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Anton Wilhelm Amo, um precursor do estudo das paixões

Luís Kandjimbo |*

Ora, na década de 90 do século XX, dois editores de uma obra colectiva publicada nos Estados Unidos da América, o psicólogo Kurt W. Fischer(1943-2020) e a psicóloga June Price Tangney, faziam o balanço daquilo a que designaram por “revolução no estudo da emoção”, no mundo ocidental.

Em 2004, insatisfeito com esta categórica formulação, um outro norte-americano, o historiador William Reddy, veio dizer que a revolução no estudo das emoções se tinha registado em três domínios, nomeadamente, na psicologia, como estudo da cognição e aplicação de técnicas de laboratório; na antropologia, com as novas técnicas de campo e um novo aparato teórico para compreender a dimensão cultural das emoções; na história e na crítica literária com a valorização da história das emoções. No dizer de William Reddy, as duas primeiras revoluções, na psicologia e na antropologia, tinham dado lugar a diálogos interdisciplinares. Já entre os historiadores e críticos literários, não era possível observar tais desenvolvimentos. William Reddy tinha percebido que muitos antropólogos consideravam irrelevante o que vinha sendo realizado no domínio da psicologia cognitiva.

Fenomenologia alemã

Pode dizer-se que, após a guinada linguística e textual ocorrida no universo das Humanidades nos anos 70,o Ocidente rejubilava com as atenções dirigidas ao estudo do comportamento e do pensamento, na medida em que a emoção fazia parte das problemáticas privilegiadas. Era a “guinada para as emoções” ou “guinada afectiva”. Inscreve-se aí o lugar que a Filosofia da Emoção viria a ocupar. Chegava-se ao fim da longa travessia de marginalização a que tinha sido submetido o estudo das emoções. Foi nos países europeus de língua alemã com os psicólogos com formação filosófica, mestres tutelares do Círculo de Fenomenologia de Munique e da Escola de Gestalt de Leipzig, que se registaram os primeiros sinais do que viria a ser a “guinada afectiva”. Os discípulos dos referidos mestres tinham iniciado o aprofundamento dos debates, no início do século XX. Merece particular referência o nome de Edmund Husserl (1859-1938) cuja obra impulsionou o estudo da fenomenologia das emoções, especialmente, as “Investigações Lógicas”, âncora da fenomenologia clássica.

Emoção: negativa e/ou positiva?

Na segunda metade do século XX, a exploração do tema desencadeou o desenvolvimento de diferentes linhas de investigação, entre as quais se destacava a taxonomia das emoções. A este respeito, discute-se acerca da dimensão valorativa dos pares dialécticos, positivo/ negativo, e a sua polarização para classificar as emoções. Para alguns filósofos, classificar as emoções em positivas e negativas é uma forma de conferir importância à sua avaliação enquanto critério. Para  Aron Ben-Ze’ ev, a avaliação das emoções negativas tem muito a ver com o facto de possuírem um maior valor funcional, além de requererem mais recursos cognitivos e as respostas aos riscos de eventos negativos, que lhe são associados, serem maiores do que os riscos de eventos positivos. Por isso, as emoções não podem ser neutras, porque ser neutro é não ser emocional.

Mapa do estudo das paixões

A alusão aos países de língua alemã e sua articulação histórica ao continente africano não é aqui casual. Tem justamente a ver com os fundamentos históricos do estudo das paixões, e a necessidade de identificar a posição dos Africanos, na história da filosofia e no mapa actual da produção reflexiva sobre o problema da relação mente-corpo e, por conseguinte, no debate sobre as emoções. Numa perspectiva de longa duração, esses estudos remontam ao século XVIII. Mas, como se sabe, até à segunda metade do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos da América, o lugar de África na história da filosofia era intencionalmente invisibilizado. Tal como referi em texto já publicado nesta coluna, é a partir da segunda metade do século XVIII que os modelos de história da filosofia e o discurso historiográfico ocidental começaram a evidenciar a tendencial omissão de referências ao Egipto Antigo, a nomes e obras de alguns Africanos que se notibilizaram na Europa e em outras partes do mundo. O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um dos mais importantes apologistas desse discurso de negação. Portanto, os Africanos eram simplesmente excluídos do cânone da filosofia. É o caso de Anton Wilhelm Amo Afer cuja tese de doutoramento em filosofia, “De Humanae Mentis Apatheia”, [A Ausência de Sensações e da Faculdade de Sentir na Alma Humana] permite a atribuição de um lugar cativo, entre os filósofos do século XVIII que se dedicaram à exploração do tema das paixões, abordando a “apatheia”, uma das manifestações em que se analisa esse universo da mente humana. Além disso, inscreveu o seu nome entre aqueles filósofos que se propuseram debater o perene problema metafísico, “mente-corpo”, tendo refutado as teses do  dualismo defendidas pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650).

Divulgação da obra filosófica

Até ao século XX, as referências à vida e obra de Anton Wilhelm Amo eram esporádicas. O abade francês Henri Grégoire (1750-1831) dedicou-lhe quatro páginas, em 1808, no livro que trata da literatura africana, das faculdades intelectuais e qualidades morais dos Africanos. Em 1916 e 1918, por iniciativa de um bibliotecário da Universidade de Halle foram publicados dois artigos sobre a biografia de Anton Wilhelm Amo. Progressivamente, se foi produzindo informação sobre essa solitária  presença de um Africano nas universidades alemãs com a extraordinária carreira docente que merecia divulgação. Em 1965, a Universidade Martin Luther de Halle-Wittenberg publicou pela primeira vez traduções da sua obra em francês e inglês.

No continente africano e nas diásporas da África Global, vem crescendo o interesse por Anton Wilhelm Amo Afer. Nos países africanos de língua portuguesa, o ensino da Filosofia Africana, ao nível da formação pós-graduada, pode certamente permitir  um maior conhecimento e reprodução do discurso histórico-filosófico sobre a sua vida e pensamento filosófico. Em língua inglesa, existe uma obra de referência que comporta capítulos consagrados à história da filosofia africana. Refiro-me ao livro “A Companion to African Philosophy”[Compêndio de Filosofia Africana], publicado em 2004, sob a orientação editorial do filósofo ganense Kwasi Wiredu (1931-2022). Contém dois capítulos assinados por dois filósofos ganenes: “Anton Wilhelm Amo”, de William E. Abraham, e “Amo’s Critique of Descartes’ Philosophy of Mind”, [Amo e a Crítica da Filosofia Cartesiana da Mente], de Kwasi Wiredu.

Por outro lado, dois filósofos camaroneses publicaram obras dedicadas ao estudo da vida e pensamento de Anton Wilhelm Amo Afer. São eles, Jacob Emmanuel Mabe e Simon Mougnol. O primeiro é professor de Filosofia e investigador visitante da Universidade Livre de Berlin. Publicou: “Anton Wilhelm Amo. The Intercultural Background of his Philosophy” [Anton Wilhelm Amo. O Contexto Intercultural da sua Filosofia]. O segundo, tradutor dos dois livros do filósofo iluminista ganense, na sua versão em língua francesa, é especialista de Lógica e Filosofia da Matemática. Publicou: “Un Noir, Professeur d’Université en Allemagne au XVIII Siècle” [Amo Afer, um Professor Universitário Negro na Alemanha do Século XVIII], 2010.

Apreciação e fortuna crítica

O registo do discurso filosófico de Anton Wilhelm Amo Afer é apreciável no plano argumentativo e da argúcia problematizadora. Quando se lê a sua dissertação sobre impassibilidade da consciência humana percebe-se que o centro das atenções reside no dualismo do corpo e da alma num exercício que visa travar debate e refutar as teses do filósofo francês René Descartes. Em outra obra, define a filosofia como  comportamento impulsionado pelo intelecto e pela vontade. A filosofia não tem em conta apenas o intelecto, mas também a vontade e as acções que fluem dela. Para Anton Wilhelm Amo Afer, a filosofia é sabedoria e, ao mesmo tempo, uma virtude que consiste no exercício permanente da verdade reconhecida. O objectivo da filosofia é o aperfeiçoamento moral, tanto para a mente quanto para o corpo.

Portanto, quatro décadas após a publicação do livro de Paulin Hountondji, “Filosofia Africana. Mito e Realidade”, que contém um capítulo sobre Anton Wilhelm Amo, já não se justificam os comentários segundo os quais a sua obra não tem sido sistematicamente estudada. A fortuna crítica  e a bibliografia actual, que já não são tão modestas, permitem recomendar, urgentemente, a tradução e inserção da obra do filósofo ganense  no cânone filosófico das instituições de ensino de países africanos.

Bibliografia

Durante o período que residiu na Alemanha, Anton Wilhelm Amo produziu obra notável. Um conjunto de três dissertações académicas e alguma poesia, 1) Dissertatio inauguralis de jure Maurorum in Europa. 1729. [Dissertação Inaugural sobre o Direito dos Negros na Europa.(texto perdido)]; 2)Dissertatio de humanae mentis apatheia, Wittenberg, 1734. [Dissertação sobre a Apatia da Mente Humana. Wittenberg]; 3) [Poesia inserida no anexo da tese de doutoramento em Medicina de Moses Abraham Wolff, Halle, 1737]; Tractatus de Arte Sobrie et Accurate Philosophandi, Halle, 1738. [Tratado sobre a Arte de Filosofar com Sobriedade e Precisão].

É igualmente assinalável o facto de ter tido discípulos que sofreram a sua influência, especialmente das suas propostas sobre a apatia da mente humana. Em 1734, na cidade de Wittenberg, orientou o trabalho de um estudante de filosofia, o alemão Johannes Theodosius Meier, que redigiu a seguinte tese: Disputatio philosophica continens ideam distinctam eorum quae competunt vel menti vel corporì nostro vivo et organico]. [Discussão Filosófica sobre a Natureza Distinta daquelas coisas que Pertencem à Mente ou ao nosso Corpo Vivo e Orgânico].

Contextos, meios intelectuaise académicos

O mais influente dos professores de Anton Wilhelm Amo foi o filósofo Christian Wolff (1679–1754), figura carismática do iluminismo alemão cuja presença era dominante nos meios intelectuais e académicos. Já o filósofo Alexander Gottlieb Baumgarten, (1714–62) tinha sido seu colega. Portanto, Anton Wilhelm Amo, formou-se em Filosofia e Medicina em universidades alemãs, no apogeu do iluminismo. O seu cognome, Afer, que corresponde hoje a “Afro”, devia-se ao facto de sentir orgulho da sua identidade africana. Tomou-o de empréstimo ao escritor cartaginense (tunisino) que viveu em Roma, cujo nome em latim era Publius Terentius Afer, Públio Terêncio Afro (195 a.C.-185 a.C.).

No período em que Anton Wilhelm Amo conquistava notoriedade, nos meios académicos alemães, surgiam outros Africanos ilustres na diáspora europeia, nomeadamente, o abolicionista ganense Quobna Ottobah Cugoano (1757-1791); o missionário da Igreja Reformada Holandesa, Johannes Eliza Capitein (1717-1747); o escritor, Olaudah Equiano (1745-1797); o escritor, compositor musical e ativista, Ignatius Sancho (1729-1780).

Apatia e mente humana

Logo no primeiro capítulo da sua tese, “Dissertação sobre a Apatia da Mente Humana”,Anton Wilhelm Amo Afer clarifica as suas ideias, começando pelo título. Explica que por “apatia da mente humana” entende: “a ausência de sensações e da faculdade de sentir na mente humana”. No vocabulário filosófico grego, a unidade lexemática, π, (apátheia), tem dois sentidos: um metafísico e outro moral. No sentido metafísico, significa impassível, isto é, que não pode ser objecto de afeição. No sentido moral, significa insensível, livre de paixões, estado de impassibilidade.

Neste sentido, sublinha que a mente humana, em geral, é o espírito. Para o filósofo ganense, o espírito “é qualquer substância puramente activa, imaterial, sempre dotada de inteligência em si mesma, operando intencionalmente por si própria, visando alcançar um fim pretendido do qual ela própria tem consciência”. Seguem-se três observações. 1) Compreender e ter consciência de uma determinada coisa são sinónimos; 2) A intenção é aquela operação do espírito, através da qual ele chega ao conhecimento de uma determinada coisa e, consequentemente, segue-se um fim; 3)O fim comporta o acesso e a presença em determinada coisa. A presença e o acesso intervêm após uma operação do espírito com a finalidade de instalá-lo na quietude.

Espírito e paixões

Mais adiante, Anton Wilhelm Amo transita para um outro nível de explicações, definindo os elementos descritivos precedentes. Na primeira explicação, quanto ao espírito, reafirma que “é uma substância simplesmente activa”. Por outras palavras, isto quer dizer que o espírito não admite a existência da paixão em si.

Ao afirmar que “o espírito está além de qualquer paixão”,Anton Wilhelm Amodefine-lhe o sentido e vem fornecer razões para tal. Em primeiro lugar, considera que nenhuma parte, propriedade ou efeito de uma outra entidade pode estar presente no espírito, por intermédio de qualquer tipo de acto. Caso contrário, o espírito conteria em sua essência e substância algo diferente do que deveria conter. Da mesma forma, conter e ser  contido são conceitos materiais, por isso nem podem ser verdadeiramente predicados do espírito. Portanto, o espírito não percebe por meio da comunicação, de tal forma que as partes, propriedades e efeitos da entidade material estejam presentes nesse mesmo acto de mediação. Em segundo lugar, nenhum espírito integra partes, propriedades, e efeitos materiais e sensíveis, por si e por acaso, na medida em que o espírito é o oposto de uma entidade sensível e entre coisas contrárias não há, por isso, comunicação possível.

Entretanto, Anton Wilhelm Amo acrescenta a seguinte observação. As coisas opostas são consideradas contrárias, na medida em que a ausência de uma supõe a presença de outra, e a presença de uma supõe a ausência de outra. Se uma determinada coisa é imaterial, segue-se, necessariamente, que não pode ser material. Portanto, são opostos, pois o predicado de imaterialidade exclui o predicado de materialidade, porque a presença da imaterialidade é a ausência da materialidade. Onde quer que a espiritualidade ocorra, a materialidade estará ausente e vice-versa.

Conclusão

Portanto, em debate com René Descartes, Anton Wilhelm Amo reitera a ideia segundo a qual “o espírito não sente, nem sofre paixão, por meio da comunicação”.Acrescenta ainda que nenhum espírito sente ou sofre a paixão, por meio de penetração. Pode-se admitir com algum humor que o neurocientista português António Damásio não foi o primeiro a denunciar o “erro de Descartes”, no seu livro publicado em 1994. Para compreender a contextualização do pensamento de Anton WilhelmAmo e o “estado da controvérsia” que opõe a Amo a René Descartes parece interessante passar em revista os argumentos porfiados no título III da sua tese de “Dissertação sobre a Apatia da Mente Humana”.Por isso, voltaremos à conversa.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 05/12/2021 em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/jean-godefroy-bidima-e-a-escola-de-frankfurt/

Marcos Carvalho Lopes

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