Gonçalo Armijos Palácios
Não havendo propriedade, não haveria necessidade de regulamentá-la nem de uma autoridade que a implemente. A falta dessa autoridade, ou do respeito por ela, leva More a pressupor um Estado anárquico e caótico
Vimos, nos últimos artigos, as críticas à propriedade privada tecidas por Rafael Hitlodeu, personagem central da Utopia de Thomas More. As considerações desse personagem devem ser entendidas, como temos visto nos últimos artigos, no contexto da Inglaterra do início do século XVI – a Utopia fora escrita em 1515 –, época em que milhares de trabalhadores rurais foram expulsos das terras e obrigados – eles e suas famílias – a vagar sem rumo nem esperança pelas estradas desse país. Como não tinham em que se ocupar, viram-se forçados a cometer pequenos roubos. O roubo e a vagabundagem passaram a ser castigados com a pena de morte, milhares deles foram sumariamente executados e seus corpos ficavam pendurados das árvores como macabra advertência da sorte que outros muitos teriam. A origem de tudo isso era a ambição dos grandes senhores e a primeira parte da Utopia discute tal situação. Nessa primeira parte da obra de More se responsabiliza a propriedade privada por essa situação.
No artigo de hoje, no entanto, veremos algumas objeções às teses comunitaristas apresentadas na Utopia pelo próprio More.
No final da sua intervenção contra a propriedade privada, Rafael Hitlodeu afirma que, “enquanto a propriedade privada exista, não haverá esperança de cura” – cura, isto é, das doenças e as mazelas decorrentes do acúmulo de riqueza e do aumento da pobreza. Mas seu interlocutor – o próprio More –, afirma:
Não acredito que se chegasse jamais a um padrão de vida razoável sob um sistema de comunidade de bens. Haveria sempre a ameaça de escassez, pois nem todos se dispõem a trabalhar o suficiente. Sem a perspectiva de lucros, todos se tornariam preguiçosos e transfeririam aos demais o trabalho que caberia a eles realizar.[1]
Esta objeção esconde uma concepção do ser humano compartilhada por alguns filósofos (Maquiavel entre eles). É uma concepção que viria a ter uma influência decisiva na constituição, no século seguinte, da economia como ciência. Com efeito, parte-se do suposto de que o homem é, por natureza, egoísta. É um animal que, como os outros, faz as coisas tendo em vista, em primeiro lugar, se próprio proveito. Se as pessoas tendem a agir da mesma maneira, suas relações com os outros podem ser antecipadas e mesmo calculadas, como fazemos com os objetos físicos, que se movimentam da mesma maneira quando recebem idênticas influências. Foi essa uma das intuições de Adam Smith e que lhe permitiram dar a suas reflexões econômicas um caráter científico. Ora, se aquilo fosse verdade – se todos nós somos egoístas por natureza –, note-se, não seria possível construir uma sociedade de iguais. Pois, paradoxalmente, se todos os homens são iguais em tudo, serão igualmente egoístas e ambiciosos. (Perceba-se que afirmar isso não significa, necessariamente, dizer que o homem é mau por natureza.) De qualquer forma, sendo os homens ambas as coisas (egoístas e ambiciosos), e mesmo partindo de condições naturais idênticas, cada um esforçar-se-á por levar qualquer vantagem que a sorte ou sua própria indústria lhe ofereçam. Mas sabemos que não somos totalmente iguais. Às diferenças de talentos e habilidades somam-se as de oportunidades. Se a tudo isso acrescentamos as diferenças climáticas, geográficas e todos os fatores ambientais, nem sequer na mesma região encontraremos comunidades que não mostrem diferenças entre si – umas mais prósperas do que outras – e, dentro delas, diferenças entre seus membros.
A tese da comunidade de bens está associada a outra: a de um governo comunitário. Lembremos que, três séculos depois, Marx ligaria a existência da propriedade à existência de classes e à conseqüente necessidade de um poder – o poder político – cuja função seria gerenciar o conflito entre elas. Tal poder devia representar – pensava Marx – os interesses da classe mais poderosa. Daí, o pensador alemão concluiria que sem classes não haveria conflito de interesses para se gerenciar, eliminando-se, assim, a necessidade da existência do próprio Estado. A idéia de que numa sociedade sem classes a própria autoridade – ou o respeito por ela – tenderia a desaparecer, é antecipada pela segunda parte da objeção de More. Continuando a passagem anterior em que dá razões para não aceitar a crítica à propriedade que Rafael Hitlodeu acabara de fazer, More diz:
Depois, quando a escassez se tornasse insuportável, teríamos como conseqüência inevitável toda uma sucessão de distúrbios e assassinatos, uma vez que ninguém teria como proteger o produto do seu próprio trabalho – principalmente tendo-se em conta que não haveria respeito algum pela autoridade, o que, numa sociedade sem classes, parece-me coisa muito difícil de existir.[2]
Estas considerações nos levam a um argumento possível: não havendo propriedade, não haveria necessidade de regulamentá-las nem de uma autoridade que as implemente. A falta dessa autoridade, ou do respeito por ela, leva More a pressupor um estado anárquico e caótico. Em Marx, tal anarquismo, não explicado, de alguma forma não levaria ao caos. Marx, na verdade, não fez o menor esforço para explicar como poderia realmente funcionar uma sociedade sem classes e sem Estado. Donde proviria sua organização? Sem uma autoridade constituída como Estado (Marx) ou sem “respeito algum pela autoridade”(More), o único cenário possível parece ser o caos.
Na Utopia não vemos outra objeção sendo apresentada ao discurso de Rafael Hitlodeu. Depois da intervenção crítica de More, o diálogo logo envereda para o relato do que Hitlodeu viu na ilha de Utopia. Num sentido, toda a segunda parte da obra de More viria a ser, indiretamente, uma resposta às objeções de More e, seja como for, não há dúvida de que a segunda parte é uma crítica indireta às condições miseráveis em que viviam milhares de pessoas na Inglaterra e na Europa da época.
Parece-me, no entanto, pertinente reproduzir o último trecho da Utopia em que More explica por que, apesar de não concordar com muitas das coisas que ouviu de Hitlodeu sobre a ilha de Utopia, preferiu não fazer objeções. Mesmo assim, ele “confessa”, no final, que há muitas coisas positivas numa tal república:
Enquanto Rafael nos contava todas essas coisas, formulei para mim mesmo uma série de objeções. Em muitos casos, as leis e os costumes daquele país pareceram-me inteiramente ridículos. Deixando de lado coisas como as suas táticas militares, as religiões e as modalidades de culto, havia o grande absurdo no qual se fundamentava toda sua sociedade, a comunhão de bens aliada à exclusão do dinheiro. Ora, isso significaria o fim da nobreza, da dignidade, do esplendor e da majestade que, aos olhos do mundo, constituem as verdadeiras glórias de qualquer nação.[3]
Se isto é dito em tom irônico ou não, realmente não estou em condições de dizer. De qualquer modo, muitas nações veriam, algum tempo depois, a nobreza e a majestade serem eliminadas de forma violenta, só para ressurgirem como grandes nações. Mas é interessante como More termina seu livro:
Enquanto isso, não consigo concordar com tudo o que Rafael disse, a despeito de sua sabedoria e experiência inquestionáveis. Mas devo confessar que são muitas as características da República Utopiana que eu desejaria, posto que não espere, ver implantadas em nossas sociedades.” [!]
Linhas finais paradoxais pois tudo o que ocorre na ilha de Utopia parece ser conseqüência direta da eliminação da propriedade privada, como More mesmo reconhece no início do trecho (veja-se a parte grifada).
[1] MORE, Thomas. Utopia. São Paulo : Martins Fontes, 1999, p. 67.
[2] Ibid. p. 68.
[3] Ibid. p. 184. (Meus grifos)
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |