nasceu o México de hoje), os povos desesperados pela injustiça das práticas antipopulares, revoltaram-se. Mas como não sabiam que por detrás da governação aparente do fracassado Montezuma estavam os dictates dos antepassados do Banco Mundial, do FMI, do Crédit Suisse – esses cobardolas, caras pálidas, falsos gentlemen, vestidos de smokings, que nunca dão a cara – apedrejaram (aqui, hoje, diríamos lincharam) Montezuma até à morte.
Para os historiadores isso deveu-se à postura contraditória de Montezuma, que pensava poder discutir com os colonizadores, considerá-los superiores, enchê-los de oferendas de ouro (e hoje em Moçambique, de grandes extensões de terras, de espaços marítimos, de petróleo e gás, isentá-los de impostos e de outras obrigações fiscais e sociais).
Isso só foi, e é, possível devido à (nossa) mentalidade de inferiores, que hoje e aqui se conjuga com uma mentalidade de pobres, de mão sempre estendida, mendigos, pedintes, mas com veleidades burguesas de carros de luxo, casas com piscina mesmo sem gostarem de água e nem saberem nadar. Como outrora, o inimigo não é uma etnia ou uma raça. Aliás sim, é uma raça, os porgueses: mentalidade de pobres, de pedintes mas com veleidades de burguêses; presas fáceis da pecúnia, que em nome do dinheiro estão prontos, como outrora os negros caçadores de escravos e hoje, quão nhangumeles e changues, a vender tudo e todos.
Quem é o inimigo? Esta pergunta retórica foi primeiro formulada por Eduardo Mondlane e depois retomada em 1980 por Machel, no âmbito de uma campanha contra o chamado inimigo interno. Ora esse inimigo não está somente no aparelho do Estado, mas insinuou-se dentro de cada um de nós; então o inimigo que, pedra a pedra vai destruindo a possibilidade de um novo dia, está em cada um de nós.
O antídoto até podia estar na linha de ordem de então: Unidade, muita unidade, mais unidade, Trabalho, muito trabalho, mais trabalho Vigilância, muita vigilância contra os cortezes de todas as espécies, as fraquezas, as incompetências e desvios dos Montezumas a quem demos o voto para governarem e não para obedecerem a impostores; vigilância para com os tradutores-traidores que são muitos mais do que os vinte presos das dívidas não declaradas, vigilância contra a passividade e a obediência excessiva do povo; em suma, contra a porguesia. O inimigo hoje é a porguesia (Pobres com veleidades burguesas), e a porguesia somos nós.
Quem é o inimigo? O nosso inimigo?
O trágico-cómico não é que se esteja a repetir o trágico de há 5 séculos atrás; os Astecas não sabiam quem era Hernan Cortez e os ‘cortezes´que o acompanhavam, e por isso os acolheram em seu império, contudo, quando descobriram as suas pretensões, reagiram com determinação, só que já era tarde, o império já estava em pedaços.
Nós, e isto é o (trágico) cómico, os conhecemos pelo que fizeram aos proto-moçambicanos (os astecas) e aos moçambicanos que nós somos hoje. Todavia, assistimos impávidos e covardemente às suas ações de destruição; cada um de nós assiste fechados nos seus egoísmos e interesses, à destruição do que deveríamos ter de mais precioso, e para o qual muitos dos nossos Astecas americanos e moçambicanos morreram. Assistimos impávidos à expulsão dos nossos concidadãos de Mocímboa da Praia, à destruição e divisão das nossas terras, das nossas liberdades…!
Quem é o inimigo?
O inimigo de Moçambique (a pandemia) somos nós, porgueses. Não de portugueses nem de porcos, mas de mentalidade pobre com veleidades burguesas.
Ensaio de Severino Ngoenha, Eva trindade, Giveraz Amaral e Carlos Carvalho gentilmente cedido para publicação neste site.