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Utopia VII: O comunismo platônico

Gonçalo Armijos Palácios*

            Como vimos nos últimos artigos, na Utopia de Thomas More encontramos uma das mais duras críticas à propriedade privada já feitas por um filósofo ocidental. As passagens da Utopia lembram aquelas contidas na República de Platão.

            No último artigo vimos a curta objeção feita pelo próprio More aos ataques de Rafael Hitlodeu à propriedade privada. Para discutirmos as dificuldades que Aristóteles encontrou na defesa da comunhão de mulheres e de bens proposta por seu mestre, comecemos lembrando o que levou Platão a propor tal teoria.

            Uma das teses centrais na sua República é a de que um Estado, para ser justo, deve estar bem organizado, o que só se consegue quando cada um desempenha a função para a qual está por natureza inclinado. Assim, se alguém é naturalmente inclinado aos cálculos e hábil com os números, a melhor maneira de servir ao Estado é como arquiteto ou engenheiro; alguém que nasce com o dom de tratar doenças, sua inclinação natural o leva à medicina; um estratega nato servirá melhor no exército, e assim por diante. Em suma, se cada um for aproveitado naquela atividade para a qual nasceu, a todos for permitido trabalhar naquilo em que são bons e direcionados às tarefas correspondentes, teremos aquele Estado justo e bem organizado. Perceba-se que o nosso interesse em fazer aquilo para o qual somos naturalmente aptos pressupõe que seríamos felizes dedicando-nos a tal atividade. Essa felicidade converge com a felicidade maior do Estado e, por sua vez, o nosso interesse por fazer aquilo para o qual somos naturalmente hábeis vai ao encontro desse interesse maior do Estado.

            O interesse individual, assim, coincide com o interesse geral. Nenhuma das profissões no Estado é, contudo, diretamente política. O médico cuida dos interesses dos pacientes, o pastor do bem-estar das ovelhas, o engenheiro da solidez e firmeza de suas construções assim como dos que delas se utilizam etc. Mas há uns cuja habilidade os leva a uma atividade em que o bem-estar de todos é o seu objetivo; esses são os que nascem para governar.

            O interesse destes últimos, perceba-se, é o bem dos outros, não deles próprios. Diz Platão no Livro III da República:

Como eu dizia há momentos, devem-se procurar os guardiães mais estrênuos das doutrinas que vigora entre eles, de que é seu dever fazer aquilo que em cada ocasião pensarem que é melhor fazerem no interesse da cidade. (413c[1])

            Assim, se é lógico que os governantes devam se ocupar, antes de mais nada, da defesa dos interesses da cidade, Platão não acha nada mais racional do que pensar que esse, também, é e deve ser seu único e exclusivo interesse. Noutras palavras, os governantes não podem ter outros interesses. Mas isso só é possível se os governantes não tivessem negócios próprios. Tendo os governantes negócios próprios, o que os impediria de governar visando defender seus próprios interesses em lugar dos interesses dos demais cidadãos? Como resolver o conflito de interesses que ocorre entre governar em virtude do meu próprio proveito, de um lado, e governar procurando o bem público, de outro? Existindo a possibilidade desse conflito, a tendência humana é a de preferir o próprio proveito. Tal conflito o resolve Platão eliminando de raiz a possibilidade de que ele apareça. E a única maneira de fazê-lo pareceu-lhe ser a eliminação da propriedade privada para os governantes. Referendo-se aos governantes de sua cidade – ou ‘guardiões’, como os chama –, Platão afirma:

Ora vê lá … se será mais ou menos desta maneira que eles devem viver e habitar … Em primeiro lugar, nenhum possuirá quaisquer bens próprios, a não ser coisas de primeira necessidade; em seguida, nenhum terá habitação … em que não possa entrar quem quiser. (416d)

            Do ponto de vista da constatação da natureza humana, é fácil ver que ao argumento de Platão não lhe falta razão. O poder foi, é e continuará a ser fonte de enriquecimento pessoal e uma das causas do empobrecimento das classes tradicionalmente desfavorecidas. Como evitar isso? É mesmo possível impedir que o poder se torne instrumento de favorecimento próprio e dos nossos aliados? A República de Platão e a Utopia de Thomas More são duas das várias obras que propõem alternativas.

O problema, em síntese, é: por que os governantes não deveriam possuir? No final do Livro III Platão responde claramente:

[Se os governantes] possuírem terras próprias, habitações e dinheiro, serão administradores dos seus bens e agricultores em lugar de guardiões, volver-se-ão em déspotas inimigos dos outros cidadãos, em vez de aliados, passarão toda a vida a odiar e a ser odiados, a preparar conspirações e a ser objeto delas, muito mais receosos dos inimigos internos do que dos externos, e a precipitar-se, eles e o resto da cidade, para a beira da ruína. (417a-b)

            Paradoxalmente, hoje não são os países campeões na defesa da propriedade privada, como os Estados Unidos, que chegaram perto da ‘beira da ruína’. Pelo contrário, aqueles Estados que supostamente decidiram basear seu sistema na proibição da propriedade privada dos meios de produção, os antigos países socialistas, desapareceram sem esperança de voltar. Mas, por quê? Porque, como se viu no caso da Alemanha Oriental, para citar um exemplo, os ‘defensores do povo’ viviam, literalmente, em palácios de ouro. Portanto, se, mesmo nos Estados que se diziam igualitários o poder permitiu o favorecimento e inclusive o enriquecimento pessoal, qual é verdadeiramente a origem da desigualdade social? Está na própria natureza humana? Surge da essência do poder político? Na união desses dois fatores? Os vários autores que temos mencionado ao longo destes artigos (Platão, More e Marx) pensavam que, por termos a tendência a procurar nossas vantagens, deviam ser criadas instituições para pôr tal inclinação sob controle. E uma das maneiras de conseguir isso é proibindo, limitando ou regulamentando as condições da propriedade privada. Platão, como veremos no próximo artigo, estende a comunhão de bens às mulheres e aos filhos. Trataremos disso, e das críticas que tal teoria recebera de Aristóteles, no próximo artigo.


[1] Platão, República. Lisbsoa : Calouste Gulbenkian, 1993.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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