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A  CULPA

ensaio de Severino Ngoenha, Augusto Hunguana, Samuel Ngale e Giveraz do Amaral

cena do filme Xala, de Ousmane Sembene mostra um homem negro de terno e gravata bebendo servindo em seu copo uma água mineral importada da frança

Paul Ricoeur (um dos mais eminentes filósofos franceses pós guerra) publicou em 1947 (ano da criação do FLN da Algeria) na revista Esprit um artigo de três pequenas mas eloquentes páginas intitulado, La question colonial. A sua pretensão, claramente enunciada nas primeiras linhas era: examinar as responsabilidades dos colonizadores em relação as mazelas do colonialismo, com a premissa da defesa absoluta da primazia da liberdade, sobre qualquer benefício que a colonização se pudesse reivindicar. O filósofo não se dirige aos Estados, aos governantes, aos soldados e militares, e nem mesmo às pessoas que actuaram directamente nas forças colonizadoras. Ele se dirige ao cidadão comum que pertença às nações colonizadoras, cuja maioria não possuía nenhum conhecimento específico sobre questões coloniais.

Passavam só dois anos do fim da segunda guerra mundial e, no meio de ações contundentes da desnazificação, os europeus se perguntavam como tinha sido possível o holocausto. Foi nesse contexto que um outro filósofo, o alemão Karl Jaspers, tinha publicado Die Schuldgrage / A culpabilidade alemã (1946), obra que marcou profundamente a reflexão de Ricoeur sobre a culpa.

O que interessa a Jaspers e Ricoeur faz próprio, é para dizer como Espinosa, a regeneração do homem em cada alemão,  por meio de uma meditação leal e sem equívocos acerca da sua culpa.

Para além da inflexão mais universal da culpabilidade, haveria uma experiência que as demais nações poderiam extrair dos acontecimentos da Shoah (inclusive o Estado de Israel e o governo de Moçambique), um aprendizado do que não se podia repetir; o facto dos alemães terem consentido ao nazismo (e outras a escravatura e ao colonialismo), isto para além das desculpas e justificações retóricas a que se livram as diferentes nações e governos.

A reivindicação deles (colonizados) me perturba (diz Ricoeur), quando eles retornam contra nós os temas tocantes da nossa libertação nacional provocada pela nossa luta contra o nazismo. Eu receio ser nazista sem o saber. Eu escuto esses alemães protestarem lamentavelmente quando nós lhes falamos de Auschwitz: ‘Nós não sabíamos nada’. E nós os esmagamos vitoriosamente: a vossa culpa é não terem sabido”Eu não sei muitas coisas sobre a opressão francesa nas colónias e eu temo que a minha culpa seja, principalmente, culpa de omissão concernente essa informação”.

Na reflexão de Jaspers, que Ricouer faz sua, “existe uma solidariedade entre pessoas enquanto pessoas, que torna cada um co-responsável por toda a incorreção e toda a injustiça no mundo, especialmente por crimes que aconteceram em sua presença ou que são do seu conhecimento. Se não faço o que posso para evitar isso, também tenho culpa” é o que ele considera – e Ricouer com ele – uma culpabilidade metafísica, que vai para além das responsabilidades políticas e jurídicas.

A descoberta da dívida que Haiti teve que pagar (início do sistema dívidas) aos senhores de escravos foi um choque; choque ainda maior quando veio a tona que o presidente Jean-Bertrand Aristide foi deposto e exilado em 2004 por exigir, entre outras coisas, indemnizações ao Estado francês. Mas o apogeu do choque foi quando veio a público a magnitude da França-África: um mecanismo de opressão, responsável não só pelo assassinato dos que se opunham a ela, mas do denego da liberdade, da justiça, da democracia e do progresso aos povos africanos; uma necropolítica (A. Mbembe) responsável pela morte de fome e guerras provocadas – de milhões de crianças desde o Biafra, que perdura ainda hoje e a França dos direitos humanos, temerariamente, insiste a querer perpetuá-lo, com armas e artifícios jurídicos.

Hoje, na época das redes sociais, nenhum francês pode, nazisticamente, pretender não saber;  nenhum europeu,  membro de uma união vigilante e zeloso pelo respeito dos preceitos, obrigações, valores e regras dos seus membros, pode dizer que vigiou sobre tudo, menos sobre procedimentos ‘nazistas’ de um dos seus principais membros. Sabiam os Estados Unidos de Baraka Obama que, contra o esforço pan-africano de Muammar Gaddafi de fazer uma moeda única africana, preferiu alinhar com Sarkozy – como os outros afro-americanos, Condoleezza Rice e Colin Powell com Bush e hoje Lioyd Austin- com as cruzadas de Biden.

Num outro extremo, Hannah Arendt filósofa judia alemã (discípula/amante de Heidegger e amiga de Karl Jaspers), com o livro Eichmann em Jerusalém (1963), Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, provocou a ira de muitos judeus, mas sobretudo um debate acirrado com a ideia da responsabilidade judaica. A contribuição dos próprios judeus, com os conselhos judaicos, os juderate, (os judeus eminentes incumbidos de administrar os guetos) para a morte de judeus,  elaborando listas encomendadas pelos nazistas de pessoas que deviam ser enviadas para os campos de concentração, era um tema discutido antes do livro de Arendt, mas a filósofa radicalizou o debate. Ela escreveu que “onde quer que vivessem judeus havia líderes judaicos reconhecidos e essa liderança, quase sem excepção, cooperou de uma maneira ou de outra, por uma razão ou outra, com os nazistas”.

Esta injunção de Arendt lança, ipso factum, um olhar acusador sobre a responsabilidade dos africanos na nossa história trágica e de sofrimento. Não nos referimos as históricas acusações de cumplicidades africanas no processo da escravatura e do colonialismo, nem mesmo as lideranças fantoches (Mabutus, Idi Amines, Bongos…) a solde de outros, que oprimiram e brutalizaram as populações durante os primeiros cinquenta anos das nossas independências. Referimo-nos a  hoje e aqui, hit et nunc. Entre as elites africanas, todas confundidas (políticos, académicos, empresários), houve mais tomadas de posição sobre a guerra da Ucrânia, mais (uma justa) empatia sobre a Palestina que uma solidariedade real para com os jovens africanos que no Sahel lutam hoje, ao preço das suas vidas, para se desembaraçar, enfim, de um colonialismo que nunca abdicou nem saiu mas serve-se dos novos cipaios mascarados em  democratas, eleitos em urnas que inalam cheiros nauseabundos.

Ficamos escandalizados (sobretudo nós que pegamos em armas e expulsamos o colonialismo) com a descoberta das imposições político-económicas da França-África. Compreendemos hoje que essas imposições são algumas das causas maiores da fome e da miséria que reina no continente, sabemos que elas estão na origem das instabilidades políticas e da escassa democracia que reina no continente e o que fazemos? Temos a oportunidade -rara- de nos reunirmos, não envolta de putschistas, mas de uma causa nobre: denunciar, em uníssono, as imposições da França e (aproveitando da onda do multilateralismo em curso) de todas as amarras neocoloniais: FMI, Banco Mundial e outras organizações bilaterais e multilaterais com vocação subdesenvolvista.

Moçambique invés de estar unido no interior e focado com os países da região e do continente no objectivo comum de melhorar a vida dos nossos concidadãos, distrai-se em jogos de democraturas e de polícia ladram ( sem que se saiba quem é o polícia e quem o ladram), enquanto as multinacionais saqueiam o país e os recursos que poderiam ajudar a alavancar a economia dos eleitores trufados e sem expectativas.

Franz Fanon (na obra póstuma, Defesa da Revolução Africana) defendia que as novas consciências nacionais, regionais e continentais sairiam da luta. Foi o que tínhamos conseguido com a COINCP, com as ajudas da Algeria, Marrocos, de toda a África (do Sudão hoje esquecido)  e o que se chamava então homens e mundo progressista; que não eram só dos países do bloco comunista mas também da Itália, da Inglaterra, da Suécia e muitos outros. Na África Austral tínhamos constituído uma unidade e um foco (os países da linha da frente), com o objetivo comum de lutar contra o Apartheid. Hoje, na luta pela africanidade livre; Mali, Níger, Burkina, Guiné fazem nos mais um apelo, apenas velado, e nos oferecem uma oportunidade para criarmos novos embriões de unidade na luta. Para além do mutismo dessa coisa que se chama -quando convém, comunidade internacional-, o que faz espécie é a hipocrisia da CDAO que, vergonhosamente, alinha com a França em nome do retorno a uma ordem colonial (França-África) e impõe sanções (como Israel na Palestina ) aos povos – e aos freedom Fighter como foram a seu tempo a Frelimo, o PAIGC ou o ANC. O que choca é a ambiguidade da União Africana que parece não perceber o que está em jogo; é o silêncio cúmplice das praças Áfricas. O que estamos a espera? Que nos anunciem que um golpe de Estado ‘constitucional’ (como foram os de Bob Denard) repôs a legalidade neocolonial, que os valentes jovens que ousam a luta (como outros antes deles) foram depostos, trucidados pela razão neocolonial?

No famoso texto de R. Musil, O Homem Sem Qualidades, o protagonista, Ulrich Anders, é um homem que, apesar de ser dotado e com muitas e dispares qualidades, espera, que não sabe ou não quer agir, ou melhor não se sabe dar a ação. Ulrich é uma figura de um homem em crise que começa a duvidar da realidade, que adverte a profunda, a inatingível distancia entre a realidade circunstante que ele percebe como um universo de conveniências e de hábitos, até mentais, já obsoletos e sem fundamentos. O homem sem qualidades descreve a situação, tão africana, como uma verdadeira doença de falta de  vontade.

Ricoeur tinha razão, os franceses que abandonaram em 1945 a moeda que se lhes tinha sido imposta pelos nazistas e em 1966 o comando conjunto da OTAN em nome da soberania, mas impuseram, entre outras medidas escandalosas e anti soberanas, uma o Franco CFA inspirada nos nazis e uma presença militar aos países que se aprestavam a chegar a soberania da independência,  são culpados pelos métodos nazistas (A. Césaire / J. Vergés)  e sabem cinicamente ( Sloterdijk/ Zizek) sê-lo.  Jaspers tinha razão, os alemães e os europeus, ciosos pelo respeito das regras de direito intra muros mas negligentes ou até militantes contra a aplicação dessas mesmas regras quando se trata de África e dos africanos são, em parte, culpados dos dramas que os africanos  sucumbem, impostos pelas suas democra (intramuros) turas (extra muros). Hannah Arendt tem razão, nós as elites africanas (os judarate) somos culpados, porque agimos e nos comportamos, guebusianamente, em nome das nossas mordomias e privilégios, em conluio com os nazistas de hoje. Somos culpados porque trocamos o gás do desenvolvimento pelo gás lacrimogéneo que faz lacrimejar de medo a uns e benda os olhos de outros.

No livro Soi-même comme un autre (1990), Paul Ricoeur definiu a perspectiva ética combinando três requisitos: a preocupação de si, a preocupação dos outros e a preocupação para com a existência de instituições justas. Se a ética desvanece, o direito está perdido e pode se então justificar – como vimos no passado com a escravatura, com o colonialismo, com a Shoah, com o apartheid  ontem, e  hoje, com as prisões em céu aberto e os bombardeamentos em Gaza ou com os gases lacrimogéneos, cães, carros armas  e até morticínios em Moçambique – o  injustificável.

Alguns (ditos) amantes do mundo livre ( e da sociedade aberta)  afirmam, ao infinito, o horror que suscita neles o totalitarismo, as práticas do passado (escravatura, colonialismo) das quais até se dão a graça de pedir desculpas. Do outro lado aqueles de nós (indivíduos e/ou partidos) que fizeram da luta contra a exploração e a opressão a razão da própria existência por coerência, têm deveres morais (político -jurídicos) em relação a fraternidade e a democracia (A. Cabral), das quais não podem abdicar sem trair a própria causa e, pela mesma, corroborar com os opressores. Contudo, brincamos ao jogo da moral e ridicularizamos os velhos tabus e práticas mas, de facto, nem uns nem outros tiram as devidas  consequências práticas.

Do ocidente não podemos esperar grande coisa, desde setecentos anos a esta parte ele nunca meteu em causa  a sua postura, essencialmente, predadora e opressora.  Moçambique e a África devem escolher entre: ter água para todos e champanhe para alguns (Sankara) – assente numa realpolitik opressora e anti democrática- e uma sociedade interessada em instaurar relações humanas e  instâncias/instituições,  não episcopais, mas justas e a altura do desafio.

A disjunção que deve nortear a postura de libertação é de nunca ser nem exploradores nem carrascos do povo. “Camaradas”, se nos devemos equivocar, que seja no sentido da justiça, da tolerância e das liberdades, nunca no sentido da  opressão. Não nos é permitido ser nazistas (gases lacrimogéneos, cães, tanques…) para com o nosso povo, sobretudo quando ele se levanta contra as nossas mentiras e  incongruências. O objectivo foi e deve continuar a ser a liberdade e não o poder. Poder só tem sentido se for em prol da liberdade, senão não há diferença entre nós e os opressores, e seremos, mais do que eles, culpados pela “desgraça”  do(s) nosso(s) povo(s) sem nenhuma (des)graça episcopal  para dizer que não sabíamos…

Severino Ngoenha, Augusto Hunguana, Samuel Ngale e Giveraz do Amaral

Marcos Carvalho Lopes

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