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Utopia III: Violência e Reforma Agrária

por Gonçalo Armijos Palácios

            Discutindo a Utopia de Thomas More, vimos na semana passada como surgiram os problemas no campo na Inglaterra do fim do século XV e começos do XVI. Os nobres decidiram transformar as terras cultiváveis em pastagens para se enriquecer com a venda da lã das ovelhas e, expulsando os trabalhadores das terras, jogaram na miséria exércitos de camponeses. Sem terem estes nada para comer e impossibilitados de trabalhar, dedicaram-se ao furto e à vagabundagem. Furto e vagabundagem convertidos em delitos puníveis com a morte.

            A redução das terras cultivadas trouxe como conseqüência a escassez de produtos agrícolas o que, por sua vez, aumentou o preço dos alimentos. Como sempre, bom para uns poucos privilegiados, ruim para a maioria da população,  uma desgraça para os que já nem trabalho tinham para se manter. Vejamos como se diagnostica o problema no texto de More:

Assim, a ganância de alguns transformou em desastre aquilo que constitui uma das maiores vantagens naturais da Inglaterra. Na verdade, é o alto preço dos alimentos que faz com que tantos proprietários de terras demitam seus empregados, uma atitude que os transforma, inevitavelmente, em mendigos e ladrões. E, diante dessas duas opções, um homem valente vai sempre preferir o roubo à mendicância.[1]

Pessoas que não iriam esperar passivamente morrer de fome é óbvio que responderiam com violência a violência dos donos das terras. Pois antigamente, assim como hoje, os que se revoltam contra a injustiça de ver terras ociosas são duramente reprimidos – repressão levada a cabo para favorecer os interesses de poucos em detrimento da vida de muitos.

            Já vimos o diagnóstico de um dos interlocutores da Utopia, vejamos a receita:

Acabai com essas práticas perniciosas, passai uma lei que obrigue todos os que destruíram fazendas e cidades a reconstruí-las, ou a entregar as terras àqueles que se dispuserem a fazê-lo. Limitai o direito que os ricos têm de comprar toda  e qualquer coisa, e de estabelecerem verdadeiros monopólios. (Loc. cit.)

O desejo de uma reforma agrária radical, note-se, não é recente. E o que naquela época poderia soar como impensável e irrealizável (proibição de possuir terras produtivas ociosas ou manter monopólios) já faz parte, há muito tempo, da legislação de muitos países. A legislação proibindo monopólios e oligopólios foi efetivada muito mais facilmente pois afetava o interesse de pessoas muito poderosas que ficavam fora do grupo que detinha o monopólio ou do oligopólio. Já a questão da reforma agrária, por só prejudicar os mais pobres, até agora vai ficando no papel. Punem-se duramente as invasões de terras, por exemplo, mas não se mostra igual vigor na eliminação das causas dessas invasões. Assim, o problema da violência no campo só tende a se agravar. Ao castigar-se o invasor age-se sobre o efeito, não sobre a causa. Deixa-se intocado o que verdadeiramente provoca essas invasões.

No desemprego, jogam-se milhares de pessoas no beco obscuro da falta de esperança. O beco do alcoolismo, do abuso de mulheres e crianças, da violência em todas suas formas. Crianças nascem, crescem e aprendem os valores da ética do antivalor, do vale-tudo, do salve-se-quem-puder, do Deus-nos-acuda. Crianças aprendem na escola do desespero a sobreviver como feras numa selva em que tudo está contra elas, todos são seus predadores, tudo em contra, nada a favor, nem sequer seus próprios genitores – quando os conhecem. Assim, as crianças dos sem-empego, sem-teto, dos sem-terra e sem-esperança crescem na escola natural do tudo-é-permitido, do faça-o-que-puder… Ou, como se diz na Utopia:

Trata-se, quando muito, de uma justiça ilusória que nada tem de real ou socialmente desejável. Permitis que os indivíduos recebam esse tipo de formação desde a mais tenra idade, quando já começam a passar por esse processo sistemático de corrupção. Por fim, quando se tornam adultos e cometem os crimes que, obviamente, foram criados para cometer, caem sobre eles os mais terríveis castigos. Em outras palavras, criais legiões de assaltantes para depois mandá-los para a forca? (Ibid. p. 35.)

            A pobreza, o desemprego, a falta de oportunidades, que poderia tudo isso provocar a não ser indivíduos dispostos a tudo para sobreviver? Todos esses trechos da Utopia nos devem levar, necessariamente, a pensar o Brasil e a América Latina de hoje. Devem-nos levar a pensar no aumento da violência, tanto na cidade como no campo, no aumento da delinqüência e do crime organizado. Que estão semeando os países hoje senão as condições de agudização desses males? Lembremos que a pena de morte para os ladrões, o que a todos nós deve parecer uma medida exagerada, não conseguia deter os roubos e, como vimos na semana passada, os ladrões eram enforcados aos milhares.

“Por quê?”, alguém poderia perguntar. “Por que arriscar a vida simplesmente para roubar?” Porque, na verdade, não era simplesmente para roubar mas roubar comida para não morrer. Ante a morte por inanição ou pela forca, talvez seja menos desumana esta última. Numa linha de raciocínio semelhante, lemos na Utopia:

Pois quem estaria mais disposto a iniciar uma revolução do que um homem totalmente insatisfeito com suas condições de vida? Quem teria um desejo mais forte de virar tudo de cabeça para baixo, na esperança de obter alguma vantagem pessoal, do que o homem que nada tem a perder? (Ibid., p. 57)

Ninguém, obviamente, e nisso coincidem várias intervenções dos interlocutores da Utopia com o que Aristóteles tinha dito muito tempo atrás: uma das causa das revoluções nos Estados é a desigualdade. Só aqueles que nada têm a perder, nem sequer a própria vida, podem ter medo de, numa revolução, perdê-la. Já a estão perdendo como miseráveis, aos poucos, por que não perdê-la de uma vez querendo resolver sua própria desgraça? As prisões ou os fuzis de soldados ou de assassinos de aluguel certamente não os intimidarão. Não os amedrontaram no passado, não o farão no futuro.


[1] Thomas More, Utopia. São Paulo : Martins Fontes, 1999, pp. 33-4.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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