por Gonçalo Armijos Palácios
1515 ou hoje*
Imagine que acabou de ser descoberto um planeta como a Terra, logo ali, depois da Lua, que por razões inexplicáveis ficou oculto todo esse tempo. Imagine também que é possível chegar lá numa viagem relativamente curta. Tem oxigênio, água, plantas, animais e seres exatamente iguais a nós, só que com costumes diferentes. Todos esses milhares e milhares de anos imaginando que éramos os únicos habitantes do universo e… logo ali, relativamente tão perto, um planeta que pode ser visitado e habitado por nós. A reação que teríamos se um tal planeta fosse descoberto deve ser mais ou menos semelhante à que tiveram os europeus, vários séculos atrás, quando ficou-se sabendo que havia um novo continente e que a Terra era de fato esférica. Mas, sem dúvida, a maior surpresa deve ter sido saber que nesse novo continente havia pessoas como nós, que falavam e pensavam e tinham desenvolvido culturas altamente civilizadas. Deve ter sido mesmo um choque difícil de se explicar em palavras.
Uma emoção semelhante sinto quando vejo o que pessoas muito distantes de nós no tempo sentiram e pensaram. É realmente inexprimível o que sinto quando posso ver o que as melhores cabeças do passado pensavam, quando leio o que diziam, percebo como argumentavam, que problemas tinham e vejo como queriam resolvê-los.
Tenho o prazer impagável de me reunir periodicamente com pessoas irrequietas intelectualmente para, juntos, lermos e discutirmos o que aquelas mentes esclarecidas pensavam há séculos. É o privilégio de poder me sentar com jovens apaixonados pelo mesmo que me apaixona e ouvir o que um Platão, um Aristóteles ou qualquer outro grande pensador ou pensadora tem a nós dizer. Hoje tive esse prazer inefável quando, reunido com meus alunos do curso de pós-graduação, líamos e discutíamos juntos as reflexões de Aristóteles. Como elas são atuais, como elas antecipam problemas com os quais hoje nos digladiamos.
Mas não é de Aristóteles que quero falar. Quero compartilhar com o leitor as idéias que surgiam na minha cabeça ao conversar – seja-me permitida a expressão – com Thomas More, o autor da Utopia, escrita em 1515.
Uma vez que fora decidido que descobriram um novo mundo – o que, imagino, seria equivalente a nós hoje descobrirmos uma Térrea gêmea –, e depois de os europeus terem os primeiros relatos das gentes daqueles lugares, uma das primeiras coisas que devem ter querido saber é sobre seu modo de vida. Que tipo de vida levavam, se tinham ou não cidades, se havia reis, governantes, súditos, se os homens e as mulheres ocupavam os lugares que os homens e mulheres europeus ocupavam, se havia ricos e pobres, ricos muito ricos e pobres muito pobres, afortunados e miseráveis… e tantas coisas mais. Os relatos dos astecas, dos maias e dos incas devem tê-los maravilhado. O conhecimento de sua organização social e principalmente depois de saber que não havia no Novo Mundo miséria nem pobreza como havia na Europa, deve tê-los levado a questionar ainda mais sua própria sociedade. Os ‘selvagens’ e ‘primitivos’ talvez não eram tão atrasados e primitivos assim. “Onde”, devem ter perguntado, “é que nós erramos?” “Qual é a origem das nossas mazelas?”
Respostas a essas perguntas já corriam no mundo ocidental há muito tempo. Há vários séculos. Muitos, aliás. Uma das causas para uma sociedade estar mal organizada – dizia Platão – é a possibilidade de o governante se enriquecer. Ah, a bendita propriedade! A solução do mestre de Aristóteles foi revolucionária: os governantes não deveriam possuir e tudo deveriam ter em comum. É o famoso comunismo de Platão. Comunismo – de mulheres e bens – só para os governantes, diga-se de passagem. Apesar de Aristóteles não concordar com esta solução e tecer duras críticas a seu mestre, concorda no seguinte: se um segmento da sociedade se enriquecer demasiadamente, cria as condições para a sedição, a violência e a própria ruína do Estado. Isso, veja-se, foi dito há mais de dois mil anos.
Mas não muito longe do nosso tempo, o filósofo inglês Thomas More (1478-1535), seguramente influenciado pela necessidade européia de repensar a velha Europa partindo do que já se sabia do Novo Mundo, escreve um livro que é uma crítica dessa velha Europa. Uma crítica seguida do relato maravilhoso de uma terra de lugar nenhum, a ilha de Utopia. A palavra é uma invenção do próprio More. Do grego topos (lugar) e da negação ou cria um ou-topos, um não-lugar. Quem quiser, aqui no Brasil, se deliciar com sua leitura – logo hoje que o Brasil acaba de eleger uma utopia –, adquira a edição da Martins Fontes que traz uma bela Introdução. Nela há uma feliz tradução de ou topos: Nenhures. Pois é… esse nenhum lugar, esse nenhures que nos permite julgar o algures em que vivemos. “Algures” miserável para uns, paradisíaco para outros.
A Utopia é escrita em primeira pessoa como um relato dialogado. A um grupo de pessoas Rafael Hitlodeu conta a viagem que fez à ilha de Utopia. Entre os presentes se encontra o próprio Thomas More que se lamenta: ninguém perguntou e não foi dito onde fica exatamente a ilha de Utopia: “O fato é que não nos ocorreu perguntar-lhe, e nem ocorreu-lhe nos dizer, em que região do Novo Mundo encontra-se Utopia.”[1] O livro e permeado pelo incisivo humor inglês. A primeira mordida é contra a igreja:
existem aqui várias pessoas que desejam ir a Utopia – em particular, um certo senhor muito piedoso, professor de teologia. Não é ele movido de modo algum pela vã curiosidade, mas antes por um desejo de fomentar e promover o avanço de nossa religião, que já teve na ilha um início tão promissor. Para tal fim, decidiu ele conseguir que o próprio Papa para lá o enviasse, talvez mesmo nomeando-o, de antemão, bispo de Utopia. (loc. cit.)
Que ilha é essa? Que se passa por ali? Qual o interesse que os participantes do diálogo têm em saber mais detalhes sobre a tal ilha descrita em 1515? Talvez o mesmo interesse que levou milhões de pessoas, neste 2002, a votar na utopia na qual querem viver. Mais detalhes, na próxima semana.
[1] More, Thomas. Utopia. São Paulo : Martins Fontes, 1999, p. 9.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2002 |