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Existem modelos para literaturas e filosofias nacionais? – II

Luís Kandjimbo |*]

As causas dos equívocos de Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992), os dois filósofos franceses mencionados no texto anterior, residem no seguinte: (1)Atribuição de mérito ao filósofo alemão Friederich Nietzsche (1844-1900), ao associarem o seu nome ao momento genético da noção de “geofilosofia”, tal como escrevem no capítulo que dedicam ao tópico no livro “Qu’est-ce la Philosophie?”, [O que é Filosofia?]; (2) As piadas sobre a filosofia como “milagre grego”, no dizer do filósofo Ernest Renan (1823-1892) e o helenocentrismo filosófico de Martin Heidegger (1889-1976). Ora, nenhuma destas perspectivas estão em linha com o que pensa Nietzsche. Para este último filósofo alemão, a filosofia europeia não surge “ex nihilo”, na Grécia. Como se chega a semelhante conclusão? É das respostas a esta pergunta e outras que podem ser suscitadas que nos vamos ocupar.

Geofilosofia omissiva

Se a geografia da filosofia é a tematização e o estudo da localização das teorias filosóficas e dos filósofos, a proposta de Gilles Deleuze e Felix Guattari, na senda de uma reconstrução histórica da filosofia, contribui para a lacunarização historiográfica que consiste em legitimar a produção de narrativas omissivas. A leitura da obra do filósofo alemão, Johann Jakob Brücker (1696-1770), “Historia Critica Philosophia e a Mundi Incunabulis” [História Crítica da Filosofia do Mundo Antigo],permite concluir que no século XVIII, o discurso dominante nas universidades europeias operava com uma outra geofilosofia universal, sem recurso a omissões. Tratava-se de uma narrativa que situava os fundamentos históricos na época antediluviana, a chamada “filosofia da era dos bárbaros” e seus territórios, isto é, Caldeia, Pérsia, Índia, Fenícia, Egipto e Etiópia. Como se pode perceber, esta é uma outra geofilosofia, anterior aos pré-socráticos. Na génese da filosofia grega está uma dívida civilizacional relativamente ao Egipto, à Índia e à Pérsia. Esta é a tese de Friederich Nietzsche.Ele pensa na filosofia, suas articulações com o território, processos culturais e históricos. Estabelece-se uma conexão com o conceito de geohistória, através do qual o historiador francês, Fernand Braudel(1902-1985), dialogava com Nietzsche. Por geohistória ele entendia “o estudo de uma dupla ligação, da natureza ao homem e do homem à natureza, o estudo de uma acção e uma reacção, misturadas, confusas, repetidas infinitamente, na realidade cotidiana[…].”

Contingência e empréstimo civilizacional

Friederich Nietzsche, que era um filósofo com uma sólida formação filológica, desenvolvia reflexões que recuperavam a narrativa de historiadores da filosofia europeia, tais como Johann Jakob Brückerque, tendencialmente, vinha sendo abandonada pela historiografia do século XIX. Sigamos o pensamento de Nietzsche. No seu ensaio “Die Philosophieim Tragischen Zeitalter der Griechen”,[A Filosofia na Época Trágica dos Gregos], 1873, escreve o seguinte: “Nada é mais absurdo do que atribuir aos gregos uma cultura autóctone. Pelo contrário, eles invariavelmente absorveram culturas vivas de outros povos. Se foram tão longe, isso deve-se precisamente ao facto de terem sabido retomar a lança, no lugar onde os outros povos a deixaram, arremessando-amais longe.”

Por outro lado, alguns especialistas da obra de Nietzsche, entre os quais o alemão Stephan Gunzel, identificam estratégias argumentativas que operavam com diferentes metáforas geográficas, especialmente a alusões ao “preconceito ocidental [occidentalisches Vorurtheil]” ou ainda ao facto de o tipo colónias fundadas pelos europeus provarem a sua natureza de “besta negra”, tal como registou nos seus “fragmentos póstumos”.

Portanto, Friederich Nietzsche tinha consciência desse empréstimo civilizacional, não podendo a sua “geofilosofia” traduzir o apagamento total da filosofia dos caldeus, egípcios, etíopes, fenícios, indianos e persas. Para todos os efeitos, aquele conceito de Gilles Deleuze e Félix Guattari inspira-se no já referido conceito de geohistória, formulado pelo historiador francês Fernand Braudel, ao qual está subjacente a ideia de que a contingência é irredutível.

A este propósito, o especialista canadiano de filosofia africana, Bruce B. Janz, no seu livro “Philosophy in an African Place”, [A Filosofia num Lugar Africano],considera que a geografia da filosofia, no seu cruzamento interdisciplinar, implica colocar a seguinte questão: “O que é fazer filosofia neste lugar?” E as respostas conduzirão necessariamente a problemas historicamente contingentes, tornando possível entender diferentes tradições filosóficas. A título de exemplo, Bruce Janz refere que a filosofia alemã, “não tem núcleo essencial (não há reivindicações ou conceitos específicos que todos os filósofos alemães devam ter para serem considerados filósofos alemães), mas tem uma história de diálogo disciplinado”. Em conclusão, afirma: “Assim, faz sentido falar em filosofia alemã ou filosofia americana, ainda que não haja nada de essencial ou intrínseco que torne alemã a filosofia alemã […]. A chave reside no pensamento sobre as questões motivadoras às quais os textos respondem”.

Língua e nação

No eixo franco-alemão, debate-se o conceito de nação, línguas, literaturas e filosofias nacionais. Decorridos cerca de um século, o processo de construção iniciado verdadeiramente no XVIII, dava lugar a definições. No posfácio da tradução francesa dos “Ensaios Filosóficos” de Adam Smith (1723-1790), publicada em 1797, um membro da Academia de Berlim, o filósofo e físico franco-suíço, Pierre Prévost (1751-1839),identificava três escolas filosóficas e suas figuras históricas proeminentes. A Escola francesa com René Descartes (1596-1650), É tienne Bonnot Condillac (1714-1780); a Escola alemã com Gottfried Leibniz (1646-1716) e Christian Wolff (1679-1754), e a Escola escocesa com Francis Bacon(1561-1626).Era a língua francesa que gozava de prestígio pelo reconhecimento de uma universalidade racional, nas rivalidades entre as filosofias nacionais europeias. Na Alemanha destacavam-se Johann Gottlieb Fichte(1762-1814) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), em virtude de terem suscitado a “questão da nacionalidade na filosofia”.

Portanto, a história das “filosofias nacionais”, após longas e sangrentas guerras que trespassaram a Europa, estava indissoluvelmente ligada à uniformização linguística do Estado-nação. Esse processo de homogeneização encontrava na filosofia os fundamentos que o justificavam.  Na sua geração, Nietzsche integrou o elenco dos filósofos que atribuíam valor insubstituível à língua alemã. Já em França, Ernest Renan viria a proferir uma conferência na Universidade Sorbonne, no ano de 1882. Definiu a nação como alma e princípio espiritual. A nação é tratada como se fosse um indivíduo cujo capital social é uma “ideia nacional” que assenta no culto dos antepassados, reivindicando um passado heróico, obra de grandes homens e glórias.

Para Ernest Renan, a nação, sendo uma grande solidariedade, era “constituída pelo sentimento dos sacrifícios que se fizeram e dos que ainda se está disposto a fazer”. Tal como a existência do indivíduo a “nação é um plebiscito quotidiano, é uma perpétua afirmação da vida”.

Nacionalismo político e uniformização linguística

A definição de nação formulada por Ernest Renan é apenas uma das várias existentes na Europa. Emergem em diversos domínios do saber, tais como da História, Sociologia, Relações Internacionais, Direito, Teoria Política ou Antropologia. Pode dizer-se que há uma fortuna bibliográfica sobre a matéria. Contudo, raramente se fazem referências aos custos da construção do Estado-nação na Europa e, especialmente, da sua homogeneização linguística. No brocardo em latim “Delendaesuntlinguae gentium!”,[As línguas das nações devem ser destruídas!], resume-se a história dos custos que o nacionalismo político ocidental acarretou, no continente europeu e fora dele. O glotocídio e a glotofagia são dois dos fenómenos do nacionalismo político europeu que foram exportados com o colonialismo moderno. Por isso, justifica-se a remissão para o conceito de “colónia filosófica”, tal como o define a historiadora da filosofia de nacionalidade suíça, Catherine König-Pralong. Os destinos dos referidos fenómenos do nacionalismo político europeu para os quais foram exportados eram os territórios onde os países europas tinham criado colónias de povoamento.

Os dois fenómenos mencionados –glotocídio e glotofagia – estão na origem dos debates jurídico-constitucionais sobre políticas francesas no domínio linguístico e da aprovação de uma Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias de 1992. Tais acontecimentos jurídicos e políticos revelam a ineficácia dos processos de uniformização linguística, fundada no não-reconhecimento da diversidade linguística. Isto quer dizer que, em nome da unidade política do Estado-nação, as línguas de muitas proto-nações ou etnias europeias não foram destruídas.

Tipos de nacionalismo

Por essa razão, o cientista político e filósofo queniano, Ali Mazrui (1933-2014), no capítulo consagrado à filosofia política do nacionalismo, que assina em “A Companion to African Philosophy”, [Compêndio de Filosofia Africana],considerava que o estudo do nacionalismo requer uma clarificação dos tipos de nacionalismo e seus conceitos. É necessário distinguir o “nacionalismo do colonizador” e o “nacionalismo do colonizado”. Isso implica estudar as formas de resistência. De acordo com as tradições historiográficas dos estudos africanos, Mazrui estabelece diferenças entre “resistência primária” e “resistência secundária” ao colonialismo. Numa perspectiva cronológica, a “resistência primária” ocorre quando o poder colonial entra pela primeira vez em determinado território estrangeiro para transformá-lo em colónia. Está subjacente aquilo a que Mazrui designa por “violência primária”. Luta-se pelos limites da comunidade política. A “resistência secundária” é desencadeada por uma comunidade que se encontra sob domínio colonial, durante um determinado período. Empreende-se da violência secundária, pois luta-se pelos objectivos da comunidade política.Com a “resistência primária” combate-se a ocupação do território. Já a “resistência secundária” visa a liquidação do colonialismo já estabelecido no território. Às resistências de cariz político, Ali Mazrui agrega as formas de resistência cultural.

Etnofilosofia ou filosofia nacional?

Em África, o glotocídio e a glotofagia não produziram os efeitos do sentido condensado no brocardo latino: “Delendaesuntlinguaegentium !”, [As línguas das nações devem ser destruídas!]. Por outro lado, não existem reproduções dos debates jurídico-constitucionais sobre políticas linguísticas semelhantes aos que se travam na Europa.

Ora, é possível deduzir daí que em África as literaturas e filosofias podem ser igualmente qualificadas como nacionais? Se assim não for, há alternativas em matéria da sua conceptualização?

As respostas parecem ter sido esgotadas com o “grande debate” sobre a Filosofia Africana, durante a segunda metade do século XX. As posições do filósofo beninense, Paulin Hountondji, permitem classificá-lo como um dos mais intrépidos oponentes daqueles que, nas décadas de 60 e 70, refutavam a existência de uma Filosofia Africana. Num artigo “Langues Africaines et Philosophie: L’hypothèse Relativiste”,[Línguas e Filosofia Africanas: a Hipótese Relativista], publicado na revista “Les Études Philosophiques”, 1982, Paulin Hountondji avalia os argumentos do filósofo rwandês, Alexis Kagamé (1912-1981), um prócer da etnofilosofia.

Hountondji aborda o que lhe parece ser o relativismo linguístico de Alexis Kagamé, considerando que o tratamento conferido pelo filósofo ruandês às línguas bantu se inscrevia nas tendências que prosperaram na Europa do século XVIII, especialmente na Alemanha. Refere-se às teorias de dois filósofos alemães Johann Gottfried von Herder (1744-1803) e de Alexander von Humboldt (1769-1859). Por essa razão, recomendava o estudoda história europeia do sentimento nacional e suas repercussões ideológicas nos movimentos anticoloniais em África. Curiosamente, aflora a tese da relatividade linguística que se revela como pilar da argumentação de Alexis Kagamé. Está em causa a revalorização da língua e das tradições nacionais. O filósofo beninense reconhece que a tese do relativismo linguístico tem valor heurístico, na medida em que fundamenta investigações empíricas pertinentes à lexicologia e à sintaxe comparadas.

Entretanto, Paulin Hountondji não deixa de manifestar o seu apreço pelo valor excepcional da obra de Alexis Kagamé, tendo em conta os problemas de política cultural e linguística, vividos em África. Todavia, Kwasi Wiredu (1931-2022), é o filósofo que no “grande debate” assume uma posição contrária à defendida por Hountondji. Para Wiredu a prática filosófica em África deve obedecer a uma lógica fundada no uso das línguas nacionais. Ele próprio faz uso de operadores da língua Akan do Ghana. É neste sentido que a Filosofia Africana compreende duas componentes, a tradicional e a moderna.

Crítica e literaturas nacionais

Sob uma outra focagem, é oportuno propor a releitura  do livro de Adrien Huannou “La Question des Littératures Nationales en Afrique Noire” [A Questão das Literaturas Nacionais na África Negra], 1989. O crítico literário beninense enunciava perguntas que estão na linha do debate: “São nações os actuais Estados africanos formados após a descolonização?”; “Os acervos literários dos sistemas culturais dos Estados africanos constituem literaturas nacionais?”

É sintomático que nas últimas frases da conclusão geral do livro, Adrien Huannou tenha formulado outra questão, em seu entender inevitável: “Será a literatura beninense de língua francesa uma literatura nacional?”. Responde de modo afirmativo. Considera que “ela é produzida por cidadãos nacionais beninenses, inspira-se nas realidades passadas e presentes da nação beninense e exprime a sua identidade cultural”. Trata-se de uma literatura que “tendo nascido do solo beninense, mergulha as suas raízes no passado do Benin e constitui um espelho no qual se reflecte a sociedade beninense”.

Relativamente à crítica nacionalista, Adrien Huannou refere que o critério da nacionalidade literária permite ter em conta as singularidades de cada uma das literaturas. Do mesmo modo que na Europa os autores e as obras literárias  são classificados em obediência a esse critério, de acordo com os conteúdos socioculturais, vínculos geográficos e políticos, Adrien Huannou entende que não pode ser negada a existência das literaturas nacionais africanas. A função essencial de uma literatura nacional reside no potencial representativo de exprimir, reflectir as diferentes componentes da vida nacional.

Conclusão

Portanto, à luz de uma perspectiva relativista da filosofia, quer seja epistémica, moral, cultural ou linguística, as literaturas e filosofias, em África, não são necessariamente nacionais. A sua qualificação é sempre relativa às razões de justificação das crenças, aos valores morais, bem como às línguas e aos sistemas culturais de que fazem parte. Por isso, admite-se que haja alternativas em matéria de conceptualização da nação, dos nacionalismos, das literaturas e das filosofias africanas. Os conceitos de etnia e nação têm merecido abordagens diferentes e controversas. Por exemplo, o cientista político democrata-congolês, MwayilaTshiyembe, parte do pressuposto segundo o qual existe uma “especificidade africana da nação”. A nação pode ser definida em sentido sociológico. É o conceito de etnia. Ou ainda nação em sentido jurídico. É o conceito de Estado. Para Tshiyembe a nação sociológica constitui-se como comunidade histórica, cultural e de destino, que se funda na vontade de os seus membros viverem juntos. Esta é a razão por que descreve a etnia com base em dois critérios – o espiritual e o material – que no Ocidente definem a nação. Mwayila Tshiyembe chama igualmente a atenção para o facto de as realidades multiétnicas de África não representarem necessariamente uma maldição ou uma exclusividade. A Europa é também povoada por etnias cujas línguas não morreram.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 06/08/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/existem-modelos-para-literaturas-e-filosofias-nacionais-ii/

Marcos Carvalho Lopes

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