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A crítica aos poetas (V): Ética, linguagem e comunicação

A linguagem é o elo por meio do qual os valores de uma comunidade se afirmam e perpetuam


Nos últimos artigos tenho tentado mostrar que a crítica de Platão a Homero e Hesíodo na sua República, no que diz respeito ao segundo, encontra alguns problemas. A acusação de Platão, em síntese, consiste em afirmar que as obras desses poetas desestimulariam o respeito à justiça e aos valores éticos que devem prevalecer numa sociedade bem organizada – quando, de fato, não induzem abertamente à prática da injustiça ou constituem uma apologia de valores imorais.

É bom lembrar, mais uma vez, que os termos ‘ética’ e ‘moral’ vêm do grego ethos e do latim mor, hábito, costume. Não resulta uma surpresa, portanto, o porquê da carga valorativa de ambos os termos. É óbvio que as comunidades — pensemos, para facilitar, nos mais antigos grupos humanos — precisam criar e manter certos hábitos para poder subsistir como tais comunidades. E são claras, também, as razões para que isso ocorra dessa maneira. Pois o que condiciona os costumes senão a atividade básica dos seres humanos, a saber, o trabalho, aquilo que fazem para subsistir? Os seres humanos, aliás, não só produzem suas condições de existência como as reproduzem continuamente. Esta constante reprodução das condições de existência só pode ser feita adequadamente mediante a criação de hábitos. Hábitos que pressupõem o esforço das comunidades por adaptar-se ao seu habitat. Assim, são forçadas a caçar certo tipo de animais e não outros, a pescar de certas maneiras e não de outras, a colher os frutos de um certo modo e em certas épocas e não de maneiras e em períodos diferentes. Por milhares de anos, as comunidades viram-se forçadas a estabelecer determinados hábitos de sobrevivência. Sem isso não haveria técnica, tecnologia, cultura e, por fim, civilização. E foi a escolha ou a introdução de certos hábitos adequados ou inadequados que permitiu que algumas continuassem e progredissem e outras perecessem. O ‘melhor’ e o ‘pior’, isto é, os valores, relacionados aos hábitos, não são nem poderiam ser tão arbitrários ou subjetivos como muitos querem pensar. Há, portanto, critérios objetivos para os valores éticos.

Isso nos leva a esta necessária conclusão: a ética, como conjunto de valores, é muito anterior à civilização. Muito anterior ao aparecimento das cidades e, portanto, à cidadania. A ética, claramente, está atrelada à constituição da nossa espécie e ao que, junto à racionalidade e à linguagem articulada, nos distingue dos animais: o trabalho. Entendo ‘trabalho’, aqui, como a atividade consciente realizada comunitariamente para a sobrevivência do grupo. A organização dessa atividade, em conseqüência, está necessária e essencialmente vinculada às particularidades do meio, isto é, às fontes de água, ao clima, à fauna, à flora e ao tipo de solo. A adaptação ao meio, portanto, não se faz sem a criação de hábitos e de maneira casual. Assim, originalmente, o ethos de uma comunidade é, essencialmente, esse conjunto de práticas positivas ou negativas, benéficas ou prejudiciais, más ou boas para o grupo. Sei que as presentes considerações me afastam, por exemplo, de Hobbes, quem considera que, no estado de natureza, ‘bom’ e ‘mau’ dependem de cada um, individualmente. O indivíduo, como o entendem os modernos, no entanto, é posterior e não anterior ao aparecimento da cidade e o Estado. O homem no estado de natureza, ao contrário do que Hobbes pensava, é, para mim, essencialmente ético. É essencialmente ético na medida em que não poderia ter sobrevivido isolado, desgarrado, sem um grupo que o protegesse dos infindáveis perigos de um mundo hostil no qual, antes de nada, devia sobreviver. Essa eticidade originária faz necessariamente parte de todos os tipos de sociedades posteriores. No fundo, então, os valores éticos são essencial e fundamentalmente coletivos, não individuais. Isso não significa, por outro lado, que tais valores sejam eternos ou permanentes com tais valores. Variam de acordo às mudanças de hábito das comunidades — que, por sua vez, obedecem aos fatores mais variados. Mas, de qualquer maneira, seja por desastres geográficos, mudanças climáticas drásticas ou pelo contato com outras comunidades (hostis ou amigáveis), a mudança de valores éticos dependerá do tipo de atividade produtiva que, perceptível ou imperceptivelmente, abrupta ou demoradamente, cada sociedade passa a adotar. A variação de tais valores, contudo, está no interesse da própria comunidade na medida em que a ela convém que se valorize o que permite sua existência e que se despreze o que possibilitaria sua destruição.

As leis escritas e não escritas e, portanto, a noção mesma de justiça, são expressão de valores éticos; estes, por sua vez, são conseqüência direta dos hábitos da comunidade que refletem as formas de trabalho e produção que as comunidades vão adotando ao longo de sua história. À medida que existe uma diversificação de atividades produtivas dentro da mesma comunidade, novos hábitos neste ou naquele grupo poderão levar à postulação de valores necessários a esses grupos. Com o passo do tempo, conflitos podem ocorrer, e de fato ocorreram, que levem essas comunidades a lutas intestinas, como a história não se cansa de nos mostrar.

Produção, Reprodução, Distribuição — A produção e reprodução dos meios de vida numa comunidade determinam a atribuição de tarefas. Isso, por sua vez, provoca a diversificação de funções. Necessariamente, a distribuição da produção ou da riqueza de uma determinada comunidade vai depender de atribuir maior ou menor importância às diversas tarefas. No entanto, originalmente, tal atribuição de tarefas, dos valores atrelados a essas tarefas e a distribuição da riqueza ou do excedente decorrentes dessas tarefas dependia mais de uma decisão coletiva do que da apropriação arbitrária ou da distribuição acidental. Quanto mais antiga a comunidade, mais pública e consciente a distribuição. Nessas comunidades, os atos (ritos, cerimônias) em que se postulavam, aceitavam e difundiam valores estavam mais para o explícito do que para o tácito ou pressuposto. Essa difusão de valores é um dos elos mais importantes daquelas comunidades e estava vinculada à disseminação de informações sobre fatos decisivos. Encontra-se aí a racionalidade dos mitos e dos episódios religiosos que explicam os fenômenos naturais, justificam os eventos mais importantes, dão coerência ao mundo e respondem aos porquês fundamentais da vida passada, presente e futura de cada povo. A linguagem, conseqüentemente, é o meio pelo que as antigas comunidades conseguiram difundir os valores que permitiram — e permitem ainda — a consolidação da identidade e da união necessárias para sua subsistência como tais comunidades. Não é possível a um povo vencer seus desafios se não consolida uma identidade e estabelece os objetivos que todos devem querer alcançar. Tal identidade comunitária só pode ser constituída e tais objetivos só podem ser alcançados por meio do elo que só a linguagem pode criar. Isso, por sua vez, só ocorre pela comunicação diária entre as pessoas e as formas de comunicação com seu passado e suas tradições. A oralidade, em primeiro lugar, e não tanto a escrita, é o veículo que mesmo nos povos civilizados mais eficazmente difunde e aprofunda os valores que aos povos interessa que se transmita entre seus membros e se passe de geração em geração. A escrita, de outro, alicerça e firma sobre bases mais sólidas e permanentes tais valores. Os mitos, as estórias, os contos, portanto, cumprem uma função fundamental na defesa, difusão e manutenção de valores éticos e, portanto, na coesão do grupo, da comunidade ou do povo. Assim, dificilmente os mitos de uma determinada cultura podem ser, como pensava Platão sobre os mitos difundidos por Hesíodo e Homero, essencialmente amorais e eticamente destrutivos.


Texto baseado numa conferência proferida na Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Goiás, em 15 de setembro de 2003, sob o título “Ética, comunicação e cidadania”.


Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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