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Resistência Democrática

por Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

A ágora democrática é suposta ser lugar de diálogo, de negociação, de busca de consensos, da razão cordial (Adela Cortela), da razão comunicativa (Habermas), da palabre (Hampaté Ba); resistência – e desobediência – é um conceito pertinente e legítimo em democracia, ou filosofia anacrónica e abuso de linguagem?

Na introdução de Uma Teoria da Justiça, J. Rawls escreve que “os  princípios de justiça são tais que as pessoas engajadas nas instituições, devem poder dizer umas às outras, que a sua cooperação se exerce nos termos em que se acordaram como pessoas livres e iguais, cujas relações recíprocas são equalizáveis, o que exclui a ideia de uma injustiça radical”. E acrescenta, “os que exprimem um ressentimento devem poder mostrar em quê certas instituições são injustas ou como os outros lhes provocaram prejuízo” . A ideia de Rawls é que os homens devem decidir, antecipadamente, as regras sobre as quais vão arbitrar as suas eventuais reivindicações mútuas.

Depois de uma prometida república socialista e monopartidária, os Acordos de Roma e a Constituição da segunda República estabeleceram o quadro jurídico e institucional que deveria nortear, a partir de então, a nossa democracia e o nosso viver-em-comum. Essas  regras são, hic et nunc, grosseiramente violadas, ainda por cima, por parte daqueles que têm a responsabilidade de fazê-las cumprir. Como  reagir a esta oxímoro ?

Se as regras não fossem justas e, por isso, não se pudesse aderir a elas em consciência, então era contra essas regras que nos deveríamos insurgir e até revoltar. Isso justificaria um esforço jurídico de mudança das regras da convivência civil, pois «leis e instituições, por mais eficazes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas» (RAWLS, 1997:4).

Reflectindo com Miquel Abensour – a partir do manuscrito de Marx de 1843 (“La Démocratie Contre l’État” (1997 ) – e com  Pierre Clastres – a partir de uma perspectiva etnológica (“La Société contre l’État”, 1974) – e contra eles, é o Estado em Moçambique  que  compromete a sobrevivência da sociedade e da democracia, através de uma governação negativa que restringe os horizontes, sobretudo dos mais vulneráveis e dos mais jovens. Não é só porque não tem nenhum projecto, mas também  porque aborta, niilisticamente, toda e qualquer possibilidade de projecção; João Mosca fala de um Estado capturado, e Azagaia de um Estado vampiro.

 Aqueles que redigem as leis e os que deveriam fazê-las respeitar, são os primeiros a manipulá-las, a transgredi-las, a usá-las a seu favor. Contra a injustiça, o abuso, a corrupção, a mentira, a usurpação, temos o dever de resistir e a resistência política reenvia-nos, necessariamente, à questão da desobediência. 

 A resistência não é um capricho ou uma denegação, mas a necessidade legítima, que corresponde à ideia e ao ideal mesmo de democracia. A resistência – e a  consequente desobediência civil – não está na margem ou no limite da democracia, mas no seu próprio fundamento. Ela não é denúncia ou renúncia do contracto social da moçambicanidade, mas a sua reinterpretação e até afirmação.

Cada indivíduo devia ter  direito à palavra, cada cidadão devia reconhecer-se no que é dito, feito ou mostrado na sociedade; cada um tem o dever, de certa maneira, de emprestar a sua voz e aceitar que a sociedade fale em seu nome. É a possibilidade de uma harmonia de vozes, de uma “Ubereinstimmung” – para retomar a famosa expressão de Wittgenstein – que define o acordo social. A desobediência é a solução que se impõe quando há dissonância. Os sons que chegam aos ouvidos ( como os que nos vêm da BO)  são cacofónicos porque o discurso é falso.

 Volens nolens, a resistência torna-se necessária devido a cooptação liberalista e a confusão entre democracia e pecuniocracia da segunda Republica, que  fissurou as fortalezas protectoras do nosso viver-em-comum (comunia). Perante a magnitude do fenómeno, é legitmo que nos  perguntemos  com que linhas de defesa podemos ainda contar. Com que instrumentos políticos, intelectuais se pode construir uma alternativa credível, capaz de realizar uma sociedade justa e transparente?

Falar de resistência é já denunciar a crise da nossa comunidade e do nosso viver-em-comum. A questão da desobediência não concerne só aqueles que não falam, aqueles que, por razões estruturais, não podem falar;  também diz respeito àqueles que, por cobardia, ficam no silêncio. O problema não diz respeito só aos excluídos, aos que não têm direito à palavra; mas também àqueles cuja palavra não é ouvida ou é desvalorizada. Resistir a um poder promíscuo e concupiscente (Pascal), não é uma simples denegação do consentimento. Ao contrário, define a condição moral da democracia ordinária. Daí a condição desconfortável do intelectual, que deve acompanhar a sociedade que reclama e exprime o seu desacordo.

Existem argumentos que atestam a deslegitimação radical da nossa democracia e obrigam a acções de resistência: a dólarocratização da política, a promiscuidade entre a política e os negócios, a corrupção, a ausência total de mecanismos de controlo do poder por parte dos cidadãos, a incapacidade dos cidadãos em fazerem as escolhas fundamentais, a manipulação das percepções colectivas, a falta de ofertas políticas alternativas. ¿Como quebrar este círculo vicioso e viciado de manipulação? 

Há quinhentos anos, em plena crise do massacre, na Guiana, de camponeses que se tinham insurgido contra o imposto sobre o sal, um jovem, com a idade compreendida entre os dezasseis e os dezoito anos publica um livro iconoclasta, não só para o poder mas também para a filosofia política, que continua a interpelar-nos ainda hoje. Trata-se de La Boétie e o livro intitula-se, “Discurso Sobre a Servidão Voluntária” que terá uma vida difícil e clandestina e só será definitivamente republicado em 1976 pelas mãos de Miquel Abensour.

O jovem filósofo interroga-nos, sobre o segredo que nos leva a obedecer. Existe uma retórica bem estabelecida sobre a indignação política. Basta recordarmo-nos do anátema de Platão contra os tiranos cruéis e mergulhados na luxúria, ou ainda dos vitupérios de Tácito e Suetónio aos sanguinários imperadores romanos. Desde sempre, o pensamento político foi severo contra os déspotas que ordenam massacres contra as populações. Com La Boétie, porém, o objecto da indignação muda de direcção. Como é que o povo, pergunta-se o filósofo, se pode deixar assim dominar e até, servir com tanto fervor aquele que o despreza e o oprime? O enigma do político transfere-se: já não importa interrogar a monstruosidade do dominador, mas a passividade do aceitante, que ama até a própria servidão. Ecoa, neste texto, o Espinosa do tratado Teológico-Político que se escandaliza ao constatar que, todos os dias miríades de pessoas combatem pela própria servidão como se dela dependesse a felicidade. Foi uma autêntica revolução copernicana no pensamento político: não é o poder que cria a obediência, mas esta que cria o poder.

Para o autor, o que surpreende na servidão, é o desequilíbrio incompreensível sobre o qual ela repousa: milhares de pessoas que se submetem à vontade de uma só.

No século XIX, diante das veleidades imperialistas e coloniais americanas, a posição de  Henry David Thoreau (1817 – 1862) foi simples no seu princípio: não só temos o direito a resistir, mas o dever de fazê-lo, desobedecer, sempre que um governo age contra os seus próprios princípios. Thoreau e Ralph Waldo Emerson recusam reconhecer o governo como seu, recusam dar-lhe a sua voz, recusam que ele fale em seu nome, quando, por exemplo, ele promove a escravatura. 

Thoreau não se limita a abraçar a causa dos abolicionistas e a defesa de John Brown; recomenda mesmo a desobediência ao Estado que corrompe, com a escravatura, os princípios da Constituição Americana: «Eu não posso reconhecer este Estado como meu, porque é também o Estado da escravatura. Se o Estado recusa dissolver a sua união com os proprietários de escravos, então que cada cidadão dissolva a sua união com o Estado». 

A ideia mesma de desobediência civil (Civil Disobedience) nasceu no contexto democrático: nos escritos do filósofo americano Henry David Thoreau e no pequeno círculo de pensadores reunidos à sua volta e do seu mestre Ralph Waldo Emerson em Concor, Massachusetts, nos Estados Unidos. Thoreau e Emerson recordam-nos que quem tem a palavra pode dizer aquilo que os outros não podem dizer. Os governantes, nos Estados Unidos de Thoreau, como no Moçambique de hoje, foram estabelecidos pelos cidadãos para garantir os seus direitos, o poder dos governantes emana do consentimento dos governados. Todas as vezes que uma forma de governo viola este objectivo, o povo tem o direito de o mudar por um outro ou de o abolir. Se não podemos mudar o governo, pelo menos podemos recusar ou suspender o nosso consentimento. Na situação das dívidas ocultas e fraudulentas, que hipotecam o presente e o futuro dos moçambicanos de hoje e de amanhã, não estamos em bom Direito, se o Estado não se dissociar dos corruptos e da corrupção, de denunciar e até, negar a nossa aderência a um tal Estado?

Defensor de um universalismo crítico (Discurso filosófico da modernidade), no “Direito e Democracia” Habermas teoriza uma democracia radical, dominada por práticas de auto-organização. Uma terceira via entre a democracia representativa e a democracia directa. Trata-se de um processo no qual o cidadão, como sujeito consciente, participa num processo contínuo em que a sociedade reflecte e decide sobre si. Tirar a política das elites tecnocratas e dos profissionais da política; organizar uma democracia local, uma relação social não mais fundada sobre tradições partilhadas mas sobre a solidariedade e a co-responsabilidade nascidas da obrigação de decidirmos, nós próprios, em comum. 

Habermas põe a sociedade civil, que ele considera como espaço de deliberação e aprendizagem, como o sujeito da política: trata-se – em nome da reconciliação e do consenso – de re-dar aos homens,  o poder de reflexão sobre a própria experiência  e o controlo do próprio destino. 

O nosso palco político, o Parlamento, é muitas vezes cúmplice da transgressão das leis e da ausência da defesa do interesse colectivo. Uns, por motivos partidários, votam, sempre e de maneira acrítica, leis fraudulentas e contrárias ao interesse comum. Outros, por razões da pecúnia, preferem pautar pela falta de virtude quando os seus interesses egoístas estão em jogo. 

A representação parlamentar não representa, ou representa muito pouco, a nação e o povo. Ela é um simples modo de acesso ou recondução às funções públicas, por detrás das quais se escondem veleidades económicas. As leis são inúteis porque os primeiros a não respeitá-las são aqueles mesmos que têm a maior responsabilidade sobre elas, quer produzindo-as (Parlamento), quer aplicando-as (Executivo), quer fiscalizando-as (Judiciário).

Os partidos políticos do governo e da oposição são amorfos. Neste quadro sombrio da política nacional, o pouco de democracia que temos, devemo-lo aos jovens da sociedade civil e jornalistas, que carregam nas costas o fardo da contestação e a denúncia dos desmandos e da  corrupção estatal, mas também, habermasianamente, o “aumento da esfera democrática”, “da transparência”, “da legitimidade das acções”. 

Devemos  saudar nesses jovens,  a coragem de falar e até de arriscar as próprias vidas em nome de todos nós. Se os combatentes de ontem contra o colonialismo, pelo facto de resistirem, foram heróis, igualmente estes jovens, que resistem hoje contra os que atentam ao nosso viver-em-comum, são, como Siba-Siba, Cardoso, Cistac, heróis do nosso tempo. Este é o preço para uma vida livre e democrática.

Segundo Hegel, a servidão resulta de um rude combate entre duas consciências que lutam pelo reconhecimento : o que cedeu ao medo ao invés de arriscar a sua vida pela liberdade submete-se.



Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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