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A filosofia anti-colonial nos PALOP – II

Luís Kandjimbo |* Escritor

Quando o filósofo nigeriano, OlufemiTaiwo, afirmava que os estudos sobre colonialismo em África implicam o estudo da modernidade, revelando-se necessário distinguir colonialismo de modernidade, pretendia estabelecer um diálogo com filósofos contemporâneos, tais como o ganense KwameGyekye (1939-2019), o francês Bruno Latour (1947-2022) e o alemão Jürgen Habermas ou ainda com os latino-americanos, entre os quais se destaca o argentino-mexicano Enrique Dussel.

Noção de modernidade

Neste sentido, OlufemiTaiwo quer dizer que o colonialismo europeu é posterior à modernidade ocidental. Dito de outro modo, o colonialismo é uma perversão ética da modernidade. Por isso, o filósofo nigeriano faz apelo a que os Africanos respondam igualmente à pergunta: O que é a modernidade?

A modernidade não é exclusivamente uma invenção europeia, embora a historiografia ocidental consagre o ano de 1650 como seu cronótopo, assinalando o momento inicialda sua periodização. Bruno Latour associa-lhes, entre outros nomes, os filósofos britânicos Thomas Hobbes (1588-1679) e Robert Boyle (1627-1691). Com a sua filosofia antropológica da modernidade, Bruto Latour contribui para a denúncia da cegueira e ignorância europeias que têm nas aventuras marítimas e nos chamados “descobrimentos” a expressão máxima da sua ilusão.Hobbes e Boyle representam a criação de dispositivos em que se funda a modernidade ocidental e com os quais se institucionaliza o Estado moderno ocidental, designadamente, a consagração do princípio da subjectividade, do individualismo em detrimento do comunitarismo, o “poder político encarregado de representar os sujeitos” e o “poder científico encarregado de representar as coisas”, isto é, as figuras do leviatão omnipotente e do laboratório experimental.

Por sua vez, Kwame Gekye considerava ser falsa a impressão transmitida pela ideia segundo a qual os elementos constitutivos da modernidade são de origem exclusivamente europeia, devido ao modo como se desenvolveu. Para o filósofo ganense há que admitir a possibilidade de a modernidade, enquanto fenómeno eminentemente cultural, conter empréstimos tomados de fontes civilizacionais não-europeias. Além disso, acrescenta Gyekye, a assimilação de elementos provenientes de outras civilizaçõ essugere que os elementos não-europeus eram em si mesmos modernos. Para Gyekye não há provas que sustentem a reivindicação de superioridade da modernidade ocidental peranteoutras tradições culturais e respectivas manifestações da modernidade.Na verdade, são diversos os contributos de África para o surgimento da modernidade. Por exemplo, o comércio transariano do ouro para o desenvolvimento da economia mercantil, a tecnologia da navegação marítima no Oceano Índico e a mão-de-obra que assegura a prosperidade da economia de plantação e a exploração do ouro nas Américas. Esse é o período da chamada Idade Média africana em que se distinguem os nomes de filósofos Africanos, nomeadamente, Ibn Kaldun (1332-1406), Ahmed Baba(1556–1627) e Zara Yacob (1599-1692).

Anti-colónia

Em África, a modernidade funda-se na alteridade dos povos, no seu pensamento,acção e culturas. Por conseguinte, reflectir sobre a ontologia da acção anti-colonial é um imperativo filosófico. A leitura da epistolografia dos reis do Kongo e de Portugal, bem como a narrativa histórica contida nas crónicas sobre os contactos e as relações entre os soberanos Africanos e os navegadores portugueses, as resistências à ocupação europeia, registadas entre os séculos XVI e XVII, fornecem provas que permitem responder à pergunta formulada. De tal modo que se pode concluir, efectivamente, que o colonialismo é um sistema gerado sob a batuta do cristianismo, sendo filha de modos de produção da economia e do conhecimento, bem como das transformações políticas ocorridas na Europa.A expansão colonial portuguesa, como se sabe, emana das necessidades mercantis que impulsionaram as aventuras marítimas, das vagasextraeuropeias de proselitismo cristão, suportadas pela memória imperial da Europa romana, legitimada pelo centro de irradiação do cristianismo católico, após a reconquista da península ibérica que, durante seis séculos, tinha estado sob ocupação de Árabes e Africanos. Portanto, no caso de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, por exemplo, as resistências à ocupação europeia configuram a existência de anti-colónias, nos reinos litorâneos do Kaabu, Kongo, Ndongo, Benguela e Gaza.Anti-colónia é um enunciado que decorre da interpretação dos processos a que a modernidade dá lugar. Representa o contrário das colónias de povoamento de inspiração romana que adquirem forma institucional no século XIX com a Conferência de Berlim de 1884-85. Pode dizer-se que a anti-colónia, enquanto comunidade que resiste à violência do colonialismo, tem entre os seus fundamentos um sistema cultural que comporta a moral e suas práticas, as artes, as literaturas, o direito e a filosofia. Por sua vez, a colónia de povoamento, instituição jurídico-política que constitui instrumento de ocupação do território originário da comunidade resistente, está dotada de dispositivos fiduciários destinados a garantir a assimilação. A literatura colonial e o direito positivo ocidental são alguns desses dispositivos.

Cronótopo anti-colonial

O referido cronótopo da modernidade ocidental, que se situa no século XVII, também constitui o momento genético das anti-colónias em África. Até aí existiam apenas entes soberanos que, através dos seus representantes, procuravam estabelecer relações diplomáticas e comerciais. Para a compreensão do significado do cronótopo, contam como fontes históricasas crónicas do portuguêsAntónio de Oliveira Cadornega (1623-1690), do padre capuchinho italiano António Cavazzi de Monteccucolo (1621-1678), e outros, no século XVI. Já para o século XIX, os relatos dos “exploradores” europeus são outras fontes de relevo.

Nos territórios desses reinos litorâneos africanos realizaram-se acções individuais e colectivas para defender a autodeterminação e a soberania política, tendo como base os fundamentos culturais das respectivas comunidades. Por essa razão, afigura-se necessário desencadear uma abordagem filosófica acerca desse tipo de acções humanas protagonizadas pelos Africanos e seus líderes políticos, remontando ao período charneira já mencionado. Localizam-se aí os fundamentos inspiradores do pensamento anti-coloniale pan-africanista do século XIX que assumem a forma discursiva de contra-colonizaçãono século XX, corporificada em duas correntes filosóficas, a que Odera Oruka (1944-1995) designou por filosofia nacionalista ideológica e filosofia artística e literária. Na América Latina, corresponde-lhe a “filosofia da libertação” que tem o seu lídimo representante em Enrique Dussel.

Ontologia descritiva

Constitui um imperativo filosóficoreflectir sobre a ontologia da acçãoanti-colonial. Ao tematizar a filosofia política africana, a nigeriana Mary Stella Okolo e o democrata congolês AlbertKasanda levantam o problema da sua relação com a ontologia. Se a anti-colónia é uma comunidade africana que resiste à violência do colonialismo e que tem entre os seus fundamentos um sistema cultural que comporta a moral e suas práticas, as artes, as literaturas, o direito e a filosofia, justificam-se as seguintes perguntas: 1) O que é a acçãoanti-colonial?; 2) Quais são as acções, processos e eventos susceptíveis de categorização como anti-coloniais? 3) Em que medida são essas acçõesdignas de serem consideradas como problemas de ontologia ou filosofia política? As respostas implicam operacionalizar procedimentos de uma ontologia existencial e descritiva, determinar as suas propriedades, produzir a informação correspondentee interpretá-la.

Ora, se existem fontes para o estudo da filosofia política anti-colonialafricana, não é possível ignorar os estudos e publicações que revelam o pensamento que assim pode ser classificado. É o caso da produção reflexiva dos líderes políticos dos Movimentos de Libertação Nacional, durante o período da luta anti-colonial. Um dos seus traços distintivos principais é a definição da matriz ideológica e programática para a liquidação do colonialismo, tendo em vista a organização social, política, cultural e económica do Estado independente. Para o efeito, as experiências de efectivação dos modelos de organização realizavam-se no exílio, nas zonas libertadas e parcelas dos territórios onde decorriam as acções da guerra de libertação anti-colonial. Além da produção reflexiva dos líderes políticos, importa ter em conta a produção literária de escritores, as artes e o cinema. Estas reflexões e produções conformam as correntes de que falava o malogrado filósofo queniano OderaOruka, a filosofia nacionalista ideológica ea filosofia artística e literária.

Uma filosofia política

Na perspectiva da ontologia formal que permite classificar a totalidade da produção reflexiva dos líderes políticosdos movimentos de libertação nacional, a produção literária de escritores, as artes e o cinema constituem fontes da filosofia política africana e da filosofia artística e literária.

É nessas correntes filosóficas que se inscrevem o pensamento e a acçãoanti-colonial dos escritores, intelectuais e líderes dos Movimentos de Libertação Nacional tais como Agostinho Neto (Angola, 1922-1979),António Jacinto (Angola, 1924-1991), Holden Roberto (Angola, 1923-2007), Mário Pinto de Andrade (Angola,1928-1990), Jonas Savimbi (Angola,1934-2002);Amílcar Cabral (Cabo-Verde e Guiné-Bissau, 1924-1973), Abílio Duarte (Cabo-Verde, 1931-1996), Onésimo Silveira (Cabo-Verde, 1935-2021), Vasco Cabral (Guiné-Bissau, 1926-2005); Eduardo Mondlane (Moçambique, 1920-1969), José Craveirinha (Moçambique, 1922-2003),Samora Machel (Moçambique, 1933-1986)Alda do Espírito Santo (São Tomé e Príncipe, 1926-2010), Tomás Medeiros (São Tomé e Príncipe, 1931-2019)e Manuel Pinto da Costa(São Tomé e Príncipe, 1937).

À luz da ontologia descritiva, como pode a literatura ser caracterizada como filosofia política? Quais são os fundamentos com que podemos contar para incluir o pensamento e a acçãoanti-colonial dos escritores eintelectuais na filosofia política?

A filósofa nigeriana Mary Stella Okolo dá uma resposta e justifica o seu sentido. Em primeiro lugar, a literatura de uma sociedade é geralmente o produto da capacidade intelectual que consiste em captar os fenómenos sociais, culturais, religiosos, económicos e políticos. Em segundo lugar,a literaturapode revelar diferentes dimensões políticas, crenças e práticas de uma determinada sociedade, através da invenção de personagens e acontecimentos. Em terceiro lugar,a literatura propõe indagações acerca das relações dos humanos na vida em sociedade e sobre a melhor forma de governo para um povo. Em quarto lugar, a literatura pode articular pensamentos sobre a ideologia política susceptível de ser representativa.

Conclusão

Portanto,  no contexto em que se desenvolvem as acções e o pensamento anti-colonial dos PALOP, regista-se na segunda metade do século XX o surgimento de um campo da filosofia política cuja base são filosofemas elaborados pelos líderes políticos e estadistas Africanos, destacando-seo senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001)), o ganense KwameNkrumah (1909-1972), o zambianoKenneth Kaunda (1924-20219), o tanzaniano Julius Nyerere (1922-1999), o queniano JomoKenyatta (1894-1978), o guineens e Sekou Touré (1922-1984), o egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970). É no cruzamento que se articula entre a produção reflexiva anti-colonial dos PALOP e as ideias programáticas dos líderes políticos e estadistas Africanos da primeira geração após as independências que se torna possível avaliar o conjunto dos contributos para a filosofia política africana.

*Ph.D. em Estudos  de Literatura, M.Phil. em Filosofia

Marcos Carvalho Lopes

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