“Sapere aude” (Quinto Horácio Flaco)
Kant definia o iluminismo como a ousadia (aude) de tomar a palavra em Público. Horácio ia mais longe e desafiava o homem (vir, viris) a ousar pensar, saber e agir.
Moçambique neste momento dirige a SADC, pelo que nos é dada uma oportunidade única, se formos ousados e intrépidos, de propormos uma nova ordem e uma organização regional a partir da qual interagirmos com o espaço global. Na mediocridade ambiente, em termos de valores, pensamentos, convicções, o desafio de Horácio é mais do que nunca de actualidade: sapere aude. Ter coragem de pensar por nós mesmos, reivindicar o direito à iniciativa e tomar a palavra no espaço- mundo.
O aude da Inglaterra e de Churchil em 1941 foi ter a coragem de ir à sua ex-colónia (EUA), para suplicar ajuda na luta contra Hitler, o que significava reconhecer a incapacidade da Europa, sozinha, fazer frente ao poderio alemão. Experimentado no colonialismo, ele sabia que os vassalos, em penhor de vassalagem, tinham que trazer presentes aos senhores, e Churchill levou consigo, e entregou, os planos alemães da bomba atómica roubados de Nuremberg pelos serviços secretos britânicos, que os norte-americanos materializaram, graças ao seu império bélico-industrial e, arianamente, ao invés de emprega-la contra a Alemanha, utilizaram-na contra o Japão. Contudo, o mais importante estava nas condições que os norte-americanos impuseram para a sua intervenção no chamado esforço da guerra: abertura do espaço colonial para o livre comércio, o que correspondia ao fim do império britânico e coincidia com o início do reino norte-americano sobre o mundo. Depois da guerra, isso significou a presença norte-americana permanente no espaço europeu sob forma da NATO, numa forma de ocupação (foi assim que o entenderam os franceses, e por isso não quiseram tropas da NATO no seu território); a criação de instituições internacionais ( ONU, BM, FMI) sob a sua égide e domínio; e, ainda, a elevação do dólar à condição de moeda de referência, consubstanciada num acordo de petróleo com a Arábia-Saudita.
Depois da guerra, a Europa jurou “nunca mais a guerra entre nós”. É preciso sublinhar o “entre nós”, porque o número de guerras que a Europa continua a fazer contra os não europeus é enorme – Vietnam, Argélia, Iraque… – ao mesmo tempo que no seu interior, vai gradualmente, se constituindo numa comunidade, primeiro económica e depois política. Rien de nouveu sous le soleil: dava continuidade ao processo do ius inventionis e ao estabelecimento do direito internacional público de 1500: sempre mais direito intra muros e uma atitude selvagem extra muros. (Luigi Ferrajoli). Aquele mesmo “ entre nós” está só em parte na origem do nascimento da nova Europa, pois esta está também ligada a uma estratégia para preservar a hegemonia e primazia na política-mundo, em queda livre a favor dos norte-americanos e dos soviéticos, e mais tarde de japoneses e agora dos chineses. Tudo isto sob fundo de uma aritmética Constantina: Jerusalém, Atenas, Roma.
Os Acordos de 1941 tinham também ecoado nos ouvidos dos pan-africanistas – e africanos – e está directamente relacionado com a convocação do 5º congresso pan-africano de 1945 por Willliam Du Bois, que terminou com a declaração do direito à autodeterminação da África por Kwame Nkrumah.
Os norte-americanos queriam a abertura do espaço africano para aceder às matérias-primas (caso do Congo e o assassinato de Patrice Lumumba); os Europeus (Franceses, Ingleses, Portugueses) buscavam manter, obstinadamente, a sua hegemonia sobre o nosso continente; os soviéticos a alistar os africanos como soldados da causa do proletariado na disputa contra o capitalismo; e, mutatis mutandis, o projecto Africano era a libertação do continente. É neste sentido que se tem que entender os quatro congressos precedentes, norteados pelo tema e necessidade de unidade e resistência; que se tem de ler a carta de Du Bois lida pela sua mulher na segunda reunião da Organização da Unidade Africana em 1964; que se tem que entender as principais teses de Nkrumah no seu icónico Africa Must Unite.
Porém a panafricana ideia dos Estados Unidos de África não vingou, por causa de dois factores combinados. De um lado as tramóias neocoloniais e do outro, a pequenez de certos líderes ligados ao estatuto presidencial que os seus pequenos espaços lhes conferiam, ou ainda, por causa da dependência e subalternidade assumidas então em relação às metrópoles e hoje aos pretensos doadores. Também não tiveram êxito as ideias da proclamação das independências políticas em espaços culturalmente homogéneos (Cheik Anta Diop) ou economicamente complementares (Mamadou Dia e Mamadou Touré). A África, desde 1963, acomodou-se, em nome da prevenção de conflitos intra-africanos, ao dogma da intangibilidade das fronteiras coloniais e à continuação dos estados coloniais. Volvidos cinquenta anos, com a divisão do Sudão, a deslocação das fronteiras no Congo, a readmissão de Marrocos – colonialista – na União Africana, o dogma da intangibilidade das fronteiras parece estar ultrapassado. Mas sobretudo, os espaços geo-coloniais se mostram hoje microscópicos face à globalização, às novas configurações geo-económicas e à constituição de grandes blocos hegemónicos.
No famoso discurso Moçambique está no mar alto, Nyerere deixou claro que foi o pragmatismo político que levou a Tanzânia a apoiar a Frelimo durante a luta armada. Foi também o pragmatismo – e até instinto de sobrevivência – que levou Moçambique independente a apoiar, primeiro o Zimbabwe e depois a África do Sul. Onde se situa hoje o pragmatismo da nossa política?
Moçambique, sozinho, não está à altura de fazer face às ameaças globais: um mundo que junta numa única comunidade os colossos europeus, que associa num mercado único o México, o Canadá e os Estados Unidos, e que tem também os dragões da Ásia. Os sinais da nossa crise são muitos, graves e dramáticos. Não são só a constante e continuada crise da nossa política, democracia, economia, mas sobretudo a nossa incapacidade de sozinhos assumirmos a nossa soberania. Como não podemos responder sozinhos ao desafio e até ameaça que esta nova conjuntura político-económica representa, temos que nos associar a outros.
No passado tivemos que nos associar aos anticolonialistas: socialistas e comunistas. Hoje a necessidade de nos aliarmos a outros é ainda mais importante. Porém, as metamorfoses da política-mundo fazem com que os jogos de alianças tenham mudado. A RDA foi fagocitada pela RFA, a Jugoslávia e a Checoslováquia já não existem, como não existe a União Soviética e o Comecon. A Polónia e a Hungria não só estão no bloco europeu e na NATO mas sobretudo têm hoje políticas xenófobas. Mas o mais importante é que aqui, na África Austral, o sistema do apartheid foi derrotado e abriu espaço, teoricamente, para políticas mais democráticas, de inclusão e voltadas para o continente.
Por isso, a questão não é quem pode romanticamente (pan-africanismo, União Africana, CPLP) estar ao nosso lado, mas pragmaticamente, quem tem interesse na nossa integridade e na estabilidade como país. Com quem podemos fazer juntos um projecto comum de futuro? A resposta resulta como uma verdade à La Palisse; o lugar onde temos que pensar com seriedade em construir juntos um espaço de liberdade – sem abdicar da dimensão da justiça, invocada com insistência por Malema – é a região Austral da África.
A África do Sul precisa de um Moçambique seguro, estável, sem divisões nem guerras; de um Moçambique sem crises de fome e de desemprego para evitar emigrações, de um Moçambique sem a destruição do seu meio ambiente com abate indiscriminado de árvores e eliminação da fauna.
No passado pensámos a África Austral primeiro, como país da Linha-da-Frente, depois como membro da SADCC. Mas a conjuntura da política-mundo levou-nos então a pensar em negativo, como defesa e protecção contra as ameaças do projecto e das acções do apartheid. Esse combate foi ganho. A raça como categoria da avaliação do ser humano, como diria Martin Luther King, desapareceu em toda a África Austral. E Moçambique, com o seu sacrifício e abnegação, teve um papel preponderante nesse processo.
Porém, durante o processo da transição sul-africana, substituiu-se a SADCC, que era uma instituição de prevalência política, pela SADC que prioriza a economia. Se Moçambique, Suazilândia, Lesotho, Namíbia tiverem que competir com a África do Sul a nível económico bantustanizam-se, como já está a acontecer. Da mesma maneira que se Portugal tivesse que competir com Alemanha, França, Luxemburgo, economicamente, seria literalmente esmagado. A força da União Europeia é que o que, em princípio, prevalece é a dimensão política. Todos os países membros, grandes e pequenos, ricos e pobres têm o mesmo estatuto e até o mesmo poder de veto na União. Há decisões políticas e de justiça que se tomam em comum e às quais as forças económicas têm que se sujeitar. O político joga o papel fundamental de diminuir a discrepância dos níveis de vida entre os mais fortes e os mais fracos.
Contrariamente às teorias liberais (Ricardo, A. Smith) e neoliberais (escola de Viena e escola de Chicago), quando se deixa à economia campo aberto para agir e decidir sozinha, esmagam-se, darwiana e socio-biologicamente, os mais fracos, como temia um antigo primeiro-ministro canadense quando dizia “fazer acordos com os Estados Unidos é como dormir com um elefante, quando ele se vira, te esmaga”.
O nosso paquiderme regional é a África do Sul. Se deixarmos que o nosso tipo de cooperação seja simplesmente económico então a África do Sul será o elefante que nos esmagará com os seus ShopRites urbi et orbes, preterindo e desencorajando as produções locais. Mas viver sem a África do Sul é também permitir que a competição-mundo (chineses, americanos, europeus…) nos esmague.
Aude, é preciso que ousemos retomar a iniciativa, e aceitarmos o desafio de transferirmos a nossa visão do global a partir de um glocal regional: não só Moçambique mas também a África Austral. Se queremos perseguir o caminho da liberdade temos que ousar viabilizar a nossa região, não simplesmente com estradas, pontes, turistas, acordos de amizades entre chefes ou antigos camaradas de luta (hoje gangs de dolarocráticos), mas com uma política pragmática e realista, com instituições fortes e, sobretudo, com uma visão do mundo e de futuro que seja comum.
Na RSA existem ainda resquícios do passado e de cumplicidade com fascismos e extremas direitas até nazistas e trumpianas, não são só das elites económicas oriundas do apartheid – Machel temia que os boeres pretos fossem ser piores que os boeres brancos. Por isso temos razões mais do que fundadas para ter receio e desconfiar.
Os franceses tinham um sentimento análogo em relação aos alemães. Porém tomaram a decisão difícil e arrojada de fazer com eles o pacto de um desenvolvimento sociopolítico e económico. Fazer um projecto comum de sociedade com a África do Sul e com os outros países da região é arriscado e temos muito a perder, em primeiro lugar a nossa pequenez. Mas o mais importante é o que temos a ganhar.
Os que delimitaram as nossas fronteiras já estão para além das suas fronteiras enquanto nós continuamos apegados a elas. O que põe em crise os Estados, não são as identidades étnicas nas quais alguns de nós continuam impetrados, mas a globalização e a criação de grandes conjuntos. É diante destes que o baluarte da nossa resistência se tem que levantar.
O nosso aude deve ser acrescido pelo ad unum vertere (convergir em direcção à unidade). Com esta bonita expressão, o dramaturgo Vaclav Havel tentava demonstrar à Europa que a unidade não se pode limitar ao plano económico nem sequer político, mas tem de ir até ao plano cultural. Uma visão comum resolve-se, in primis, num projecto político (que subordina necessariamente a competição económica), mobiliza vontades, cria instituições democráticas que permitem a participação de todos e busca constantemente a justiça.
Havel queria dizer que os comboios de carvão e o aço franco-alemães, equivalentes às nossas estradas de Witbank e Ponta do Ouro, às praias de Bilene e de Inhambane, ao Kruger transfronteiriço, à electricidade de Cabora Bassa, aos supermercados sul-africanos em Moçambique, às escolas e hospitais de Nelspruit, às areias pesadas de Moma, ao gás de Panda não fazem nenhuma união. Mas também os acordos históricos FRELIMO-ANC, não são suficientes para fazer a união. A livre circulação de pessoas e bens leva uns e outros a atravessarem fronteiras, a cruzarem-se nas praias, nos supermercados, mas não os leva a um comum sentimento de pertença, uma mesma visão do mundo e do futuro. Juntos podemos construir um baluarte para defesa e protecção comuns, mas só na medida em que formos capazes de construir um projecto e um destino comuns.
A união não implica perda mas a partilha da soberania como também da responsabilidade: política, económica e social. A partilha da soberania não deve advir porque amamos menos Moçambique. Ao contrário, é exactamente por o amarmos que ocorre que nos associemos aos outros para que a história deste amor possa continuar. Os homens e mulheres que confundem amor com ciúmes acabam por exasperar e até a perder o parceiro ou a parceira.
Precisamos de continuar a “Lutar por Moçambique”, para referenciar o texto mais emblemático da história política moçambicana. Mas o Tempo e as circunstâncias mudaram. Já não se trata de lutar contra o colonialismo do minúsculo e periférico Portugal, mas resistir aos mastodontes e colossos, que ainda por cima se fundem em grandes unidades com vocação imperialista. A necessidade de resistir para continuar o nosso caminho de liberdade é tão importante hoje, como foi no passado ou até talvez mais importante; mas é certamente mais árdua.
Hoje, ainda mais do que antes, o ‘politicar’ para ficar no posto de comando não pode ser o nosso caminho; outros valores, identificados com a esquerda – igualdade , anti-racismo, trabalho, justiça – têm que constituir o essencial das nossas políticas. Temos que defender esses aspectos como base para consolidar uma democracia sempre mais inclusiva e participativa a funcionar com base em instituições fortes e independentes. As principais metamorfoses históricas na África Austral, nas últimas décadas, tiveram Moçambique como protagonista: não pela força – que não tínhamos (e agora ainda menos temos) – nem pela riqueza (apesar de actualmente não estarmos de mãos vazias nesse encontro de dar e receber – para prafrasear Senghor) mas pela ousadia das nossas ideias e ideais.
Este deveria ser o espírito e os objectivos da nossa presidência na SADC.
Severino Ngoenha, Giveraz Amaral, Eva Trindade e Carlos Carvalho
Achei a discussão maravilhosa.
Eu agia com indiferença para essas causas, por causa da repetição do discurso.
Trazer essa nova abordagem, sob a perspectiva da convidada, foi uma verdadeira mudança de paradigma a esse que vos fala.
Sempre aliancei a ideia de ancestralidade ao movimento negro e estava profundamente errado.
Adorei a abordagem de corpo como uma interpretação de quem somos.
Sou latino-americano de pele clara, tenho o cabelo pouco ondulado e de textura lisa, por isso nunca me considerei negro, sequer retinto.
Finalmente pude entender que esse processo de reconhecimento vai além de traços fenótipicos, mas de vivencias e experimentações também.
Preciso URGENTEMENTE me dedicar ao estudo dessa temática.
Parabéns pela excelência do conteúdo!