Gonçalo Armijos Palácios
Na Utopia de Thomas More, como temos visto nas últimas semanas, vem novamente à tona a questão da propriedade e, mais especificamente, a condena à propriedade privada. Um Estado em que absolutamente não haja alguma forma de propriedade parece ser uma impossibilidade. Tanto nos países do antigo bloco socialista como hoje na própria China Continental várias formas de propriedade eram e são permitidas. Então, se parece uma impossibilidade a existência de um Estado sem propriedade privada, por que a insistência de alguns filósofos, de épocas tão diferentes, em apresentar propostas que a eliminavam?
A República de Platão é a primeira grande obra sobre o Estado e nela vemos também o primeiro grande ataque à propriedade privada. Como sabemos, Platão proíbe os governantes de possuir. Tudo é comum. Se os governantes possuíssem, pensava Platão, seriam levados a governar visando a defesa dos seus próprios interesses.
A crítica à propriedade privada na Utopia de Thomas More é muito mais radical e muito mais detalhada. Tínhamos visto um trecho em que Rafael Hitlodeu afirma: “Para vos falar a verdade, meu caro More, não vejo como se possa pensar em justiça ou prosperidade verdadeiras enquanto existir a propriedade privada e todas as coisas tiverem no dinheiro o seu supremo parâmetro…”[1] Poucas linhas depois encontramos uma defesa de Platão: “Quando penso em tudo isso, concordo ainda mais com Platão, e em nada me surpreende a sua recusa em legislar para uma cidade que repudiava os princípios igualitários.” Como vemos, as idéias igualitárias já circulavam no mundo ocidental há muitos anos, muitos mais do que a maioria de pessoas pensa. É necessário ficarmos claros sobre o que motiva esse desejo de igualdade. Igualdade a respeito de quê? Igualdade em que sentido? Continuando o trecho que acabamos de reproduzir, Hitdlodeu explica:
Para um intelecto tão poderoso quanto o seu, era por demais evidente que uma das principais condições para o bem-estar de uma sociedade era a igual distribuição dos bens, o que, imagino, jamais seria alcançado nos países onde a usura e a ganância reinam absolutas.
O problema está, então, não tanto na propriedade em si, mas na possibilidade de que alguém acumule tanto que deixe os outros sem as condições mínimas para subsistir. Quem acompanhou os artigos anteriores desta série poderá se lembrar de como More decide começar sua Utopia. É sugestivo que não começa descrevendo a ilha de Utopia – que só aparece na segunda parte – mas mostrando a situação terrível de miséria e violência na Inglaterra de inícios do século XVI. O texto, assim, não é tanto sobre uma ilha inexistente como uma crítica da realidade daquela época. É bom pensarmos que as chamadas utopias não são reflexões sem pé nem cabeça mas uma crítica indireta, muitas vezes muito bem fundamentada, das mazelas de uma determinada sociedade. Devemos distinguir, portanto, o mérito da crítica da viabilidade da proposta.
Alguns textos clássicos sobre o Estado partem da natureza humana para fundamentar suas teses. A estratégia daquelas obras, como O Príncipe de Maquiavel, é esta: dado que o homem é egoísta, ambicioso e mau, o príncipe deve agir desta ou daquela maneira. Textos considerados utópicos – tomando ‘utopia’ no sentido de ‘proposta irrealizável’ – também partem da constatação de uma natureza humana egoísta e ambiciosa para fazer tanto a crítica do existente como a descrição do que seria um Estado melhor. Tais textos talvez pequem por não apontar a viabilidade de tal Estado perfeito (ou menos imperfeito), mas não deixam de tecer críticas objetivas do status quo. No caso da própria Utopia, isso pode ver-se claramente – tanto que a primeira parte não é uma mera introdução da obra, nela se criticam duramente as condições de miséria e injustiça da Inglaterra daquele então.
Vários séculos depois, aquela crítica que More fez à Inglaterra do século XVII pode perfeitamente ser feita a alguns países da era globalizada. Cada vez que recebemos dados de organismos que estudam a distribuição de renda no mundo não podemos deixar de lembrar More: uns poucos têm cada vez mais em detrimento de uma maioria que tem cada vez menos. Vejamos este trecho que continua as considerações de Hitlodoeu já citadas:
Pois, quando todos têm o direito de obter para si o máximo que desejam, toda a propriedade disponível, por mais vasta que seja, estará condenada a ficar nas mãos de uma escassa minoria, o que significa que todos os demais viverão na pobreza. (p. 66, meus grifos)
Vemos que hoje, cinco séculos depois, essa afirmação ainda é válida. Mas quais as conseqüências dessa situação perversa? Em palavras do mesmo Rafael Hitlodeu:
Como resultado, ter-se-ão duas espécies de pessoas, cuja sorte deveria ser a inversa: os ricos transformam-se em pessoas gananciosas, sem escrúpulos e totalmente inúteis, ao passo que os pobres são simples e modestos, e o seu trabalho rende muito mais benefícios à comunidade do que a eles próprios. (Loc. cit.)
Consideremos esta pergunta: essa divisão entre ricos, muito ricos, e pobres, muito pobres, é superável ou uma praga que assolou, persegue e castigará o homem seja qual for o sistema político e econômico que escolher? Nossa incapacidade de terminar com tais diferenças é um argumento forte em favor das críticas contra a propriedade privada do texto de More. Perceba-se que, apesar de todo o progresso dos últimos cinco séculos, as palavras de Rafael Hitlodeu podem ser ditas sobre muitos países do século XXI. A convicção de que a causa dessa situação miserável para a maioria das pessoas é a propriedade leva Rafael Hitlodeu a afirmar:
Em outras palavras, estou convencido de que nunca chegaremos a uma justa distribuição dos bens, ou a uma satisfatória organização da vida humana, enquanto não se acabar por completo com a propriedade privada. Enquanto ela continuar existindo, a grande maioria da raça humana, e o que nela há de melhor, continuará vivendo sob o peso de um esforço insano que só lhe traz miséria e ansiedades. (Loc. cit.)
Thomas More, através de seu personagem principal, Rafael Hitlodeu, considera a possibilidade de se resolver o problema por meio de uma legislação que limite a quantidade de dinheiro ou de terras que um cidadão possa ter. Condições sobre a posse da terra nós temos, o que não terminou com a situação de violência e injustiça no campo. É por isso que Rafael Hitlodeu é cético a esse respeito e afirma:
Poder-se-ia, sem dúvida, estabelecer limites legais para a quantidade de dinheiro e terras que uma pessoa possa ter (…) Mas, enquanto a propriedade privada existir, não haverá esperança de cura. Quando se tenta resolver um problema numa parte do organismo político, o que se consegue é apenas exacerbar os sintomas em alguma outra parte. O que é remédio para algumas pessoas é veneno para outras, pois ao vestir um santo temos sempre que despir algum outro.
Parece, portanto, que só temos esta opção: ou inventar um novo socialismo, um novo tipo de comunismo, ou tentar mudar as coisas por meio da lei. Mas a lei é feita por homens, e os homens têm interesses. São legisladores, homens e mulheres, muitos dos quais têm muito dinheiro e muitas terras. Quantos legisladores nos diversos parlamentos do mundo açambarcam fortunas e são grandes latifundiários? Se eles próprios não o são, quantos são controlados por aqueles que, financiando suas campanhas, controlam seus votos? É por isso, entre outras coisas, que o problema do campo ainda não foi resolvido. Será possível pensar de uma maneira realista, então, que uma verdadeira reforma agrária é possível e que a miséria no campo vai algum dia acabar?
[1] Thomas More, Utopia, São Paulo : Martins Fontes, 1999, p. 65.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |