0

Fabien Eboussi-Boulaga: Um filósofo da teologia política

Luís Kandjimbo |*

Inspiração da Nova Teologia Na segunda metade da década de 60 do século XX, a Igreja Católica vivia os efeitos das mudanças produzidas pelo Concílio Vaticano II e Fabien Eboussi-Boulaga evidenciava fortes preocupações ecuménicas e pronunciadas tendências para a epistemologia teológica e a teologia política.

Por essa razão, não podemos negligenciar a importância dos trabalhos académicos com que, em 1968, Eboussi-Boulaga encerra os seus ciclos de formação na Universidade de Lyon, em França. Em primeiro lugar, a licenciatura em Teologia com um trabalho sobre teologia social. Em segundo lugar, uma tese de doutoramento em Filosofia sobre omito e o diálogo em Platão. O filósofo e teólogo jesuíta camaronês de que falamos abandonou a vida sacerdotal em 1981, invocando os mesmos motivos que o tinham levado a aderir ao sacerdócio na Companhia dos Jesuítas. Curiosamente, foi nesse mesmo ano que publicou o seu segundo livro, “Christianisme sans fétiche”, 1981,Cristianismo sem Feitiço. A partir dessa data, dedicou-se exclusivamente à docênciacomo professor de Filosofia na Universidade de Abidjan, de 1978 a 1984,  e seguidamente, na Universidade de Yaoundé, de 1984 a 1994.

Durante o tempo que exerceu actividade sacerdotal como jesuíta, Eboussi-Boulaga cultivava os ideais da nova teologia do catolicismo, de acordo com os mestres de Fourvière. Mas pretendia ir mais longe. A comprová-lo está a actividade tribunícia como prática renovada que desenvolveu, ao longo de uma década, cujo modelo esboçou na comunicação ao Colóquio de Abidjan.

Renovações contextualizadas

A iconoclastia sobre a catolicidade e a missiologia de Eboussi-Boulaga constituem expressões de rupturas de uma tematização contextualizada. As sementes dessa necessidade podem ser encontradas, por exemplo, em duas obras de Henri de Lubac (1896-1991),”Catolicismo” (1938) e “Fundamento Teológico das Missões”(1946). Na perspectiva filosófico-teológica de Henri de Lubac, a “catolicidade”é, ao mesmo tempo,”dinâmica”e “missionária”, traduzindo-se em “solidariedade universal no que diz respeito à salvação do homem”. Eboussi-Boulaga revelava-se inconformado com o estado de coisas. À luz das premissas de uma teologia africana contextual, produziu  fragmentárias reflexões que davam robustez à vontade de ruptura, na primeira metade da década de 70 do século XX.

Num seminário  sobre “Fé e Cura”, organizado, em 1972, pela congregação dos jesuítas de Yaoundé, Eboussi-Boulaga apresentou uma comunicação com o título”Christianisme comme maladie et comme guérison”,  O Cristianismo como Doença e Cura, publicada na revista”Croyance et Guérison”.No ano seguinte, desempenhando as funções de Director do Colégio Teológico de Yaoundé-Messa, publicou outro artigo,”Metamorphoses Africaines”Metamorfoses Africanas, na revista jesuíta “Christus”, tematizando o conceito de fidelidade. Em seu entender, a fidelidade à fé devia ser interpretada como negação do passado e como rejeição do compromisso com movimentos nacionalistas militantes. Em 1977, abordando o futuro das igrejas africanas, escreveu  mais um artigo,”L’Africain chrétien a la recherche de son identité” O Cristão Africano em Busca da Identidade, publicado na revista internacional “Concilium”. No mesmo ano, o conceito de Deus em África e o monoteísmo era outro tópico que osituava numa convergência com o filósofo e teólogo queniano, John Mbiti (1931-2019), assinalando renovações filosóficas e teológicas.

Teologia política

No discurso filosóficode Eboussi-Boulaga, os universos conceptuais da teologia cristã, tais como catolicidade, inculturação e missiologia tornavam-se objectos de análise. Esses conceitos desvendam problemas de uma crise da Igreja Católica, em África. Eboussi-Boulaga assumia a sua condição de observador preocupado com as ferramentas analíticas que, estando ao serviço da Filosofia da Religião, permitem compreender as realidades africanas  e as diferentes teologias contextuais, na medida em que  a filosofia e a teologia são parte integrante das culturas africanas. Poderá Eboussi-Boulaga ser considerado um teólogo político?Se a inculturação tem conotação política, no contexto em que emerge, estamos perante a obra de um filósofo da teologia pública.As narrativas históricas sobre a Filosofia da Religião e da Teologia Africana fornecem pistas para o efeito. De resto, o lugar que Eboussi-Boulaga ocupa e os temas filosófico-teológicos que aborda, não deixammargem para dúvidas. Afastamo-nos das conhecidas conotações do jurisfilósofo alemão, Carl Schmitt (1888-1985), que associavaa teologia política a um universo de conceitos teológicos secularizados da Teoria do Estado. Contrariando o sentido que Carl Schmitt atribui à teologia política, trazemos duas referências sobre o estado dos debates:1) “African Theology in its Social Context”,TeologiaAfricana no seu Contexto Social,1992,livro do teólogo democrata-congolês, Bénézet Bujo: 2)”The Routledge Handbook of African Theology”Manual Routledge de Teologia Africana,(2020),obra editada por Elias Kifon Bongmba. Trata-se de duas publicações quefornecem excelentes sínteses sobre a semântica do conceitode teologia política.No contexto africano, este conceito é um equivalente de teologia pública. Com eles se define uma sistemática produção reflexiva que assenta nareivindicação das comunidadescristãs a respeito da fé e da sua cultura.

No plano analítico, a teologia política representa uma perspectiva crítica adoptadaa respeito de determinadas dimensões da religiosidade humana, quando se estáperanteuma ordem jurídico-política dominante. Por essa razão, a teologia política funciona como instrumento de identificação de incongruências das religiões e contradições da ordem estadual. Amanipulação das crenças religiosas, a negação da natureza secular do Estado diante do sagrado e a violação da liberdade religiosa são exemplos dessas contradições. Pode dizer-se que, em África, a teologia da inculturação, bem como as diferentes teologias da libertação são teologias políticas.Não é excessivo concluir que os teólogos Africanos são arautos do estatuto sagrado ou religioso do político.

Catolicidade africana 

Em 1977, a Sociedade Africana de Cultura, então dirigida pelo eminente intelectual senegalês, Alioune Diop (1910-1980),realizou o Colóquio de Abidjan sobre o tema: “Civilisation Noire et Église Catholique”, Civilização Negra e Igreja Católica.Eboussi Boulaga apresentou a única comunicaçãode que foram extraídas ideias para as recomendações da III Comissão do Colóquio. A leitura das actas permite compreender o alcance das propostas formuladas por Eboussi Boulaga, numa comunicação intitulada: “Pour une Catholicité Africaine (Etapes et Organisation)” Por uma Catolicidade Africana (Etapas e Organização. Com base na crítica da acção missionária e comportamento dos missionários, advogava uma “revolução coperniciana” que devia dar lugar ao “catolicismo africano”, passando a Igreja africana a fazer parte da Igreja universal. Assim, propõe a institucionalização de um “Concílio da Igreja Católica em África”. Dessa ideia central emanaram  cinco recomendações: 1) Sistematização da informação respeitante às comunidades católicas africanas; 2) Constituição de uma autoridade das confissões cristã que deveria ser credível do ponto de vista  moral, agindo em nome da  consciência africana em prol dos direitos do homem africano; 3) Organização de uma Universidade Católica Africana; 4) Organização de lugares da espiritualidade africana, associados a uma pedagogia da responsabilidade individual e colectiva; 5) Autonomização financeira e consequente criação de um organismo inter-africano para a coordenação das ajudas.

Essas ideias tinham apoioda Associação Ecuménica dos Teólogos Africanos, constituída em Dezembro de 1977, na cidade de Acra. Na época, osecretário dessa associaçãoera um outro membro da Escola Camaronesa de Teologia, o professor universitário e teólogo Engelbert Mveng (1931-1995).O projecto do Concílio Africano passou a ser uma importante tese na teologia católica africana. Por conseguinte, as Conferências Episcopais de África e Madagáscar impulsionaram o trabalho que,em 1989, conduziu à convocatóriado Papa João Paulo II. O Primeiro Sínodo Africano teve lugar em 1990, sob a forma de Assembleia Especial. O documento que orientou a sua preparação definia um tema central comportando cinco vectores: Anúncio, Inculturação, Diálogo, Justiça e Paz,Comunicação Social.Mas o Concílio Africano nunca se tornou realidade.Não tinha cobertura das disposições do Código de Direito Canónico. Tratava-se de um problema jurídico que, no dizer do filósofo e teólogo camaronês, Meinrad Hebga (1928-2008), não devia ser razão suficiente para se reduzir o Concílio em Sínodo. Contudo, entre outras razões invocava-se igualmente a glossobalcanização da Igreja Católica Africana. Donde a oposição entreepiscopados de língua inglesa e de língua francesa, além da oposição  da Cúria Romana. Portanto, a tese de uma autêntica catolicidade africana, formulada por Eboussi Boulaga, caía parcialmente por terra. Apesar disso, prosperaram o magistério e a execução de ideias sobre a inculturação, tendo as primeiras sido as respeitantes à teologia litúrgica.

Inculturação

Inculturação é um neologismo que tem parentesco com a “cultura” e outras unidades lexemáticas derivadas, tais como “aculturação”, “enculturação”e “transculturação”,inscritas no vocabulário da antropologia.Na historiografia filosófico-teológica da “inculturação” católica, admite-se que o uso do termo tenha iniciado na década de 60 do século XX. Com uma denotação associada à enculturação antropológica, entrou no campo da missiologia, numa formulação do padre jesuíta belga, Peter Charles(1883-1954). Seguiu-se, em 1964, um outro sacerdote jesuíta, Jacques Masson(1908-1998),  que o empregou efectivamente  na locução substantiva, “catolicismo inculturado”. No entanto, foi na Declaração Final da Primeira Assembleia Plenária da Federação das Conferências Episcopais Asiáticas, realizada em  1974 que se registou o uso da expressão “uma Igreja indígena e inculturada”. Por sua vez o teólogo jesuíta francês, Yves Congar, num congresso internacional de missiologia, em 1975, considerava que “inculturação” era uma palavra cunhada no Japão, com um sentido contrário ao de “aculturação”. Para todos os efeitos, a fortuna do conceito está incindivelmente ligada  aos teólogos da Congregação da Companhia de Jesus. O sentido actual fixa-se em 1977, quando o padre jesuíta, Peter Arrupe (1907-1991),relaciona-o com problemas e questões da catequese. Finalmente, tornou-se oficial em virtude do Papa João Paulo II (1920-2005)o ter usado na sua Exortação Apostólica,”Catechesi Tradendae” A Catequese do nosso tempo, de 1979.

Portanto, compreendendo a inculturação do Evangelho e a evangelização da cultura, o sentido atribuído ao conceito, hoje já mais elaborado, deve muito mais às práticas do cristianismo em contextos não-ocidentais, especialmente do cristianismo africano como o demonstra Eboussi-Boulaga, em toda a sua obra. A dimensão formal da terminologia tem a sua importância. Todavia, os objectos e as propriedades a que se aplica o conceito conformam uma problemática que ultrapassa a mera lógica formal. Em África, tem as suas raízes no manifesto dos teólogos Africanos “Des Prêtres noirs s’interrogent” Os Padre Negros Interrogam-se, publicado em 1956. Em Cristianismo sem feitiço, Eboussi-Boulaga fazia um balanço dos debates, escrevendo o seguinte: “Quando pretendemos saber se o Africano ou um Africano consciente da sua identidade, das suas continuidades e das suas solidariedades pode ser cristão, interrogamo-nos sobre o sentido originário do cristianismo, à montante dos  dogmas, o mais próximo possível da fonte”.Além da actividade reflexiva sistemática, verificaram-se acções em prol de uma apologia do magistério africano da inculturação com a incorporação dos ensinamentos do Concílio Vaticano II.

Críticas à missiologia

Fabien Eboussi-Boulaga foi feliz, ao sintetizar a crítica à missiologia católica. Ele considerava que era necessário chegar “à montante dos  dogmas, o mais próximo possível da fonte”para se compreender o cristianismo africano, no seu sentido originário. Pode-se falar de um discurso crítico sobre a missiologia católica que conta com relevantes contributos de três teólogos camaroneses, nomeadamente, Fabien Eboussi-Boulaga, Meinrad Hegba (1928-2008) e Jean-Marc Ela (1936-2008). No entanto, a obra do primeiro distingue-se pelo pendor da crítica.

Anos depois da primeira leitura do livro Cristianismo sem feitiço, apreciei umartigo deEboussi-Boulaga apresentado naconferência conjunta anual do Centro de Investigação e Documentação e Inculturação do Cristianismo e da Associação Francófona de Missiologia, em 2003.Faz uma síntese das ideias vertidas no referido livro, tecendo comentários sobre o que entendia serem os três pontos mais controversos e debatidos.As teses de Eboussi-Boulaga inspiram vários teólogos das novas gerações. O teólogo democrata-congolês, Léonard Santedi Kinkupu, faz prova disso, no livro publicado em 2003, “Dogme et Inculturation en Afrique. Persoective d’une théologie de l’invention”,Dogma e Inculturação em África. Perspectiva de uma Teologia da Invenção.

Conclusão

Portanto, passando em revista os conceitos de catolicidade, inculturação e missiologia na teologia filosófica de Eboussi-Boulaga, concluímos a nossa conversa com uma breve nota sobre os pontos mais controversos do livro Cristianismo sem feitiço, a quese reporta Eboussi-Boulaga.Em primeiro lugar, o estilo. Relativamente à acusação segundo a qual o seu estilo é hermético e difícil,  Eboussi-Boulaga refere a complexa identidade do cristianismo africano que é incompreensível para o missiólogo ocidental,em virtude de constituiruma resposta estratégica e dialéctica. O estilo e linguagem tornam-se acessíveis, se se compreender os efeitos da alienação e as impossibilidades conexas, tal como aconteceu com os judeus alemães assimilados.Eboussi-Boulaga enumera as impossibilidades conexas, citando Kafka:”a impossibilidade de não escrever, a impossibilidade de escrever em alemão, a impossibilidade de escrever noutra língua e até a impossibilidade de escrever”. No entender de Eboussi-Boulaga, este é o carácter da pessoa que escreve, tipificado neste estilo”. Por outras palavras, o estilo desvenda a ambição da identidade. Recomenda uma luta contra os conceitos, pressupostos e argumentos existentes que são aceites como norma na retórica do discurso dominante.

Em segundo lugar, a crítica à missiologia. É para Eboussi-Boulaga  uma ferramenta necessária, ao serviço de uma preparação para os Africanos auto-reflexivos que se descobrem, adquirem conhecimento sobre si próprios e ganham acesso à sua própria verdade, enquanto são observados e retratados de uma forma que eles mesmos nunca seriam capazes de ver e descrever. Ensina os Africanos a olharem para si próprios a partir da perspectiva de quem está de fora, como um objecto ou mesmo um projecto para os Outros, o seu conhecimento, o seu poder e a sua compaixão.

Em terceiro lugar, a ambiguidade e obscuridade. Eboussi-Boulaga  identifica o seu livro como expressão de um esforço que visa reduzir os perigos da expressão cristã, de acordo com regras positivas que descrevem qualidades,à luzdo princípio do reducionismo ou da exclusão. Esse esforçoconstitui um meio através do qual se anuncia a recusa da fácil assimilação. Por isso, defende a necessidade de aprofundar a relação existente entre o proselitismo e o recurso ao feiticismo, acreditando que seja útil reconsiderar a crítica da religião como uma introdução necessária a todo pensamento crítico.Assim, faz apelo  ao novo paradigma da crítica da missão,enquanto pré-condição necessária para toda a crítica.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 10/09/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/fabien-eboussi-boulaga-um-filosofo-da-teologia-politica/

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *