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Da titularidade do direito à filosofia-II

Luís Kandjimbo |*

A leitura do texto que publicámos, na edição passada desta coluna, foi afectada por uma insidiosa gralha do antetítulo. Na verdade, quisemos trazer à reflexão o vínculo que liga os sujeitos cognoscentes às faculdades que tornam possível a sua acção e prática, quando se trata de produzir pensamento. Desde o início do século XXI se vem discutindo o problema respeitante aos direitos epistémicos que emanam de uma prática filosófica endógena. É disso que tratamos, num exercício que permitiu cruzar os olhares de filósofos camaroneses e franceses. Na presente conversa, a focagem está centrada na língua como dispositivo ontológico. Vamos continuar o diálogo convocando outros autores, além de Fabian Eboussi-Boulaga (1934-2018)e Jacques Derrida (1930-2004)

A cena do debate

Quando Jacques Derrida (1930-2004) iniciou a sua intervenção no debate filosófico sobre o direito à Filosofia, já tinha sido desencadeado com a sarcástica ironia de  Georges Gusdorf (1912-2000) a que se seguiram  as refutações de Marcien Towa (1931-2014) e Fabian Eboussi-Boulaga (1934-2018). Importa referir que a atitude discursiva dos dois filósofos da Escola de Yaoundé carregava uma forte consciência do antagonismo ontológico. A tónica do discurso de Derrida evidenciar-se-ia tardiamente. Nem sequer se revelou na conferência proferida em 1978.Tal como ele próprio reconhece, tornou-se explícita no seminário que orientou em 1984 no «Collège International de Philosophie», Colégio Internacional de Filosofia, tendo adquirido dignidade de título em 1990 com o seu livro «Du Droit à la Philosophie». Esta anotação é necessária para identificarmos as convergências e tópicos que intersectam o pensamento de Eboussi-Boulaga e Jacques Derrida. Um desses tópicos diz respeito ao  ensino da filosofia e à sua dimensão institucional.

 
Silêncios e diatribes

A admiração que a figura de Jacques Derrida suscita entre os membros da nova geração de filósofos Africanos tem ofuscado o potencial interesse desse debate metafilosófico nos países africanos de língua francesa. Prova-o o discurso encomiástico de Grégoire Biyogo e as acusações de plágio proferidas por Jean-Godefroy Bidima contra Eboussi-Boulaga. Ambos, Biyogo e Bidima, são verdadeiros derridianos. Por isso, deslumbrados pelas propostas filosóficas do «desconstrucionismo», escapa-lhes a perspectiva que aponta para a possibilidade de «A Crise do Muntu», o livro de Eboussi-Boulaga, não ser apenas um repositório de plagiato ou até falho de qualquer originalidade. Pode dizer-se que o debate metafilosófico sobre o direito à filosofia é marginal. Mas esse não se reduz às malhas tecidas pelo grande debate do século sobre a existência da Filosofia Africana. Já veremos por que razão.

 
As línguas da filosofia

Para Eboussi-Boulaga a enunciação do direito à filosofia reside na ontologia do Muntu que o consagra através da língua, tornando-o um animal ontológico. Nesse sentido, acrescenta o filósofo camaronês, não existe uma língua global, nem um discurso sobre a globalidade. Se existir, tal será possível apenas por força de uma confusão de línguas. Ora, no contexto colonial, ele entendia que a filosofia se apresentava como uma tradição autoritária ocidental. Por isso, perguntava: A filosofia pode ser ensinada, isto é, transmitida? Concluía que tal seria possível, desde que fossem faladas  as línguas africanas. Donde, a esperança de filosofias africanas que não podiam existir como se estivessem encerradas nas línguas africanas. Isto quer dizer que «nenhuma língua impede o Africano de falar a verdade porque as línguas são neutras em relação à verdade.» Em seu entender, as línguas africanas podiam ter a dignidade de línguas da filosofia.

Por seu lado, Jacques Derrida elaborou um pensamento acerca da língua em 1991, quando publicou «O Monolinguismo do Outro», no qual dialoga com o escritor e filósofo marroquino Abdelkébir Khatibi (1938-2009), segundo o qual «nunca falamos apenas um idioma». Aí, Derrida admite que ambos, ele e Abdelkébir Khatibi, vivem, em relação à língua e à cultura, num certo “estado” que lhes confere um estatuto a que cabe o título de «franco-magrebino». Nesse diálogo com Derrida, que sublinha o facto de o seu interlocutor falar da sua língua materna que não é o francês, Abdelkébir Khatibi vem dizer que a língua materna, o árabe ou o amazigh, está presente na língua estrangeira que é o francês. Por essa razão, a tematização derridiana do monolinguismo é, na verdade, um pretexto para explorar a complexidade do bilinguismo sobre o qual se debruça Khatibi no seu livro «Amour Bilingue», (Amor Bilingue). O filósofo e sociólogo marroquino sustenta que o uso da língua francesa cria uma oportunidade para revelar o isolamento em que o estrangeiro trabalha. A ideia de Abdelkébir Khatibi resume-se nisto: «A língua estrangeira dá com uma mão e retira com a outra». Isto porque a língua estrangeira transforma a língua materna após a sua apropriação pelo sujeito bilingue, tornando-a, consequentemente, intraduzível.

 
Reivindicar o direito à filosofia

Eboussi-Boulaga formulou expressamente a questão: Por que razão se deve  reivindicar o direito à filosofia? Em seguida respondia, afirmando que «a filosofia, como a razão, é universal.» Mas, acrescentava que «reivindicar a filosofia é querer o universal, a partir do qual é pensável o particular.» Por outro lado, reforçava a sua ideia, defendendo a  vontade da filosofia como vontade do universal, expressão de uma recusa da contradição, da violência e uma busca de coerência, do não-arbitrário. Deste modo, era inevitável não admitir que é filosofando que alguém se tornava filósofo. Por conseguinte, se o filósofo é o Muntu conclui-se que só é possível trazer inovação se se tiver perfeito conhecimento de filosofias pré-existentes.

O enunciado, «direito à filosofia»,em língua francesa mobiliza o exercício de vigilância Derrida nessa metafilosofia do direito à filosofia. Vem interrogar-se acerca da legitimidade do direito de reivindicar a qualidade de filosófico. A polifónica abordagem, no seu livro de 658 páginas, é efectivamente a síntese dos debates e reflexões realizadas em diferentes circunstâncias e instituições em que se revelou necessário defender a disciplina de filosofia das ameaças da fragmentação e dissolução em França.

 
Filosofia africana multilingue

Em 2013, o jovem filósofo afrodescendente norte-americano, Chike Jeffers, concretizou uma iniciativa editorial, organizando a edição de um livro considerado inédito, nos círculos académicos e filosóficos norte-americanos. Trata-se de «Listening to Ourselves: A Multilingual Anthology of African Philosophy», (Ouvindo a nós Mesmos: Antologia Multilíngue da Filosofia Africana), um livro que comporta diferentes capítulos temáticos escritos em línguas africanas e respectivas versões traduzidas em língua inglesa.  Pretendia-se assim deixar a filosofia africana em línguas africanas, tal como defendia Eboussi-Boulaga, em 1977.

A antologia atraíu a atenção da comunidade filosófica. Com um prefácio do escritor e ensaísta queniano Ngugi wa Thiong’o, está estruturada em sete capítulos assinados pelos seguintes filósofos: Souleymane Bachir Diagne, emWolof; Messay Kebede, em Amharico; Dismas Masolo, em Luo; F.Ochieng’-Odhiambo, em Luo; Betty Wambui, em Gykuyu; Emmanuel Chukwudi Eze (1963-2007), em Igbo; Kwasi Wiredu (1931-2022), em Akan. É uma amostra muito reduzida do mapa linguístico do nosso continente. Estão aí representados apenas seis países, nomeadamente, Senegal, Etiópia, Quénia, Nigéria e Ghana. Apesar disso, estaá-se em presença de uma prova que contraria o pensamento dos cépticos. No dizer de Chike Jeffers, escrever filosofia numa língua africana abala os fundamentos da formação filosófica, assente em línguas europeias.

Souleymane Bachir Diagne propõe um diálogo entre Soxna e sua amiga Ngóor, gravitando em torno da verdade e das crenças nas práticas de wanga. Messay Kebede desenvolve uma reflexão sobre os conceitos de  tempo e modernidade. Já Dismas Masolo realiza uma hermenêutica dos provérbios, distinguindo-as de proposições, na medida em que pela sua natureza aqueles são tipos de expressões cujo sentido não varia com as circunstâncias em que se encontram os sujeitos que os enunciam. Pelo contrário, constituem expressões de pensamentos e experiências dos humanos. Por sua vez, F.Ochieng’-Odhiambo tematiza a atribuição do nome na comunidade Luo, identificando quatro níveis: nomes de crianças; nomes de sonhos e antepassados; nomes de parentesco; nomes de estimação ou virtudes. Partindo-se de interrogações resultantes de conversas com uma amiga, que se reportava ao facto de, na região central do Quénia, as pessoas darem tratamento igual a mulheres, crianças, cabras e terra, Betty Wambui aborda o problema da categorização dessas entidades. Partindo da seguinte questão –   «por que razão é útil escrever sobre filosofia em língua Igbo? – o falecido Emmanuel Chukwudi Eze elaborou uma reflexão metafilosófica sobre a relação que se estabelece entre o pensamento e a linguagem. Por fim, um dos fundadores da Escola de Legon, o ganense Kwasi Wiredu aborda o problema do bem e do mal na tradição Akan, interpretando a «primeira lei da conduta humana» cuja violação revela um comportamento fundado no mal.

 
Alguns comentários

É assinalável o facto de o livro organizado por Chike Jeffers ter e merecido interessantes comentários da comunidade académica, especialmente de membros da Associação Americana de Filosofia. É o caso de alguns dos trabalhos apresentados no painel especialda reunião da Divisão Leste, em Baltimore, realizada em Janeiro de 2017, tendo sido dedicada exclusivamente ao referido livro, «Listening to Ourselves: A Multilingual Anthology of African Philosophy», (Ouvindo a nós Mesmos: Antologia Multilíngue da Filosofia Africana). Tais trabalhos foram  publicados no volume 16 do seu boletim da referida associação. A norte-americana Gail Presbey qualificou-o como «exercício ousado», novo, no nosso contexto do século XXI. Em seu entender, os leitores têm o privilégio de ler as traduções em língua inglesa de artigos que não encontrariam em artigos dos mesmos autores, escritos originalmente em inglês. Para o ganense Joseph Oseio «ouvir a nós mesmos» como filósofos permite ter a consciência de exemplos concretos e assim afirmar a perspectiva  ontológica de que a existência da Filosofia Africana como uma disciplina intelectual ou discurso é real e não uma ilusão. É uma demonstração do que os filósofos profissionais africanos capazes. Não só de ter um pensamento independente e crítico, mas também de estarem activamente empenhados na descolonização filosófica e na libertação, contribuindo deste modo para o discurso filosófico global e para a resolução de problemas. Além disso, sustenta Osei, desfere-se um profundo golpe contra as crenças racistas relativamente aos Africanos e Afrodescendentes.

 
Conclusão

Podemos concluir que a reivindicação do direito à filosofia tem na questão da língua uma das suas mais elevadas manifestações. Apesar de ser um daqueles tópicos que suscitam controvérsias, parece ser necessário prestar atenção aos trabalhos de sínteses com os quais se inventariam e se produzem mapeamentos daquilo a que a especialista tcheca, Alena Rettová, denomina por  «Afrophone Philosophies», (Filosofias Afrófonas). Não seria má sugestão para tópico de conversa. Com ele poderemos compreender a questão das «filosofias em línguas africanas», tal como propõe  a investigadora checa. O interesse é ainda maior na medida em que ela procede à articulação dialógica das filosofias e literaturas afrófonas, ao elegê-las como campo de investigação. Com efeito, o mapa destas filosofias e literaturas é hoje relativamente abundante, cobrindo vastas regiões da África Central, Oriental e Austral, bem como  da África Ocidental. Em suma, vale a pena conhecer as acções que vêm conduzindo à sistematização do pensamento filosófico.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 03 de Dezembro de 2023, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 03/12/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/da-titularidade-do-direito-a-filosofia-ii/

Marcos Carvalho Lopes

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