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Essencialismos contemporâneos da biblioteca colonial

Luís Kandjimbo |*

Há cerca de quatro décadas o autor destas linhas cultivava o sonho de conhecer a gramática da tradição ensaística angolana.A propósito do tópico da nossa conversa, tive, em 1984, a sorte moral de viver irrepetíveis experiências, por ocasião de um evento científico, realizado na cidade francesa de Paris. Conheci o venerável político, ensaísta e crítico literário, Mário Pinto de Andrade (1928-1990), aliás Buanga Felé, autor de um excelente ensaio contra a teoria do luso-tropicalismo, publicado em 1955, na revista Présence Africaine. Andava preocupado com os perigos das teorias essencialistas, algumas das quais emergiam em reflexões sobre a cultura angolana e as comunidades históricas que a suportam. Na sua humilde atitude de Mais-Velho praticou um inesquecível gesto de incentivo, ao estender-me a mão direita, a que se seguiram palavras inolvidáveis para um jovem que se iniciava nessas lides.

Anti-essencialista

O ensaio de Mário Pinto de Andrade é um vigoroso libelo contra a teoria do luso-tropicalismo. Revela uma fina argúcia que põe em causa o essencialismo da teoria luso-tropicalista de Gilberto Freyre (1900-1987) cuja finalidade consistia em legitimar as fontes de poder e a superioridade de uma pequena potência colonial europeia, no contexto do século XX. Mário Pinto de Andrade assume uma posição de quem tem objecções contra a forte crença no determinismo biológico e nas leis da natureza que o regem.

Contra o luso-tropicalismo

No referido artigo de nove páginas, “Qu’est-ce que le luso-tropicalisme?” O que é o luso-tropicalismo?, Mário Pinto de Andrade procede à introdução da sua análise, chamando a atenção para as conexões existentes entre o luso-tropicalismo e a ideologia colonial. Passa em revista a principal bibliografia do sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre, que tem a paternidade do conceito de “luso-tropicalismo”. Em Portugal, o conceito foi acolhido com elevado entusiasmo por importantes ideólogos do regime colonial fascista do Estado Novo, dando lugar a um convite que levaria Gilberto Freyre a visitar as chamadas “províncias ultramarinas portuguesas”. A refutação doutrinária do luso-tropicalismo empreendida por Mário Pinto de Andrade, bem como a história do debate que se trava entre a angolanidade e a portugalidade, metamorfoseada como crioulidade, têm vindo a merecer a nossa atenção, desde a década de 80 do século XX.

Sucessivamente, abordámos a relação dialéctica entre a angolanidade e a portugalidade/crioulidade em artigos, comunicações e dois livros: “Apologia de Kalitangi” (1997) e “Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano” (2019).

Formulação da teoria

Foi num dos livros publicados em 1940, “O Mundo que o Português Criou”, que Gilberto Freyre formulou as bases do “luso-tropicalismo” como essencialismo, ao caracterizar a colonização portuguesa no Brasil como modelo de outros processos semelhantes ocorridos em África, especialmente em Angola. Tal modelo consistia na mestiçagem “biológica” e “psicológica” que, no dizer de Gilberto Freyre, decorria da relação de “luxúria, voluptuosidade e abuso brutal da mulher indígena ou africana pelo homem branco”. Deste modo, Gilberto Freyre sustenta que o “conjunto de grupos que constituem o mundo luso-afro-asiático-brasileiro (…) merece ser demoradamente estudado”. Na década de 50 foi convidado a visitar as colónias portuguesas. Forma uma opinião controversa, aos olhos de pessoas comuns e dos círculos do poder. Assim se explica que, no livro publicado em 1952, “Um brasileiro em terras portuguesas”, com o qual consolida ideias apresentadas publicamente em conferências realizadas na Índia (Instituto Vasco da Gama, Goa), em 1951, e Portugal, (Universidade de Coimbra), em 1952, Gilberto Freyre tivesse elaborado definitivamente o seu conceito de “luso- tropicalismo”. A disciplina académica designar-se-ia por “luso-tropicologia”. Apesar da simpatia que goza inicialmente ao nível dos centros do poder político em Portugal, o conceito não colhe unanimidade. Entretanto, a consagração académica do “luso-tropicalismo” encontra espaço no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, na segunda metade da década de 50, por impulso de Adriano Moreira, que veio a ser Ministro do Ultramar nos anos 60.

Ora, para Mário Pinto de Andrade, não podendo essa “teoria sociológica” ser válida para explicar a formação do Brasil, era inteiramente falsa para as circunstâncias coloniais de África. O conceito que é também uma teoria, em seu entender, é analisado nos seguintes aspectos: 1) Uma vocação congénita de o português ser atraído pela mulher de cor nas suas relações sexuais; 2) Desinteresse do português em matéria de exploração económica dos trópicos; 3) Estabelecimento de relações sociais com habitantes de países tropicais tendente à criação de mobilidade vertical na vida social e económica.

Arquipélago tropical atlântico

Se até aí, o fundamento racialista do conceito não suscitava plena simpatia do Estado Novo e do regime de Oliveira Salazar (1889-1970), tal viria acontecer no domínio da política externa portuguesa, a partir dos acontecimentos políticos de 1961, quando a questão da autodeterminação de Angola passou a integrar a agenda dos órgãos estatutários da Organização das Nações Unidas, designadamente, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança. No âmbito da indefensável existência de províncias ultramarinas portuguesas, datam daí as medidas tomadas por iniciativa do Ministério do Ultramar, então dirigido por Adriano Moreira (1922-2022). Destacavam-se as políticas que traduziam a valorização das teses do luso-tropicalismo brasileiro de Gilberto Freyre.

Dois anos depois da crise política e diplomática de 1961 que dá origem à questão da autodeterminação de Angola na ONU, o poeta e antigo membro fundador do Partido Comunista de Angola, Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989), já residindo em Lisboa, iniciou uma actividade reflexiva que o conduziu à consolidação do modelo explicativo de Gilberto Freyre para compreender a história social e literária de Angola.

Além das citações do sociólogo brasileiro, comprovam-no igualmente a derivada formulação da teoria da “ilha crioula”, fundada na mestiçagem biológica, tal como defendia Gilberto Freyre. A este propósito, nos estudos publicados nessa época, Mário António lamentava o facto de tardar a verificação da validade da teoria freyriana para o conjunto das regiões do chamado “mundo que o Português criou”. Tornava-se assim um dos mais intrépidos defensores da “luso-tropicologia”, sublinhando a importância dos “núcleos humanos litorâneos a que a expansão portuguesa deu lugar em África”. No dizer de Mário António, são essas cidades litorâneas que constituem o “arquipélago tropical atlântico português”, onde existem “evidências do carácter crioulo”.

Portanto, o debate teórico sobre a identidade cultural angolana, que opõe seguidores da angolanidade e defensores da crioulidade não se estriba em argumentos contra as pessoas. Convoca os argumentadores para abordagens fundamentadas. Um dos problemas mais interessantes que se impõe no debate sobre as identidades, diz respeito ao carácter essencialista da argumentação freyriana e seus correligionários, relativamente à mestiçagem biológica.

Identidades necessárias ou acidentais?

As ferramentas analíticas susceptíveis de serem usadas neste debate para definir a bondade do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre e da crioulidade de Mário António, requerem uma nova gramática. Não se pode perder de vista a dimensão antropológica das culturas e as exigências de uma fundamentação filosófica. O essencialismo a que fazemos referência pode ser identificado através de um designador rígido subjacente à definição do conceito de luso-tropicalismo. O topónimo Angola é um desses referentes do mundo a que se aplica o conceito e suas propriedades.

Segundo Saul Kripke (1940-2022), os nomes próprios são designadores rígidos. O designador rígido designa o mesmo objecto em todos os outros mundos possíveis que dispensam necessidade de resolver o problema da identidade. No entanto, levanta-se o problema de saber se luso-tropicalismo e a crioulidade constituem propriedades necessárias das identidades de indivíduos angolanos ou representam apenas propriedades acidentais. É verdade que as comunidades históricas não existiriam sem as propriedades que emanam da definição da identidade luso-tropicalista ou crioula? O tipo de essencialismo com que se opera na definição do conceito de luso-tropicalismo inspira-se em teorias naturalistas mais antigas, à luz das quais são as leis da natureza que determinam a existência dos objectos do mundo. Neste sentido, concluir-se-ia ser verdade afirmar que a “capacidade biológica” e a “glória do sangue” dos portugueses são decisivas para a essência identitária dos povos colonizados. Tais propriedades são necessárias ou acidentais?

 Essencialismo

Vejamos, numa breve síntese, o tipo de respostas que são fornecidas no domínio da filosofia. O essencialismo caracteriza a história da filosofia ocidental, desde a tematização de Aristóteles na sua “Metafísica”. De um modo geral, os essencialistas consideram que as coisas devem os seus comportamentos a poderes causais intrínsecos de seus constituintes nucleares. Assim, todos os objectos com semelhante constituição comportar-se-iam de igual forma em qualquer outro mundo em que pudessem existir.

Os essencialistas partem de três pressuposto: a) as essências são reais; b) as essências compreendem todos os tipos de ser; e 3) as essências são cognoscíveis. Entende-se que a definição real do essencialismo prova a possibilidade desse conhecimento.

O essencialismo real é um tipo que se caracteriza pelo facto de defender a posição metafísica segundo a qual é a essência ou natureza dos objectos que fixa a sua identidade. Estas e outras teorias do essencialismo confrontam-se com objecções e revisões. Por exemplo, é debatida a confusão que se regista entre essência e propriedade. Já o anti-essencialismo de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) tem a ver com a sua filosofia da linguagem, assente na teoria dos jogos de linguagem e “semelhanças de família”. Ele considerava que “essência é expressa pela gramática”. Voltaremos à tematização da crise do essencialismo na perspectiva do filósofo austríaco.
Biblioteca colonial

O essencialismo luso-tropical só pode ser interpretado com recurso à leitura de textos literários, antropológicos, sociológicos e outros, depositados na “biblioteca colonial” que, no dizer de V. Y. Muimbe, é “uma constelação dentro da qual as diferenças são explicadas por teorias que utilizam paradigmas funcionais e causas externas”. Entre essas teorias incluem-se o luso-tropicalismo e a crioulidade. Por conseguinte, devemos explorar a genealogia desses conceitos e sua rentabilização à luz dos diferentes essencialismos para compreendermos plenamente os seus efeitos contemporâneos veiculados em língua portuguesa e em obediência à gramática do colonialismo.
Conclusão

Portanto, será necessário responder às perguntas formuladas, a de saber se a “capacidade biológica” e a “glória do sangue” dos portugueses são elementos constituintes decisivos para determinar a essência identitária dos povos colonizados.

Será igualmente interessante saber se é verdade que as comunidades históricas não existiriam sem as propriedades que emanam da definição da identidade luso-tropicalista ou crioula. Ou se tais propriedades são necessárias ou acidentais.

Na nossa próxima conversa, continuaremos a reflectir sobre este tópico e orientaremos a nossa atenção para os processos de refutação dos essencialismos de carácter darwinista.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 17/09/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/essencialismos-contemporaneos-da-biblioteca-colonial/

Marcos Carvalho Lopes

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