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Wittgenstein, os mundos do filósofo

O estudo da filosofia nos depara algumas surpresas, como aquela de descobrir como os filósofos, depois de construir um mundo, o abandonam para inventar outro

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS*

Em abril de 1889, em Viena, nascia Ludwig Wittgenstein, um dos mais influentes filósofos do século 20. Wittgenstein é um daqueles pensadores cuja biografia exemplifica uma das características mais claras da filosofia: seu devir. O devir pode ser entendido simplesmente como uma mudança no processo natural das coisas, incluídas as pessoas. No caso deste filósofo, é mais do que isso. Há nele uma mudança radical nas suas posições teóricas.

O Tractatus Logico-philosophicus, publicado em 1921, teve uma influência enorme no que seria conhecido como filosofia analítica. A linguagem, pensava Wittgenstein, tem uma estrutura lógica que reproduz — ou deveria reproduzir — a estrutura lógica do mundo. Nessa fase do seu pensamento, Wittgenstein acreditava que a função da filosofia seria a de ajudar a esclarecer a diferença entre o que realmente faz sentido dizer e o que não faz nenhum sentido dizer. Que faz sentido? Falar sobre as coisas do mundo, sobre a experiência de todos os dias. Ao falar sobre nossas coisas do dia-a-dia, pensava, empregamos a linguagem do modo correto. Quando pretendemos falar sobre as coisas que tradicionalmente interessaram aos filósofos, já não fazemos sentido. A filosofia como um todo, veja-se, não faz — ou não faria — o menor sentido. Não é que ela seja falsa, mantinha o filósofo nessa primeira fase, mas é um conjunto de disparates. Um disparate, note-se, não é nem verdadeiro nem falso; simplesmente é isso, algo que não faz realmente o menor sentido. Dentro dessa perspectiva, querer falar das coisas sobre as quais a filosofia tradicionalmente se ocupou equivaleria a pretender situar-se fora ou por cima do próprio mundo. Já que nossa linguagem está para falar sobre as coisas que se encontram no mundo, falar sobre a totalidade das coisas, ou sobre a essência das coisas — acreditava o filósofo vienense naquela etapa —, equivaleria a querer dizer algo sobre o que, no fundo, nada pode ser dito. Falar sobre totalidades seria — para dizê-lo de alguma maneira — querer ultrapassar toda possibilidade lingüística.

A filosofia se engana porque quer dizer com palavras o que com palavras não pode ser dito. Pois com palavras pode ser dito isto ou aquilo, não tudo, e é isso que a filosofia tradicional pretende: dizer algo sobre o todo, isto é, enfiando o universal no particular. Essa impossibilidade lingüística é, no fundo, uma impossibilidade lógica. Para evitar os equívocos e as ilusões provocadas pela filosofia tradicional, o que Wittgenstein propõe, nessa sua primeira obra, é levar a cabo uma análise da linguagem. Reduzindo as várias expressões a sua forma lógica, descobriremos se suas estruturas podem ter algum sentido. Só tendo sentido poderiam ser verdadeiras ou falsas. As expressões filosóficas são, pois, pseudo-enunciados. Parece que fazem algum sentido, mas as análises lógicas às que podem ser submetidas mostrariam que, de fato, não dizem nada. É por isso que os enunciados filosóficos não podem ser nem verdadeiros nem falsos. Na realidade, nada dizem.

A filosofia tradicional, desse modo, queria dizer o que não pode ser dito. Mas, qual, então, seria o papel da filosofia? Não dizer nada, mas mostrar. O que estaria fazendo Wittgenstein no seu Tractatus? Justamente isso, mostrar. Mas mostrar o quê? Mostrar os limites da própria linguagem. Mas mostrar tais limites, evidentemente, só pode ser feito por quem está fora ou por cima da própria linguagem, ou, então, por quem a enxerga como um todo. Perplexidade! Não é essa pretensão de totalidade que o filósofo criticava na filosofia tradicional? Sim, justamente, essa pretensão que, no fundo, ele reclama para sim. O interessante é que o reconhece. Reconhece que, no fundo, tudo aquilo que diz no Tractatus, não faz realmente nenhum sentido. Pois, segundo sua própria confissão, nada pode se dizer sobre o que não pode ser dito. Sendo coerente com essa confissão, Wittgenstein fecha o Tractatus com esta última proposição: sobre o que não se pode falar, deve-se calar.

Em abril de 1951, três dias depois de cumprir seu sexagésimo segundo aniversário, Ludwig Wittgenstein faleceu. Não sem deixar uma outra obra, as Investigações Filosóficas, na qual se afasta radicalmente das teses defendidas no Tractatus.

Wittgenstein é um daqueles filósofos nos quais observamos, não sem admiração e surpresa, como os universos por eles criados, por eles mesmos são abandonados…

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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