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Se nos tivessem perguntado

Ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Giverage Amaral, Carlos Carvalho

‘Se nos tivessem perguntado” é o nome que os Zulus da África do Sul passaram a dar a um esplêndido peixe, revelador das contradições da natureza: por um lado, de uma tal beleza, que mesmo o mais bruto dos olhares se deixava seduzir pelos seus contornos estéticos; mas, por outro, extremamente venenoso e perigoso para o consumo humano. Os bóeres, utilitaristas, e no desprezo dos costumes e das práticas “dos que já estavam lá”, lançaram-se sobre o teleósteo com azáfama e gulodice de quem não conhece abstinência. O resultado foi que, como acontece ainda hoje na relação do homem com a natureza, esse ícone de beleza foi uma praga nutricional e dizimou muitos deles. “Porque não nos disseram?”, perguntaram escandalizados – como se para os conquistadores alguma vez a opinião, os conhecimentos e os valores dos submetidos tivessem algum significado – ao que o zulus retorquiram, sarcásticos, “se nos tivessem perguntado!”…  

Da mesma maneira, se Trump tivesse perguntado a qualquer regime no poder em África como se ganham as eleições, nunca teria perdido; se tivesse perguntado à CIA, à DGSE francesa ou à Mossad como se fazem os golpes palacianos, não teria falhado. Mas, “presunção e água benta, cada qual toma a que quer…”

As ultimas eleições norte-americanas deviam nos ensinar que as nações – todas elas – são construções in fieri, que a unidade nacional é um processo sempre a construir; não só em África e em Moçambique mas também na Catalunha e na Espanha, nos Países Bascos e na França, na Baviera e na Alemanha, no alto Adige e na Itália, na Irlanda, na Escócia e no Reino Unido, na Walónia, na Flandres e na Bélgica e, agora sabemos, que é também a edificar uma nação norte-americana entre os unionistas do norte e os confederados do Sul, entre os KKK e os defensores dos direitos cívicos, entre supremacistas brancos e Georgefloydes negros. As eleições americanas também ensinaram que a possibilidade de uma vida social pacífica depende da primazia do Direito, da existência de instituições fortes e independentes – para além dos partidos – capazes de impor, obstinadamente, o respeito pela lei.

Porém, para além da lei e das instituições subsiste a questão do significado da democracia, da relação entre o poder e o povo. Obiden (Obama-Biden) não renunciou a instrumentalizar aquele pobre Deus bíblico – que quando jovem e inexperiente aliou-se só às doze tribos de  Israel, mas que com idade e experiencia se universalizou   e estendeu a sua aliança à humanidade inteira – transformando-o em norte-americano – God bless América (e os outros?) – não renunciou às trombetas faraónicas que o hossanaram como o novo caputmundi, com os bayetes dos doravante súbditos: Ave Caesar, morituri te salutant (ave César, os que vão morrer te saúdam).

Contudo, em nome do perigo das trafulhices trumpistas,  renunciou à presença do povo. Parecia afirmar que, tal como para a FIFA o futebol mesmo sendo o desporto mais popular do mundo pode praticar-se sem público (povo) e sem adeptos (basta o dinheiro da publicidade), também a democracia não precisa do povo, bastam as televisões e as plataformas virtuais

Existem, historicamente, formas – e modelos institucionais – diferentes de relacionamento entre governantes e governados. Nas teocracias ele pressupõe uma distância (abismal) entre o rei/ o soberano/ o imperador e o povo. No Egipto, sobretudo a partir do reinado de Akhenaton e da esposa Nefertiti (iniciado cerca de 1353 a.C.), os quase 2000 deuses anteriores foram banidos e instaurado um monoteísmo baseado no Deus-Sol (Aton), representado pelo próprio Faraó. A metáfora da luz inspiradora e divina foi retomada em várias circunstâncias em épocas mais recentes, como no caso francês do Rei-Sol, Luís XIV (1643-1715), em que o soberano procurou fortalecer a adoração e o culto da sua própria pessoa com celebrações permanentes em Versailles, e com retratos que o representavam como Júpiter, como na tela de Charles Poerson.

O absolutismo e a adoração divina do rei é inimiga do pensamento livre, por isso os filósofos sempre se opuseram a ele. O caso mais famoso dessa oposição foi o de Cícero, filósofo romano, próximo das ideias dos Estóicos e grande defensor da República contra o Império, morto – depois do assassinato de Júlio Cesar – na sua vivenda de Fórmia, a mando do triunvirato composto por António, Octaviano e Crasso.

A segunda forma de relacionamento entre governados e governantes é representada pelo líder popular – com características de líder carismático descritas por Max Weber. As suas principais manifestações apareceram na Grécia democrática, mas sobretudo em Roma, na Idade Média, com figuras como o tribuno do povo Cola de Rienzo, literalmente adorado pelos Romanos durante muito tempo, mas morto pelo próprio povo por ocasião da revolta de 1354. Os grandes líderes ‘populares’ como Mussolini, Hitler, Estaline (depois de Krutschev) tiveram o mesmo destino, adorados durante anos, mas mortos em desgraça e abandonados pelo mesmo povo que tanto os tinha exaltado. No contexto africano são emblemáticas  as figuras de Nkrumah – que sofreu um golpe de estado em 1966, que o obrigou a sair definitivamente do país para cuja construção tinha contribuído – de Mugabe, do Zimbabwe, durante muito tempo considerado o bom pai da pátria e destituído do cargo em 2017; ou ainda de Guebuza em Moçambique, exaltado durante a sua governação e menosprezado logo depois de deixar o seu cargo. Por se oporem  ao absolutismo dos governantes, muitos intelectuais africanos foram perseguidos (Cheik Anta Diop, Teófilo Obenga), exilados (Jean-Marc Ela, Valentin Yves Mudimbe, Wole Soyinka, Chinua Achebe, Mongo Beti, Célestin Monga)  e até mortos (Engelbert Mveng).

Finalmente, o relacionamento governados-governantes pode ter como base uma tradição em que predomina o elemento colectivo – em detrimento do individual – é o caso de democracias maduras, mas também das  sociedades rurais africanas,  com os seus  conselhos dos anciãos ou equivalentes. Nas democracias maduras o líder não ostenta a seu estatuto, a sua importância ou a sua potência. Na  Suíça, Suécia, Noruega, Dinamarca até  se desconhecem os nomes do presidente e/ou ministros, não porque eles/elas não sejam importantes, mas porque o sistema de governação subentende uma democracia em que as decisões são tomadas de forma colectiva; em que os Parlamentos exercem uma função central, e em que as populações têm o direito – de maneira prática e institucionalizada – de exprimir as suas ideias, críticas e sugestões junto das instituições locais. Nas democracias africanas, não institucionalizadas, quando um conselho de pares (geralmente anciãos) debate e toma decisões sobre a vida e o futuro da comunidade, não tem necessidade de adorar ou idolatrar ninguém: o essencial reside  no respeito dos princípios (nomos) e das tradições (nomois). Nestes dois casos o sistema é  mais estável e equilibrado, sem momentos de exaltação e de posteriores vitupérios  ou até de perseguições  contra este ou aquele líder…

A cerimónia da tomada de posse de Obiden, como caput mundi, remete-nos a uma grande questão que envolve, não só o poder simbólico mas também prático, o tipo de liderança – neste tempo de incertezas, para parafrasear Edgar Morin – e desafios planetários que o mundo vai ter. Qual vai ser o lugar deixado à voz dos povos, não só dos que fazem parte do retornado multilateralismo (sempre lateral), mas também  daqueles que sofrem na própria pele os efeitos das mudanças climáticas, dos  terrorismos  económicos (juros das dívidas e dívidas ocultas), militares e, ainda por cima, dos  regimes dos trumps e trampistas locais?

As armas – e atentados – cujo  medo e receio  vos fizeram prescindir do povo, num dos actos simbólicos mais significativos da vossa democracia, aqui (em Moçambique) não amedrontam, matam;  e fazem-no com o cunho da contradição da vossa democracia, do vosso sentido do humano e até do proselitismo da vossa crença num Deus tribal, exclusivamente vosso,  que vos autoriza a toda a espécie de vigarices (e vinganças) contra os outros.

Se nos tivessem perguntado, nós nos teríamos erguido firmes contra  a invasão, não só do vosso capitólio, mas de todos os Munchungues e de todas as Mocímboas do mundo.

Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Giverage Amaral, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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