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A leitura entre filósofos

Se os filósofos escrevessem sobre a história da filosofia haveria tantas histórias da filosofia como posições filosóficas

Gonçalo Armijos Palácios*

            Os conceitos que os grandes filósofos tecem sobre outros grandes filósofos dizem muito sobre a própria filosofia. Para o leigo, ela é um acúmulo de verdades que vai se aprofundando com o passar do tempo. É como se fosse uma edificação construída com a contribuição de cada sistema filosófico. Uma grandiosa edificação que o leigo imagina como uma belíssima catedral, uniforme e harmonicamente planejada e construída. Mas nada mais longe do que a filosofia é e tem sido ao longo do tempo. Por isso é iluminador ver o que os grandes filósofos pensam sobre o que outros grandes filósofos disseram. Com certeza, nem sempre são coisas boas. Em muitos casos, críticas duras ou mesmo insultos mais ou menos velados. E isso ocorre desde o início da filosofia ocidental. Parmênides, por exemplo, ao referir-se aos seguidores de Heráclito, ou talvez tendo em mente o próprio filósofo de Éfeso, os pinta metaforicamente como tendo duplas cabeças. Isto é, como pensando contraditória e, portanto, equivocadamente. Com efeito, Heráclito pensava que as coisas eram e não eram. O que escandalizava Parmênides, para quem o que é só pode ser. O próprio Heráclito é mais do que deselegante ao dizer que a inteligência não era equitativamente repartida e que Xenófanes era prova disso.

            Platão foi tão duro com certos pensadores que, pela sua influência, aqueles que criticou tão sistematicamente nunca tiveram a devida atenção dos filósofos acadêmicos. Refiro-me aos sofistas. Os sofistas, e muito pela influência de Platão, são considerados filósofos menores pelo pecado de, entre outras coisas, fazer o que todos os filósofos posteriores fizeram, de uma ou de outra maneira: cobrar um salário pelo que faziam. Mas entre aqueles sofistas encontramos intelectuais da talha de Protágoras. Uma de suas teses parece resumir a teoria kantiana do conhecimento: o homem é a medida de todas as coisas, do que é, que é, e do que não é, que não é. Outro sofista é muito mal tratado por Platão na República. No Livro I, Trasímaco é apresentado como uma pessoa violenta e arrogante. No entanto, defende uma teoria sobre a justiça que é resgatada por um pensador do porte intelectual de Maquiavel e pela maioria de pensadores modernos, os contratualistas como Hobbes e Rousseau. Com efeito, estes não defendem outra tese que aquela proposta por Trasímaco: a justiça é o interesse do governante. O próprio marxismo afirma o mesmo com a tese de que a justiça num Estado de classes representa o interesse da classe dominante. Mas os ataques de Platão foram tão virulentos que dificilmente alguém se atreveu, na academia, a defender as teses dos sofistas.

            O próprio Platão, por sua vez, não se livra das críticas duras de Aristóteles. Às vezes mencionando seu mestre, outras se dirigindo a Sócrates, Aristóteles afirma que as teses que eles defendiam eram, literalmente, absurdas.

            No século XVII, Francis Bacon dirige sua artilharia contra os clássicos e escreve uma obra cuidando-se de pôr um título que indicasse seu afastamento do discípulo de Platão, o Novum Organum. Nessa obra, Bacon chega a referir-se aos filósofos gregos como “velhos tagarelas cuja sabedoria é farta em palavras e estéril em obras”! E, sugestivamente, não se esquece de resgatar os sofistas e os pré-socráticos.

            O ponderado Kant, por sua vez, zomba do que considera “idealismo sonhador” de Descartes”, sem deixar de ser mais duro com Berkeley, cujo pensamento considera um “idealismo exacerbado”! O mesmo Berkeley que, ao criticar conceitos da física de Newton, antecipara, segundo o próprio Einstein, teses centrais da Teoria da Relatividade.

            Esse talvez seja um dos atrativos maiores da história da filosofia, cuja leitura nos permite perceber como foi que cada pensador abandonou a tradição e decidiu trilhar seu próprio caminho, abrindo, com isso, novos rumos na aventura interminável e apaixonante do pensamento filosófico.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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