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Utopia VIII: Sobre a igualdade entre mulheres e homens

Gonçalo Armijos Palácios

A luta pela igualdade dos direitos das mulheres não é nova. Platão talvez seja um dos primeiros defensores dessa causa 2400 anos atrás

            Nossa discussão da Utopia de More nas últimas semanas nos levou, no artigo  anterior, a Platão. Com efeito, a crítica à propriedade privada levada a cabo na obra de More retoma algumas idéias da República. O termo ‘utopia’ (‘não-lugar’), como sabemos, não existia naquela língua tendo sido cunhado por More como nome próprio – o nome da ilha visitada por Rafael Hitlodeu e na que não existia a propriedade privada nem era permitido o uso do dinheiro. Hoje, ‘utópico’ é um adjetivo que qualifica tudo aquilo que se considera irrealizável, impraticável, impossível, afastado do real, ilusório etc.

            Uma pergunta que não podemos deixar de fazer, porém, é: até que ponto são utópicas as críticas e as propostas da República e a Utopia, se por ‘utópico’  entendemos ‘irrealizável’, ‘impraticável’, ‘afastado do real’, ‘ilusório’ etc?

            Se admitimos que a pobreza e as injustiças decorrem de uma relação corrompida entre poder e dinheiro, muitas das críticas de Platão e More não são tão descabidas como uma leitura superficial de suas obras poderia sugerir.

Neste artigo prometi falar sobre a teoria platônica da comunidade de mulheres e filhos. Uma análise dos trechos de Platão nos permitirá ver quão pouco extravagantes soam hoje afirmações que não muito tempo atrás escandalizavam as pessoas. Ao mesmo tempo, perceberemos o cuidado que Platão tem ao fazer certas afirmações. Quando Gláucon – um dos interlocutores da República – pede a Sócrates que explique a comunidade de mulheres e filhos, Sócrates responde: “Não é fácil, meu caro amigo, fazer essa análise. A questão comporta, de fato, muito mais inverosimilhanças ainda do que as que tratamos anteriormente.” (450 c)[1] Há aqui, note-se, o reconhecimento explícito das dificuldades relativas à exeqüibilidade do que vai dizer assim como do que já foi dito. E Sócrates continua:

Desconfiar-se-ia de que fosse possível o que dizemos, e, ainda que se realizasse, não se acreditaria que tal maneira fosse a melhor. Por esse motivo é que tenho certa hesitação em tocar no assunto, com receio de que a minha exposição pareça uma aspiração impossível…

O próprio Platão, portanto, reconhece que sua proposta pode ser considerada inviável e que, mesmo sendo realizável, poderia não ser a melhor maneira de se organizar um Estado. (O que, de fato, disse Aristóteles ao tecer suas críticas ao seu mestre. Referindo-se à teoria da comunidades de bens proposta por Platão, afirma que a legislação da República, mesmo sendo possível, deveria ser evitada a todo custo.)

            Antes de propor sua teoria da comunidade de mulheres e filhos, Sócrates discute a questão da igualdade entre mulheres e homens. Atrevo-me a dizer que os trechos em que Platão argumenta sobre a igualdade entre homens e mulheres devem estar entre os mais revolucionários e ousados do pensamento filosófico e político. Platão estava ciente da radicalidade de suas propostas. É por isso que põe em boca de Sócrates a seguinte advertência: “Mas talvez muito do que agora se disse pareça ridículo, e contrário aos costumes, se se executar o que declaramos.” (452 a)

            Platão deve, primeiro, superar uma dificuldade. Se antes já tinha afirmado que a cada um corresponde no Estado uma atividade que decorra da sua natureza específica, não seria necessário que conclua daí que, dadas suas naturezas diversas, a homens e mulheres cabe tarefas diferentes? Esta objeção é posta em boca de um eventual argüidor:

Ó Sócrates e Gláucon, não há necessidade alguma de que os outros discutam convosco, porquanto vós mesmos, quando principiastes a fundar a cidade, concordastes em que cada um deve executar a sua tarefa específica, de acordo com sua natureza. (…) Então como é que não vos enganáveis há momentos e não estáveis em contradição convosco mesmos ao declarar que homens e mulheres deveriam efetuar o mesmo serviço quando têm naturezas tão diferenciadas? (453 b-c)

            Na sua resposta, Platão procurará mostrar o aspecto específico de tal diferença. Daí ele concluirá que, com respeito à capacidade de governar, tanto homens como mulheres são igualmente dotados.

            Antes de entrar no argumento, lembremos que hoje, 2400 anos depois, a mulher ainda luta para ser reconhecida como igual ao homem. E muitos, homens e mulheres, pensam que o lugar da mulher é o lar por ser ela que gera os filhos dentro de si e porque dela dependem depois de nascer. Desse modo, ouve-se ainda hoje, e com muita freqüência, que a mulher foi feita para a maternidade e para o cuidado dos filhos, não para outras tarefas que ‘naturalmente’ caberia ao homem – como, claro, a de mandar na casa e governar o Estado.

            A estratégia de Platão para provar que a natureza diferente do homem e da mulher não determina funções sociais distintas é esclarecer a especificidade de tais diferenças. Assim,

se se evidenciar que, ou o sexo masculino, ou o feminino, é superior um ao outro no exercício de uma arte ou de qualquer outra ocupação, diremos que se deverá confiar tal função a um deles. Se, porém, se vir que a diferença consiste no fato de a mulher dar a luz e o homem fecundar, nem por isso diremos que está mais bem demonstrado que a mulher difere do homem em relação ao que dissemos, mas continuaremos a pensar que os nossos guardiões e as suas mulheres devem desempenhar as mesmas funções. (454 d-e)

O argumento que Platão fornece é sucinto e sugere um entimema (aquele tipo de argumento ao que faltam premissas, estando elas subentendidas). Mas, em poucas palavras, podemos recriá-lo da seguinte maneira. Se membros de dois grupos são de natureza tão diferente como para que nenhum membro de um grupo possa ser membro do outro, as propriedades essenciais de uns não poderão ser as mesmas que as dos outros. Assim, por exemplo, entre o grupo dos animais, seres dotados da possibilidade de se movimentar, não poderemos encontrar seres inanimados. Desse modo, se pensamos no que os homens podem fazer e nas tarefas que podem desempenhar, não há nada que seja realizado pelo homem que não possa ser feito, seja feito, ou tenha sido feito também por uma mulher. Assim, calcular, esculpir, pintar, escrever, compor e governar são tarefas que também são e têm sido feitas por mulheres – e muito bem, como a história de todas as épocas mostra. Quando comparamos o desempenho individual, muitas mulheres se saem nessas tarefas melhor do que muitos homens. Ora, se  elas fossem naturalmente menos capazes ao tentar desempenhar tarefas tradicionalmente feitas por homens, nada do que um homem faz elas poderiam fazer. Mas a experiência mostra que não é assim e que, dadas as mesmas oportunidades e condições, tais tarefas são bem executadas indistintamente por mulheres e por homens. O fato de que o número de mulheres nas artes, nas ciências, nas letras ou na política seja menor, não depõe contra as mulheres mas contra o tipo de sociedade que criou e continua a criar obstáculos para que elas se sobressaiam. Assim, afirmar que as mulheres são menos competentes que os homens porque há mais pintores, escritores, cientistas etc. é dar como explicação o que justamente merece ser explicado. Pois, se as mulheres, enquanto mulheres, não fossem tão capazes como os homens, por que algumas conseguiriam ultrapassar muitos homens em tantas áreas apesar de não terem tido as mesmas oportunidades e condições que os homens sempre tiveram? (É instrutivo notar o desempenho das turmas de crianças nas escolas mistas. A tendência é vermos as meninas, como um todo, sempre melhor colocadas que os meninos. Acabei de fazer uma simples experiência com minha mulher, professora de uma escola pública. Perguntei a ela: “Podes me dar os nomes de quem melhor se saiu nestes últimos anos nas tuas turmas?” Ela pensou um pouco e começou a citar nomes, eu fui contando. Foram três nomes de meninos e onze de meninas. Pela minha experiência como aluno de escola mista e como professor, penso que os números que ela me deu devem se aproximar do que realmente ocorre nos níveis fundamental e médio. Esses números, se confirmados estatisticamente, não querem dizer que as meninas sejam mais inteligentes que os meninos. Diz unicamente que há fatores sociais que influenciam para que, tomados em conjunto, meninos e meninas, homens e mulheres, mostrem desempenhos tendencialmente opostos. Mas isso também prova que nada há na natureza do homem, ou da mulher, que faça um sexo superior ou inferior ao outro.

            Dizer hoje, portanto, que homens e mulheres são igualmente capazes, talvez não cause o mesmo espanto e igual reação negativa como décadas atrás. Mas mesmo hoje há quem pense que à mulher cabe papéis e que tais papéis são os de submissão e de obediência, isto é, os papéis e as funções de subalterna. Mas justamente era aqui onde queria chegar: imagine-se quão estapafúrdio – e utópico – não deve ter soado aos ouvidos de membros de uma sociedade, 2400 anos atrás  na qual as mulheres nem podiam votar, a tese de que elas, sendo iguais em tudo aos homens, tinham também as mesmas condições para governar!


[1] Platão, República. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 1993.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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