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3 de Fevereiro: O Imperativo de (Re)Imaginar a Nação

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Vinde, vinde moçambicanos, exaltemos Mondlane (…), assim começava uma das canções dedicadas ao 3 de Fevereiro na nossa discografia (etno-musicológica) de música revolucionária.

A arte sempre se antecipou à filosofia. Ao lado e para além das epistemologias desconstrucionistas (post-modernos, post-coloniais, subalternistas), a arte, sobretudo  a africana e afro-diaspórica, apresenta-se como o lugar de convergência e de síntese de posições de filósofos, artistas, historiadores, críticos e como espaço de reivindicação das novas ambições africanas…

Em Novembro de 2018, o Museu Nacional de Arte (MUSART), organizou uma exposição – de grande relevo museográfico, onde o museu aparece como um lugar de debate da nossa moçambicanidade – (Re) Imaginar a Nação. No MUSART, idealizado em 1975 mas aberto só em 1989, prevaleceu a ideia de falarmos de nós próprios, do nosso ponto de vista sobre o que faz a nossa identidade; sobre o que herdámos e queremos deixar como marca e legado às gerações futuras. Porém, este museu limitou-se apenas à recolha de obras de arte, e talvez por isso não tenha tido muito êxito. Os curadores da exposição “(Re)Imaginar a Nação” sugerem uma nova abordagem e função para o museu e para as obras de arte. Eles querem vivificá-las, subordinar a sua exposição a um tema, a um motivo e obrigá-las a testemunhar; convocar as obras de arte, tirá-las do seu cativeiro e pô-las a falar da necessidade de um renascimento (Re-imaginação).

O propósito do “(Re)Imaginar a Nação” é comparável ao Renascimento de Harlem, onde – com Mac Key, Du Bois, Langston Hugues e Alain Locke – se discutiu pela primeira vez a estética negra e a função soteriologica da arte. Em Harlem primou a defesa de uma humanidade que nos era negada. “(Re) Imaginar a Nação” sugere também a ideia de uma estética funcional; dar às obras de arte e à reflexão sobre elas uma missão, não dirigida a outros, como na etnomuseologia, aos que têm que nos reconhecer, mas virada para o interior, para nós.

Os curadores (Dionisio Mula, Élia Gemusse e Ventura Mulalene), na esteira do Museu Imaginário de André Malraux, participaram numa espécie de reinvenção desta instituição – através da criação do que se pode chamar um «contra-museu» – e, apoiando-se em Mondlane que associava a arte (Malangatana, – Craveirinha,  Noémia de Sousa) com o despertar do nacionalismo; postulam que o lugar da imaginação do novo, ou de um novo, Moçambique – como outrora – passa pela imaginação artística.  Mondlane serve também de Leit motif da exposição com o tema central: “Em Moçambique, levantava-se uma nova geração de insurreição, activa e decidida a lutar nos seus próprios termos e não nos termos impostos pelo governo colonial…”.

(Re)Imaginar a Nação é um titulo que disfarça mal a inquietação dos curadores sobre o estádio da nação, donde a necessidade de uma retomada. Mas a chamada de Mondlane parece significar que ela tem que ser re-imaginada a partir de onde ele foi, em primeiro lugar, imaginada e o postulado deve ser uma auto-centração: “lutar nos seus próprios termos”.  O que significa esse “seus próprios termos”? Isso implica a existência de um ‘seus’, um lugar próprio, diferente e independente dos termos dos portugueses. É deste lugar que vai brotar a ideia da nação, um seus que transita e torna-se um nós, nós (nação). É esse nós (nação), hoje em crise, que precisa ser re-imaginado.

Na imaginação primitiva, tratou-se de criar uma concepção de Moçambique, da sua unidade e da sua organização. A propaganda dos portugueses era que ‘Moçambique só era Moçambique porque era Portugal’. Tratou-se para Mondlane e para “a nova geração de insurreição” fazer com que Moçambique fosse pensado a partir das suas entranhas, de arquitectar uma estrutura política na qual os moçambicanos, apesar das suas pertenças díspares, se pudessem reconhecer e das diferenças pudessem criar uma unidade, um nós; uma estrutura social que lhes fosse benéfica.

Para pensar o nós, Mondlane desloca o lugar da identidade do nós para onde a palavra livre se podia pronunciar. Mais do que deslocar, sai do lugar-espaço da tsonganidade de Junod/missão Suíça, da geografia colonial, para o espaço “improvável” da nação moçambicana. Move-se de estratégia em estratégia, abdica das suas convicções liberais até quase a afirmar-se socialista. O único soclo (rocha), a pedra de ângulo, o porto seguro do qual não se moveu foi do nós. Em nome desse nós, que se tonou o centro ontológico da sua existência, tudo era negociável, sacrificável, até a vida.

A vida política de Mondlane confunde-se com a imaginação, criação e defesa deste “nós-Moçambique”. Foi este nós, na sua constituição e na defesa de seus interesses, que ele ousa (aude) pôr como postulado e condição do possível diálogo com os portugueses e com o mundo inteiro.

A grandeza deste aude, desta ousadia, é incomensurável; ele é posto por um cidadão de um país que ainda não existe (Craveirinha); de um povo que ainda não é (Noemia de Sousa), diante de um império colonial. Era muita ousadia para um chefe de uma pequena guerrilha querer impor o seu ponto de vista a um império colonial apoiado pela OTAN. Mas é exactamente nessa ousadia, nesse aude, nessa temeridade que reside a pertinência da busca e chamamento de Mondlane para as nossas políticas de hoje.

O “Lutar por Moçambique” é um exemplo de conhecimento, de cultura moçambico-centrada. O ponto de partida, o lugar a partir do qual se olha para o mundo é Moçambique, não obstante a nossa fragilidade e limitações. Isto deveria questionar o Moçambique de hoje, em crise de sentido; país que – por causa dos egoísmos – já não consegue pronunciar a palavra nós, não consegue ser sujeito, ter um pensamento e uma perspectiva próprios e, à deriva, vegeta tributário e a reboque de quem vem, do que eles querem: Mozal, Vale, Pró-Savana, as petrolíferas, o FMI, o Banco Mundial: tudo vale…

No “Lutar por Moçambique” Mondlane antecipa os debates epistemológicos contemporâneos. Porém, não se limita a desconstruções críticas, à descentração da Europa (Dipesh Chakrabarty), à descolonização epistémica (Weredu), mas transforma o seu pensamento numa política. Porém o nós é, por antonomásia, um conceito estético. Neste sentido, a exposição “(Re)Imaginar a Nação” atinge o sentido primeiro do conceito de estética, um sentimento comum. Mas ao mesmo tempo, faz da estética o lugar de pensamento de uma política que parte de nós, lugar de um imperativo de (re)nascimento.

Lutar por Moçambique é um desafio contínuo. A asserção de Frantz Fanon nunca foi tão verdadeira e pertinente: “cada geração tem uma missão a cumprir,  realizá-la ou traí-la”. A prudência, que é uma virtude e forma de sabedoria, quer que antes de nos lançarmos à realização da nossa missão olhemos para trás, para a história,  grande mestre com muito a ensinar, mas com poucos discípulos (António Gramsci). Umas vezes até parece que a “geração da insurreição” teve uma missão muito árdua, lutar contra o colonialismo debaixo de perseguições, prisões, torturas e até assassinatos. Outras vezes, parece que, na sua dificuldade, teve sorte e a tarefa estava facilitada: tinha, e definiu-o com exactidão, um  inimigo claro – o colonialismo; e  um objectivo transparente e fundamental: a autodeterminação política.

As gerações da insurreição e da independência, apesar das críticas que lhes podemos fazer por causa de alguns dos seus (mal) feitos – nos procedimentos, nas ideologias, nos processos económicos – em retrospectiva e com a distância histórica (la longue durée de Bergson e da Escola dos Anais) que temos, somos obrigados a reconhecer que se engajaram para realizar aquilo que pensaram que foi a sua missão. Hoje, na época da complexidade (Edgar Morin), do Neo-liberalismo (José Castiano), da Necropolítica (Achile Mbembe), do eugenismo, da sociobiologia, do trans-humanismo é impossível  identificar o inimigo contra o qual lutar e, sobretudo, com quem contar para essa luta – dentro dos partidos em concorrência obtusa e mesmo entre os apparatchiks que nos governam. É, porém, nestas circunstâncias aporéticas que temos o desafio de realizar a nossa missão, de continuar a lutar por Moçambique, de nos apropriarmos do projecto de Mondlane (e da então Frelimo), fazê-lo nosso e actualizá-lo nas condições de flagelo actual no país (petro-colonisado) e no mundo; uma versão de Lutar por Moçambique que não repouse sobre as diferenças, sobre as discriminações, nem alimentado por lutas e vinganças nyuso-guebusianas e/ou submetidas a políticas de predação, de grupismos, mas que se abre  a uma política do “nós moçambicanos”, de nós todos juntos, única capaz de construir horizontes de futuro.

Os passados, todos os passados, tiveram os seus futuros. Alguns desses futuros são hoje o nosso presente. Outros futuros do passado não tiveram nem têm nenhum presente, como há também futuros do passado que serão futuros no futuro. Há também futuros do passado que não tiveram e não têm futuro, como há também futuros do presente sem futuro. Porém, existem também futuros do passado que não tiveram espaço de realização, mas porque não estão ultrapassados, são convocáveis no presente para um eventual debate de futuro. O interesse pela figura humana, intelectual e política de Mondlane não se explica pela importância dos problemas, das controvérsias e aporias do tempo em que ele viveu – filosofias, alianças políticas, ideologia –  mas é a actualidade do seu pensamento (tipo de modelo político, de moral pública, da democracia, da descentralização, da justiça social) que nos impõe uma sua releitura que é, ao mesmo tempo, uma abertura e uma retomada. É a multiplicação das nossas interrogações, das nossas inquietações, das nossas buscas que nos trazem Mondlane de volta; não tanto para o exaltarmos (como reza a famosa canção da nossa musicologia revolucionária), mas para recordar o espírito que norteou a génese da nossa identidade comum e servir de bússola, neste momento de incerteza de sermos e constituirmos um povo, um povo que vale a pena ser preservado e continuado!

Se os heróis são o timbre da nação, alguns fazem-no porque nos recordam os valores e os princípios sobre os quais a nação foi fundada. Outros recordam-nos o passado glorioso do qual o próprio herói emergiu. Mondlane pode fazer mais do que isso; ele pode lembrar a génese e os fundamentos, interrogar as nossas práticas, e dar-nos subsídios moçambico-centrados  para o nosso devir. Trazer Mondlane de volta talvez signifique (re) buscar um “nós – Moçambique”, uma versão/visão moçambicana (ponto de vista) do mundo,  privilegiar a palavra e o diálogo como imperativo de relação intra-murus, e buscar sempre e constantemente o compromisso, a cooperação e perseguir o consenso.

Procurámos Mondlane atrás (no passado), antes de 3 de Fevereiro de 1969, mas talvez a “águia que levantou vôo” (com os seus ideiais, ideias e visões do mundo)  esteja em frente, à nossa espera…

Severino Ngoenha, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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