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A crítica aos poetas (VI): Eticidade, justiça e insolência

O trabalho é o que encontramos fundando a eticidade, a ambição é o que faz da justiça o refúgio dos insolentes


Volto, depois de uma necessária digressão sobre ética e comunicação no último artigo, a refletir sobre a noção de justiça em Hesíodo. A motivação por trás da série de artigos sobre os poetas, lembre-se, é a crítica de Platão a Hesíodo e Homero. É merecida essa crítica? Pelo que venho tentando mostrar, as palavras de Platão não se aplicam, sem mais, a Hesíodo.

Não precisamos de uma leitura muito profunda da Teogonia e Os trabalhos e os dias, desse poeta, para perceber que as duas obras defendem uma noção de justiça que coincide em muito com a que o próprio Platão defende na República. Pois podemos inferir, tanto do que lemos na Teogonia como do que vemos nos primeiros 200 versos de Os trabalhos e os dias, que seu autor defende uma noção de justiça que não depende do arbítrio e da imprevisibilidade humanos. A justiça, nas duas obras, está além dos interesses individuais e dos parâmetros de bem-estar meramente pessoais. Podemos falar de justiça, portanto, de duas maneiras. Como justiça em si, absoluta, e como justiça dos homens.

Nos Trabalhos e os dias há uma clara compreensão da justiça humana como a justiça de quem está no poder e que consiste em ser o conjunto de decisões dos governantes (arcontes, reis, príncipes). Assim, a justiça que de fato existe e que decide sobre assuntos humanos, é a tese implícita ou explícita de Hesíodo, deve adequar-se à justiça absoluta, à justiça divina. Mas isso nem sempre é assim e, o que é pior, pode acontecer exatamente o oposto. Pois chegará uma época, diz o poeta, em que “honrar-se-á muito mais ao malfeitor e ao homem desmedido”¹ , tomando-se a justiça nas próprias mãos e fazendo-a depender da força.² A força, portanto, não gera direito nem a justiça pode depender dela. Essa é a tese de Hesíodo. Lembremos que, na República, Platão procura refutar precisamente a tese de Trasímaco que é compatível com a que Hesíodo critica. Para Trasímaco, a justiça é o interesse dos poderosos, cada governo promulgando as leis que convêm aos que as estabelecem: leis aristocráticas numa aristocracia, oligárquicas numa oligarquia e assim por diante. Mas é essa exatamente a idéia de justiça que Hesíodo combate insistentemente nos Trabalhos.

No mesmo trecho em que critica a idéia de que a justiça radica na força (bruta) dos homens, Hesíodo adverte: “A todos os homens miseráveis a inveja acompanhará,/ ela, malsonante, malevolente, maliciosa ao olhar./ Então, ao Olimpo, da terra de amplos caminhos,/ com os belos corpos envoltos em alvos véus,/ à tribo dos imortais irão, abandonando os homens,/ Respeito e Retribuição; e tristes pesares vão deixar/ aos homens mortais. Contra o mal força não haverá!” (Loc. cit., vv. 195-202.) Os males que cairão sobre os homens, é bom notar, devem-se ao ultraje inicial cometido por aqueles que ultrapassaram os limites da justiça e do comedimento. A tradutora da edição brasileira usa o termo português “desmedido” para caracterizar a ação desse homem. Na tradução clássica para o inglês de 1914, de Hugh G. Evelyn-White, usa-se o termo “violento”. O termo grego é hybris, híbrido, e entre os vários significados do termo temos, segundo o Oxford Classical Greek Dictionary: “comportamento excessivo, imoralidade, insolência, violência, ultraje.”³ O excelente dicionário do sacerdote jesuíta Isidro Pereira dá, entre outros, os seguintes significados: “excesso, orgulho, insolência, desenfreio, ultraje, violência, violação (de mulher ou criança).”* Vemos, assim, que hybris se caracteriza por ser qualquer ato violento que ultrapasse a justa medida, o limite, ou por ser aquilo que vá contra a natureza das coisas ou a vontade divina. Desse modo, uma vez desrespeitados os justos limites por um ato violento e imoral, “Contra o mal força não haverá!”

Como vimos há poucas linhas, a conseqüência imediata desse ato com que se ultraja a justiça, segundo Hesíodo, é que as deusas Aidôs e Nemesis, abandonando os homens, irão ficar na morada dos deuses. Assim, entre os homens, uma vez perdido o respeito devido de cada um para si e para o resto, e sem a justiça que retribui a cada um o que é seu, instala-se um mal contra o qual “força não haverá!”.

Há nessas passagens uma concepção de justiça que claramente separa o interesse mesquinho do ambicioso dos interesses coletivos. Constata o poeta que, ao fazer os homens justiça pelas próprias mãos, baseando-se na força e na violência, minam-se as bases da coexistência harmônica de uma comunidade, criando-se as condições para sua ruína total.

Pelo que temos visto nos últimos artigos, os valores éticos são o elo necessário que mantém unidas as comunidades, das mais antigas e homogêneas às mais desenvolvidas e heterogêneas. No seu desenvolvimento, no entanto, os valores éticos vão perdendo em especificidade e ganhando em abrangência e abstração. Numa comunidade em que a diversidade de seus membros é quase nula, os valores são de todos por terem todos os mesmos interesses. Num grupo mais evoluído e diversificado social e economicamente, a relação valor-indivíduo se perde irrecuperavelmente. O aparecimento de diferenças sociais e econômicas, que faz surgir castas e finalmente as classes, torna impossível que os valores que uma comunidade propõe como universais sejam de fato aqueles que interessariam a cada membro da comunidade defender. Algo há que abafa e destrói paulatinamente a eticidade primitiva, concreta, válida para todos e cada um dos membros da comunidade. Algo há que impõe uma outra ética, aquela útil para uns e não para outros, apresentada, porém, como sendo válida universalmente. O que consegue destruir a ética coletiva e impor a individual não é mais do que o aparecimento da propriedade e, com ela, o sentimento que ela mesma estimula: a ambição. A ambição é a condição para a desproporção, para o desmedido, para tornar a justiça, antes universal, na justiça do ultraje e a insolência.


¹ Hesíodo. Os trabalhos e os dias. (Trad. Mary de Camargo Neves Lafer.) São Paulo: Iluminuras, 2002. vv. 191-192.

² Works and Days. In: The Homeric Hymns and Homerica. (Trad. Hugh G. Evelyn-White.) Cambridge : Harvard University Press; London, William Heinemann Ltd. 1914.

³ Nova Iorque : Oxford University Press, 2002.

  • Pereira, I. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Porto : Livraria Apostolado da Imprensa, s.d.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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