O absoluto é a dimensão que a razão não alcança
GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS*
A questão da existência ou inexistência de Deus levanta um sem-número de questões filosóficas dignas de serem pensadas. É verdade que, como disse algum filósofo, não existindo Deus tudo é permitido? Será que a moralidade humana depende da existência de Deus? Talvez tenhamos a tendência a responder positivamente e dizer que a ação humana está intimamente atrelada à Sua existência. Mas, como decidir sobre a incorreção de uma ação, por exemplo, num Estado que se declare ateu? Ou, noutro caso, como dizer a um ateu que agiu erroneamente? Deus viria a ser exclusivamente a consciência culposa do homem ou, pior ainda, só de quem n´Ele acredita?
Vários argumentos podem ser dados para mostrar a fragilidade moral de tal posição. Pois, mesmo aceitando a existência de Deus, a ação moral não pode ser julgada em virtude de um parâmetro externo ao agente moral. Noutras palavras, não é pela existência de Deus que agimos bem ou agimos mal. Não é pela sanção divina das nossas ações que elas são corretas. Ao contrário, porque elas são corretas teriam e deveriam ter a sanção divina. Se isso é assim, nas próprias ações estaria aquilo que as torna corretas ou incorretas. Que Deus ou os homens as concebam como uma coisa ou outra dependeria de elas, em si e por si, serem louváveis ou condenáveis. Nesse caso, é a existência da ação, e não de Deus, que torna qualquer ação correta ou incorreta. Deus, portanto, condenaria uma ação por ela, em si mesma, ser condenável. Esta conclusão, portanto, torna inaceitável a afirmação de que se Deus não existe tudo é permitido. A ação moral, por definição, não é uma obrigação entre cada um de nós e Deus, mas a obrigação de cada um com cada um, a obrigação que temos entre para com os outros. Se Deus não existisse, os homens ainda existem, e a especificidade da natureza humana cria certos vínculos que implicam em obrigações, caso os fins que perseguimos sejam não só os da defesa da vida mas os da defesa da vida humana.
E qual é essa especificidade? Talvez consista no fato de o ser humano não simplesmente ter de viver, mas ter de viver dignamente. Quiçá o homem seja o único, entre os animais, que não simplesmente procure sobreviver, mas superar a mera sobrevivência para alcançar o que outros animais não podem querer: a felicidade e a realização como seres humanos. Há filósofos que pensam, como Rousseau, que não é pelo pensamento que nos diferenciamos dos animais. Se isso é assim, há algo que sem sombra de dúvida deles nos distingue: vivemos para ser felizes. Distanciamo-nos, assim, do mero instinto de sobrevivência, negamos nossa mera animalidade na simples procura da felicidade. O que não só nos diferencia deles, como nos distancia e eleva. Sendo todos nós iguais, tal anseio só pode ser comum a todos. Dessa maneira, os valores morais aparecem como intimamente ligados a aquilo que precisamente nos afasta da mera animalidade. De modo que, se agora fizermos a pergunta sobre o que torna uma ação louvável ou condenável moralmente, estaríamos em condições de responder: a possibilidade de promover a felicidade de todos, igualmente, não só de um ou de poucos. Porque sendo a busca da felicidade um anseio universal, próprio, isto é, de todos os seres humanos, as ações morais seriam aquelas que tendem a promover a felicidade coletiva. Se isso, por outro lado, parece difícil de se determinar com facilidade, podemos responder negativamente: são moralmente condenáveis aquelas ações que tendem a tornar qualquer um infeliz.
A felicidade e infelicidade humanas estão intimamente relacionadas a duas dimensões específicas do ser humano: o que resolve nossos problemas materiais e o que tem a ver com nossa dimensão espiritual.
Ouvimos repetidas vezes que nos diferenciamos dos animais pelo espírito. Sim, sem dúvida, mas também somos diferentes do ponto de vista material. Porque como animais não simplesmente nos adaptamos à natureza, a transformamos, e ao fazer isso transformamos a nós mesmos. O trabalho, portanto, nos distingue da mera materialidade dos animais. No entanto, é nessa característica que descobrimos a espiritualidade da nossa natureza. Pois não a transformamos inconsciente ou instintivamente. Fazemo-lo com intenção de fazê-lo, isto é, de caso pensado, intelectualmente. A mera necessidade de sobrevivência, em nós, seres humanos, é satisfeita por uma atividade material, a força de nossas mãos — ela própria fruto de uma atividade eminentemente mental, não instintiva, mas espiritual.
Mas eis o paradoxo: o trabalho, material, é, na sua base, espiritual. A essencial materialidade do trabalho contém o fulcro espiritual da esperança. Trabalhamos com a ilusão dos frutos do esforço realizado. É no trabalho que se aprecia a natureza própria do homem. É no trabalho que se concretiza sua espiritualidade pois é nele que se finca a esperança. A espiritualidade do trabalho se reflete assim, maravilhosamente, na criatividade da mente humana. Não simplesmente refazemos ou repetimos, criamos e inventamos. Nossas necessidades vão além, muito além, do mero consumo que satisfaz o corpo. São as necessidades exprimidas nos anseios intelectuais, espirituais, de superar obstáculos, de vencer desafios, de fazer o impossível, de negar nossas limitações.
E, mesmo assim, tudo isso satisfeito, tudo isso feito, todos os desafios superados, todas as barreiras vencidas, há algo que deve ser preenchido. Algo que falta. Algo que pelo trabalho das nossas mãos e a maravilha do nosso engenho não conseguimos alcançar completamente. É a dimensão que nos põe frente ao absoluto e que a razão não alcança: é a dimensão da fé.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |