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Experiência estética e ontologia social na literatura-V

Luís Kandjimbo |*

O tópico da presente conversa desenvolve-se na sequência do que já expendemos nos textos anteriores. Temos em conta a tríade que articula a realidade, a ficção e o imaginário em torno do sujeito de dois direitos subjectivos, o direito onomástico ou direito ao nome e o direito epistémico. Há um procedimento ficcional que pouca atenção suscita. Trata-se da identidade das personagens de ficção e dos direitos de que elas são titulares. Se Kimalawezu Kya Tumba a Ndala é nome próprio de personagem de um mundo possível e se tal nome próprio tem sentido, vamos falar da sua identidade e da titularidade do seu direito à filosofia e dos bens epistémicos que caem no seu campo.

Ficcional e metaficcional

Na tríade que articula a realidade, a ficção e o imaginário temos elementos subsidiários  para respostas solicitadas em debates semânticos e metafísicos sobre personagens literárias. O motivo de tais debates reside nas interrogações acerca dos mundos possíveis e neles os lugares das personagens ficcionais. Existem apenas na imaginação dos públicos destinatários ou pode a sua existência ser justificada com outros fundamentos? Os seus nomes próprios lhe conferem identidade ou não? Admite-se assim que se possa falar das personagens literárias em dois planos, o ficcional e o metaficcional. No plano ficcional, a identidade é determinada pelo próprio autor do texto narrativo. No plano metaficcional, a identidade depende do trabalho desenvolvido pelos críticos. Há ainda a hipótese de serem consideradas entidades com nomes sem referentes, isto é, nomes vazios. É o problema da referência dos nomes ficcionais. Justifica-se a pergunta. Kimalawezu Kya Tumba a Ndala é um nome vazio? Não tem referente?

Podem ser encontradas respostas à luz de duas perspectivas: 1) Antirrealismo ou irrealismo; 2) Realismo. O antirrealismo estriba-se na tese segundo a qual Kimalawezu Kya Tumba a Ndala seria um nome vazio, em virtude de não possuir referente.Não lhe é reconhecido qualquer estatuto ontológico .De acordo com o realismo, Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, enquanto personagem ficcional, existe. É possível reconhecer-lhe uma identidade, correspondendo o seu nome a um referente. Uma variação do realismo ocorre com as chamadas correntes «criacionistas» segundo os quais as personagens ficcionais fazem parte  do nosso universo ontológico, em virtude de constituírem entidades culturais abstractas que se caracterizam pelo facto de a sua identidade ser produto da criação ficcional dos autores. As questões desdobram-se em outras interrogações. Reconhecido o estatuto ontológico das personagens ficcionais, qual a diferença entre Kimalawezu Kya Tumba a Ndala e uma pessoa real?

Há autores que responderam a perguntas semelhantes. É o caso do filósofo italiano, Angelo Napolano com o seu livro, «Fictional Names», Nomes Ficcionais, 2014,e outros da mesma linha que invocam a «incompletude ontológica» respeitante a determinadas propriedades consideradas nucleares. Quanto a nós, concorre para as respostas o pressuposto cultural da experiência estética. Por isso, nesta matéria,os critérios não podem ignorar a dimensão histórica dos sistemas literários.

 
Nome próprio e descrição

Em três dicionários de Kimbundu que consultámos, o nome próprio Kimalawezu Kia Ntumba-Ndala é uma entrada cuja descrição apresenta semelhanças que correspondem a um referente. No dicionário de Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1857-1894), lê-se: «Dignatário, imperador, rei ou potentado. Não se sabe, verdadeiramente, a significação deste vocábulo».Por sua vez, António de Assis Júnior (1878-1960), escreve: « Aura; espírito sideral. Personagem mitológica que figura como soberano insigne ou grão-potentado nos contos, fábulas ou histórias. Astral.» Baseando-se nos anteriores dicionários, Óscar Ribas (1909-2004)elabora uma entrada em que se lêo seguinte: «Personagem fabulosa de grande  poderio. Potentado lendário. Figura nos contos e adivinhas da literatura tradicional kimbundu. Aura de Parente de Querença de Amigo». As versões dos Jisabhu coligidas por Héli Chatelain (1859-1908) têm a mesma descrição a que corresponde esse referente.

Ao classificar o tipo de narrativas em que são agentes personagens ficcionais auto existentescomo Kimalawezu Kia Ntumba-Ndala, alguns autores europeus designam-nas como «lendas de seres extraordinários e fabulosos», verificando-se que os nomes próprios das referidas personagens etiológicas representam a negação da crença na omnisciência, omnipotência e omnipresença de Deus. Deriva daí a diferença entre personagens ficcionais literárias e personagens de narrativas mitológicas, excluindo-se estas últimas da tipologia literária por lhes faltar valor cognitivo. O pressuposto cultural da experiência estética torna inútil semelhante classificação.

Na genologia literária angolana, a alusão que se faz a esses heróis extraordinários permite identificar um modelo de comportamento moral em todos os protagonistas dos mitos de criação, personagens com nomes próprios que os associam à cosmogonia Bantu, sendo a profissão um dos mais significativos traços identitários. De um modo geral, a afronta a Kalunga, Suku, Nzambi, a errância e o combate levado a cabo contra os ogres, makixi, os espíritos malignos e outros adversários predadores, definem a personalidade dos heróis iconoclastas africanos. Por exemplo: Kalitangi (Umbundu), Kimalawézu Kia Tumba-Ndala (Kimbundu), Nambalisita (Nyaneka-Humbi) e Ndalakalitanga (Cokwé), Mwindo (Nyanga). São personagens que se autolegitimam. Geram-se a si mesmos. Nascem já caçadores adultos, armados com os instrumentos do ofício. Atribuem-se a si mesmos os nomes próprios. Portanto, a sua interpretação requer profundos conhecimentos sobre a teoria dos nomes próprios e das personagens ficcionais sendo-lhes reconhecida uma dimensão ética e cognitiva.

 
Sentido e referência

O sentido e a referência do nome próprio de Kimalawézu Kia Tumba-Ndala levantamvários problemas que se prendem com o estatuto e a natureza das personagens ficcionais e objectos não-existentes. A este propósito formulam-se perguntas: Por que razão nos importamos com estas personagens ficcionais? Existem ou não existem?

Há igualmente questões epistemológicas, ontológicas e éticas: a) Como é que se pode chegar à conclusão de que objectos ficcionais são objectos cognoscíveis? b) Que estatuto se pode atribuir às personagens ficcionais que, pertencendo a mundos possíveis, têm as suas peculiaridades em virtude de serem inexistentes? c) Faz sentido cultivar o altruísmo, a caridade, a simpatia ou a empatia por personagens ficcionais e, perante dilemas morais, tomá-las como modelos de conduta, em detrimento de pessoas reais?

Falemos um pouco dos debates que, neste domínio, se desenvolvem hoje no campo da Filosofia da Literatura nos Estados Unidos da América e na Europa. No contexto da filosofia analítica anglo-americana, a história regista a controvérsia que, opondo «eliminativistas» e «acomodacionistas», teve início no princípio do século XX. O debate tem vindo a evoluir para outros caminhos. O acomodacionismo tem o seu primeiro arauto em Alexius Meinong (1853–1920) com o seu artigo «The Theory of Objects»Teoria dos Objectos, publicado em 1904. Lança as bases daquilo a que se vai designar por acomodacionismo. O filósofo austríaco entende que os «objectos não-existentes» devem ser considerados como objectos de conhecimento, na medida em que os factos a eles associados podem ser cognoscíveis.

O eliminativismo é representado pelo britânico Bertrand Russell (1872–1970). As primeiras posições críticas contra as teses de Meinong assinalam a sua inscrição no debate. Os eliminativistas defendem a eliminação dos objectos ficcionais da visão ontológica do mundo.Por seu lado, os acomodacionistas admitem que quer os objectos não-existentes, quer os existentes possuem as mesmas propriedades de existência. Por isso, para alguns autores as personagens ficcionais não são «objectos sem ser», objectos inexistentes. São, ao invés, objectos abstractos. É o caso de Peter Inwagen que as descreve como entidades teóricas da crítica literária. Assim, recorrendo ao argumento do compromisso ontológico, afirma que as personagens ficcionais existem. Já Amie Thomasson entende que as personagens de ficção são entidades, artefactos criados e abstractos, por dependerem de actos linguísticos e da contínua existência de obras literárias. Neste sentido, os objectos ficcionais são históricos, não podendo ser intemporais. Ao conceber objectos ficcionais como artefactos abstractos, acrescenta Amie Thomasson, podemos oferecer critérios de identidade para objectos ficcionais tanto em obras literárias quanto aqueles que se adoptam para objectos comuns. Mas também se aproximam mais do modo como são tratadas as personagens ficcionais como iguais ou diferentes. Por outro lado, levanta-se o problema de saber se, ao dar sentido ao nosso mundo, devemos admitir personagens ficcionais na nossa ontologia? Se assim for, com que fundamento?

Amie Thomasson considera que a opção por uma ontologia visa seleccionar a que se revela mais adequada à compreensão da nossa experiência e do discurso sobre o mundo. O que exige uma teoria capaz de sustentar a análise do que diz respeito à nossa experiência.

Ora, qual poderia ser a nossa posição perante a controvérsia ontológica sobre os critérios de identidade e dos nomes próprios das personagens ficcionais auto existentes em Angola?

Os trabalhos publicados no domínio da antro ponomástica concorrem para a busca de respostas. Além da já mencionada bibliografia dos missionários, importa referir especialmente trabalhos de alguns autores. Óscar Ribas com o seu segundo volume do Missosso  que comporta uma secção de categorias de nomes próprios em Kimbundu. De igual modo, o Pequeno Dicionário Antroponímico Umbundu, de 2003, do falecido antropólogo angolano Francisco Xavier Yambo e uma versão publicada de uma dissertação de Mestrado, defendida na Universidade de Western Ontario: O Nome na Identidade Umbundu. Contributo Antropológico, de 2009, livro de Jorge Simeão Ferreira Chimbinda. De resto, afigura-se necessário conhecer as propriedades que são atribuídas a essas personagens ficcionais autoexistentes.

 
Direito à filosofia

Nos já referidos seis exemplares de Jinongonongo (enigmas ou adivinhas), trazidos à conversa, identificamos uma figura de pensamento,a metonímia, que é um recurso linguístico e, ao mesmo tempo, cognitivo. O meu interesse desdobra-se para uma caracterização de todas estas personagens ficcionais das literaturas africanas que se autolegitimam, tais como Kalitangi (Umbundu), Kimalawézu Kia Tumba-Ndala (Kimbundu), Nambalisita (Nyaneka-Humbi) e Ndalakalitanga (Cokwé), Mwindo (Nyanga). São representativas de sujeitos com uma identidade, capacidade de agir, sendo  titulares direitos sobre bens epistémicos como a crença na verdade. Na verdade, todos os humanos são titulares desses direitos, entre os quais o direito à filosofia.

Para o efeito pretendo dialogar com dois filósofos camaroneses, Marcien Towa (1931-2014) e Fabian Eboussi-Boulaga (1934-2018) que, sucessivamente, questionaram a semântica eurocêntrica subjacente ao conceito de «direito à filosofia» usado nos meios académicos ocidentais, ignorando-se o seu efectivo exercício em África, numa apologia à hegemonia europeia. Importa recorrer à história. No II Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em Roma em 1959, a resolução do «Subcomité de Filosofia», lançava o apelo aos filósofos africanos para o estudos das «tradições dos contos, mitos, provérbios» com a finalidade de deles se extraírem «as leis de uma verdadeira sabedoria africana complementar a outras sabedorias humanas». Considerava-se que o filósofo africano devia ter em conta os  desafios do antagonismo ontológico perante «os filósofos totalitários ou egocêntricos do Ocidente», libertando-se dos possíveis complexos de inferioridade.

 
Conclusão

Portanto, partindo da alegoria do pensamento sistemático e iconoclasta de personagens auto existentes como Kimalawézu Kia Tumba-Ndala, continua a ser necessário refutar essa «alegoria da potência do vencedor» e compreender o alcance das ironias contidas em frases como a que o filósofo  francês, Georges Gusdorf (1912-2000), formulou num artigo, publicado em 1953. Ele entendia que a desintegração da filosofia tinha, entre outros indícios, o facto de o direito à filosofia se ter tornado um dos direitos humanos O direito à filosofia passa a ser um dos direitos do homem, para lá de quaisquer questões de longitude, latitude e cor da pele. Reproduz-se aí a matriz hegeliana da história da filosofia. Como veremos, na nossa próxima conversa, em 1971, o filósofo camaronês, Marcien Towa refutou a verrinosa ironia de Gusdorf. Por sua vez, Fabian Eboussi-Boulaga, em 1977, empregou a expressão «direito à filosofia», referindo-se ao facto de a filosofia fazer parte da definição do próprio Homem, ser intrínseca à natureza humana.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 19 de Novembro, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 19/11/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/experiencia-estetica-e-ontologia-social-na-literatura-v/

Marcos Carvalho Lopes

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