Marcos Carvalho Lopes
Para Wallace Stevens a imaginação é a mente reagindo à pressão da realidade. No entanto, o que chamamos hoje de realidade seria simplesmente a imaginação dos mortos: desta forma, ser realista é outro nome para o conservadorismo. Precisamos da imaginação para inventar novos caminhos, seja para a nossa vida pessoal, seja para a sociedade como um todo.
O grafite de maio de 1968 “a imaginação no poder” surgiu como uma metáfora que não parecia fazer sentido: apontando para uma utopia “romântica” que não trazia consigo a bandeira vermelha do socialismo, ou melhor, que não se deixava dobrar por nenhuma fórmula pronta.
O existencialismo vai ser o que fizermos dele, dizia Sartre. Dizia também que o homem não tinha uma essência e seria resultado de suas ações. Para John Lennon o rock seria o que “fizermos” dele. Para os jovens de então a política deveria ter essa mesma abertura para o novo. O que seria esse novo? O que nossa imaginação permitir.
O grande inconsciente da sociedade atual está implantado justamente na incapacidade de pensar em alternativas: as coisas são como estão e não existem alternativas. Essa é para Slavoj Zizek a grande ideologia pós-moderna. Se antes a ideologia se dava no nível do saber, ou seja, promovendo certo “ocultamento”; hoje ela se dá no nível do fazer: todos sabem, mas continuam cinicamente fazendo o que sempre fizeram. Como um nazifascista que justificasse seus crimes falando em premissas sociológicas e culturais, mas continuasse com seu comportamento violento e preconceituoso, tomando-o como natural. Vemos o aquecimento global, a destruição das reservas naturais, o colapso de nosso sistema energético etc., e não consideramos a possibilidade real de pensar em alternativas: mais cômodo imaginar o fim-do-mundo!
Essa situação é representada bem pelas palavras de jovem Theo, protagonista do romance Sábado de Ian MacEwan, que com seus 18 anos renega qualquer utopia política: “Quando pensamos nas coisas grandes – a situação política, o aquecimento global, a pobreza mundial –, tudo parece realmente terrível, nada está melhorando, não há nada a esperar. Mas, quando penso pequeno, mais perto –você sabe, numa garota que acabei de conhecer ou na canção que estou compondo com Chas ou em fazer “snowboard” no mês que vem, tudo parece ótimo. Por isso, este será meu lema: Pense pequeno”[1].
Há pouco tempo, atrás Humberto Gessinger soltou uma nota no site dos Engenheiros do Hawaii sobre a música Somos quem podemos ser, dizia: “Uma questão específica de um cara que está estudando a cena musical recente talvez interesse a mais alguém: ele pergunta sobre Somos Quem podemos Ser. Me lembro que esta música provocava duas críticas. A primeira delas é de que soava muito brasileiro, clube da esquina. Eu tomava isso como elogio e agradeço ao acorde com sétima aumentada. A segunda crítica se referia a uma possível passividade da letra. Acho uma leitura apressada. Não estou dizendo que só podemos ser o que já somos…estou dizendo que somos tudo que pudermos sonhar…eu acho…na verdade só parei pra pensar nessa música por que o menino perguntou…e só pensei no refrão…pensar em música pra mim é parecido com fazer exame de sangue…”. O sangue é mesmo burro: corre nas veias sem saber. Só na hora de fazer exame sabemos que ele existe. Se Gessinger não sabe bem o que queria dizer, tem certeza do que não queria… ”Não sei para onde vou, só sei que não vou por aí”, como no poema de José Régio.[2]
Essa canção começa com os versos:
um dia me disseram
que as nuvens não eram de algodão
um dia me disseram
que os ventos as vezes erram a direção
e tudo ficou tão claro
um intervalo na escuridão
(uma estrela de brilho raro
um disparo para um coração)
O que se “descobre”, o grande segredo que aqui se desvenda, parece ser justamente o grande ‘sintoma’ da ideologia: não se trata de encontrar um rosto atrás da máscara, mas do fato de que sempre existe uma máscara. Ao se descrever o sintoma a repetição se desfaz. Não é a toa que, para Lacan, foi Karl Marx quem descobriu o sintoma ao analisar a transição do feudalismo para o capitalismo: se na ordem feudal existiam relações formais de subordinação, nas categorias de suserania e vassalagem, na ordem capitalista essa situação foi camuflada pela liberdade de cada qual para vender sua força de trabalho. Existira a dominação, mas não existiria mais – aparentemente – o dominador. Perspectivas tomadas como naturais de repente aparecem como construtos sociais: é exatamente isso que Marx desvendou ao analisar o fetichismo da mercadoria na sociedade capitalista.
O que era raro torna-se comum ao ganhar valor de mercado. Todas as coisas devem se adequar a esse padrão. Como numa propaganda recente de cartão de crédito, que dizia o preço de vários itens de consumo e a seguir apontava para uma determinada satisfação emocional do consumidor, concluindo: “certas coisas não têm preço, para as outras você tem o cartão de crédito x”. Justamente ao pontuar que “certas coisas não têm preço” a propaganda quer vender cartão de crédito, colocando tudo (até os sentimentos) nesse jogo de valoração mercadológico. Normalizam-se as diferenças, aparam-se as arestas e tudo se torna igual.
Exemplo paradigmático, o slogan “ser diferente é normal”, que utiliza uma qualificação psiquiátrica – o discutível padrão de normalidade – e a ele subordina todas as diferenças. Em verdade, melhor que inverter o dito, num “normal é ser diferente”, seria rejeitar esse padrão de “normalidade” de pressupostos nefastos.
Ao se desvelar algo como ideológico não temos por si só uma solução: a contradição explode como aparência: devemos lidar com ela, tentar novos caminhos, ou empurrá-las para baixo do tapete. A letra continua:
a vida imita o vídeo
garotos inventam um novo inglês
vivendo num país sedento
um momento de embriaguez
A gravação de Somos quem podemos ser é de 1988. Nessa data não existia ainda Big Brother, mas “a vida já imitava o vídeo” e não ao contrário. Num país cheio de sede, teríamos um momento de embriaguez: a abertura política nos dava amplas possibilidades de escolher novos caminhos, mas deveríamos assumir que:
“somos quem podemos ser
sonhos que podemos ter”
Somos romanticamente responsáveis pela nossa autocriação: se não tivermos sonhos, se não tivermos esperança, estaremos condenados a aceitar as coisas como estão. E de quem seria a “culpa” nesse caso:
“quem ocupa o trono tem culpa
quem oculta o crime também
quem dúvida da vida tem culpa
quem evita a dúvida também tem”
A culpa seria de todos aqueles que se deixam dominar pela ilusão. Que apesar de saberem dos problemas preferem agir como se não soubessem e se negam a pensar em alternativas, em algo diferente.Karl Marx lembrava a dialética hegeliana entre senhor e escravo nO Capital dizendo que ”um rei só é rei porque outros homens colocam-se numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam ser súditos por ele ser rei.” Lacan,foi mais longe, ao afirmar que, um louco que acredita que é rei não é mais louco que um rei que acredita que é rei!
Se não pudermos imaginar alternativas, estaremos desde já condenados cinicamente a viver nossa autodestruição.
Cartaz dos Engenheiros do Hawaii na fase Gessinger, Licks e Maltz. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Arte_engenheiros_do_hawaii.s
*Este texto faz parte de um pequeno livro nunca publicado, mas que circula pela internet em diferentes versões. Esse texto é de 2005 e era a tentativa de um graduando de fazer aulas mais instigantes.