Luís Kandjimbo |*
Escritor
Em finais da década de 60, os blocos de países socialistas e países afro-asáticos, defendiam a doutrina da excepção na interpretação do princípio dos “direitos iguais e autodeterminação dos povos”, tal como estipula o artigo 1º da Carta da ONU. Era uma doutrina que colhia apoios e tendia a ser dominante no Direito Internacional.
Contributos doutrinários
Pode dizer-se que nessa década nascia um novo Direito Internacional, sendo prova disso a consagração do direito à descolonização e do estatuto jurídico dos movimentos de libertação nacional. Por essa razão, não é excessivo afirmar que o anti-colonialismo dos povos africanos que sofriam a colonização de Portugal terá influenciado a selectividade temática e o processo de elaboração doutrinária, no quadro da ordem jurídica internacional emergente. Desenvolveu-se uma hermenêutica que explorava os sentidos do artigo 51ºdaCarta da ONU. Donde o argumento segundo o qual o colonialismo devia ser considerado como uma “agressão permanente”,justificando-se, consequentemente, o exercício do direito natural de legítima defesa dos povos colonizados. No entanto, a referida doutrina da excepção do estatuto jurídico, que favorecia a legitimação do uso da força e do recurso à guerra justa contra os regimes coloniais, por parte dos movimentos de libertação nacional, encontrava a resistência dos Estados ocidentais. É para essa doutrina da excepção que contribuía a posição de Nikita Khrushchev (1894-1971), o Primeiro Secretário-Geral do Partido Comunista e Presidente do Conselho de Ministros da União Soviética. Ao intervir na Assembleia Geral da ONU, em 1960, ele defendia o carácter sagrado da luta dos povos colonizados pela sua libertação. Por isso, considerava necessária a prestação de incondicional apoio moral e material aos povos que justamente lutavam pela sua independência. Como se pode perceber, a eclosão da guerra de libertação não foi uma mera contingência.
Eclosão da guerra
Firmava-se a doutrina da excepção, quando em 6 de Dezembro de 1960, líderes dos movimentos de libertação nacional de Angola, Cabo Verde, Goa, Guiné, Moçambique, reiterando o argumento da “agressão permanente” do colonialismo português, em conferência de imprensa conduzida por Mário Pinto de Andrade na Câmara dos Comuns, em Londres, divulgaram um texto fundamental para se compreender a argumentação política e o pensamento sistemático sobre o problema da luta pela autodeterminação. O título era por si só muito eloquente: “A Favor da Acção Directa”. Tratava-se de um documento subscrito pelos dirigentes do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde), da União Maconde de Moçambique (UMM) e da CPG (Convenção Política de Goa).Entre os seus subscritores destacavam-se Mário Pinto de Andrade(Angola,1928-1990), que vemos na imagem; Viriato da Cruz (Angola,1928-1973); Américo Boavida (Angola,1923-1968); e Aristides Pereira (Guiné/Cabo-Verde, 1923-2011).
Ora, o sentido dos conceitos jurídicos de “acção directa” e “legítima defesa” concretizou-se inicialmente em Angola, durante o primeiro trimestre de 1961. Em 4 de Janeiro, eclodiu a revolta camponesa da Baixa de Kassanji. No dia 4 de Fevereiro, tiveram lugar, na cidade de Luanda, os ataquesàs instituições representativas da repressão colonial. Em 15 de Março, desencadeou-se o levantamento insurrecional, prenúncio de uma guerra de guerrilha, em parcelas do território situadas na região do noroeste de Angola, nomeadamente, Bengo, Uíge e Zaire.
Memória pessoal e colectiva
O autor destas linhas retém na sua memória de longo prazo palavras e imagens do que ouviu e viu quatro anos depois desses eventos que assinalaram o início da Guerra de Libertação Nacional, em três territórios das colónias portuguesas, isto é, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. No seu pequeno bairro situado na margem do rio Cavaco, ouvia falar do avião de Lumumba que chegaria às terras de Benguela e via veículos patrulheiros, de marca Unimog, transportando soldados do exército português que, de dia e de noite, circulavam pelas ruas, interpelando os moradores e, por vezes, prendendo alguns. Tudo indicava que o bairro era já uma zona operacional de guerra.
Aí está uma hipótese que permite interrogar-nos acerca da memória e da história. Não se confundem. Tratando-se de uma recordação pessoal, certamente não estará isolada, na medida em que existem outras pessoas com semelhantes recordações. As recordações de cada membro desta comunidade nacional a que pertencemos formam a sua memória pessoal. Por sua vez é o conjunto deste tipo de recordações que estruturam a memória social e colectiva. Temos vindo a referir-nos à guerra justa. Mas fala-se igualmente da guerra colonial que é uma guerra injusta. A qual delas dizem respeito as recordações pessoais que relatamos? É evidente. Têm conexões com a guerra justa de libertação porque as interpretações dos marcadores do relato remetem para aí. Vejamos o modo como chegamos a essa conclusão, partindo de quatro perguntas.
Quatro perguntas
Em que medida a memória pessoal pode ser uma boa âncora para tematizar eventos históricos que constituem um cronótopo, a que na Ética da Guerra serve como marco periodológico do “jus ad bellum”?Que ideia transmite esse registo da memória, associado, aparentemente, a um lugar situado fora do perímetro geográfico dos teatros operacionais em que ocorrem os eventos que marcam o início da Guerra de Libertação Nacional? A alusão a Lumumba tem alguma relevância do ponto de vista explicativo? Será insignificante a referência a um veículo militar de marca “Unimog”?
Em primeiro lugar, os eventos que assinalaram o início da luta armada e a necessária obediência moral às regras da guerra, o “jus in bellum”, foram desencadeados no primeiro trimestre de 1961. Por isso, a âncora lançada com um fragmento da memória social, relativamente ao início da guerra, corresponde a um conhecimento histórico decantado na memória individual e na memória colectiva dos povos, comunidades políticas existentes nos territórios das colónias portuguesas, que hoje são Estados independentes. Daí a relação que a memória mantém com o passado e o presente vivido. Deste modo, o conceito de conhecimento histórico, enquanto construção dos historiadores, não pode prescindir da importância e do valor que têm outras narrativas. Para o caso da história anti-colonial, estou a referir-me àquelas narrativas escritas que, apesar de pretenderem alcançar fins políticos, não são as únicas.
Em segundo lugar, as repercussões da violência organizada verificaram-se em territórios do chamado “ultramar português”, não podendo suscitar qualquer tipo de apropriação de cunho nacionalista. O triplo acontecimento que marca o início da guerra justa foi um verdadeiro cataclismo político que colheu a simpatia da comunidade internacional e que traduzia a efectivação da legítima defesa, por parte de todos os movimentos de libertação nacional que formavam a CONCP.
Em terceiro lugar, o uso do antropónimo Lumumba, unidade lexemática de uma língua bantu, afasta a tentação de apagar as representações colectivas dos fenómenos políticos. Neste caso, trata-se da consciência colectiva sobre o significado da independência do chamado Congo Belga.
Em quarto lugar, a referência a um veículo militar de marca “Unimog” sustenta a explicação do sentido que se pode atribuir ao mencionado cataclismo político, na medida em que aí está uma referência ao tipo de equipamento militar usado pelos exércitos da OTAN, o pacto de segurança colectiva do Ocidente a que pertencia Portugal. Era uma prova de assistência militar da República Federal da Alemanha que, neste caso particular, violava a obrigação de aplicar as recomendações da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Colonizados de 1960.
Crítica da historiografia
As respostas fornecidas auxiliam a nossa reflexão, se reconhecermos os desafios que a complexidade da Filosofia Anti-Colonial nos PALOP nos coloca. Tal complexidade reside no facto de estarmos perante o cruzamento de uma filosofia eminentemente política e de seus fundamentos históricos, exigindo-se o estabelecimento das devidas diferenças entre a Historiografia Anti-Coloniale a Filosofia da História Anti-Colonial. Vai-se revelando necessária essa divisão das águas, devido a equívocos conceptuais que se registam, no capítulo da narratividade histórica e da historiografia. Por outras palavras, diria que é imperioso fugir aos preconceitos do historicismo, segundo os quais os fenómenos políticos anti-coloniais podem apenas ser conhecidos através da narrativa histórica. Não é rigorosamente assim. Há outras formas de conhecimento histórico. A memória e as tradições orais, nas suas diferentes manifestações, são algumas delas. Importa sublinhar que a história em causa diz respeito à sociedade anti-colonial, que não é necessariamente o mesmo que sociedade colonial portuguesa. Por isso, devemos falar em guerra de libertação. O que é diferente de guerra colonial. À história e historiografia da guerra colonial, que se vem desenvolvendo em Portugal, opõe-se uma história e historiografia da guerra anti-colonial em África. Por conseguinte, o historicismo, do ponto de vista conceptual, parece ser um preconceito tentador que pode afectar a robustez das narrativas que veiculam o conhecimento da história. Para o tópico da nossa conversa, justifica-se a defesa de uma interpretação crítica da narrativa, da história e da historiografia anti-colonial.
Narratividade histórica e debates
A historiografia distingue-se da história. São dois conceitos distintos. Por um lado, temos a história de que se ocupam os historiadores, construindo narrativas. Por outro lado, a historiografia representa a actividade intelectual que consiste em descrever e interpretar a construção narrativa de factos históricos. Compreende-se assim que o tópico da nossa conversa seja a filosofia da interpretação historiográfica e da narratividade histórica, vinculada à Ética da Guerra e à Filosofia Anti-Colonial.
No contexto africano, o debate sobre estas matérias ganhou outros contornos após o lançamento do primeiro projecto de redacção da História Geral de África da UNESCO, em 1964, de que resultaram oito volumes. Com a constituição do novo Comité Científico Internacional da UNESCO, de que fui membro, o referido debate foi retomado, a partir de 2013, durante o processo de redacção de três novos volumes (IX, X e XI).
Ora, os debates continuaram. Tenho vindo a acompanhar os seus desenvolvimentos no domínio da Filosofia da Historiografia e da Filosofia da História. Há dois filósofos que se evidenciam nos meios académicos ocidentais e com os quais vale a pena dialogar. São eles o norte-americano Aviezer Tuckere o finlandês Jouni-Matti Kuukkanen. Eles discutem problemas que dizem respeito à Filosofia da Historiografia e à Filosofia da História. A historiografia é entendida como escrita da história, a filosofia da historiografia como estudo filosófico da escrita da história e a filosofia narrativista da historiografia como estudo filosófico da escrita da história a partir de uma perspectiva narrativa.
Filosofia pós-narrativista
Os referidos debates nos meios académicos ocidentais situam-se ao nível terminológico, opondo as tradições filosóficas “analíticas” e “continentais”. Para o estudo da Filosofia Anti-Colonial nos PALOP, interessam-me particularmente as posições de Jouni-Matti Kuukkanen que se resumem naquilo a que ele denomina por “filosofia pós-narrativista da historiografia”.Abandonando a tradicional perspectiva narrativista, dominante no século XX, em que a historiografia é classificada como tipo de forma literária, Kuukkanen propõe a tese segundo a qual a historiografia deve ser concebida como prática argumentativa. Pode ser fecundo discutir a filosofia pós-narrativista da historio grafia num contexto em que, podendo ser actividade argumentativa oral, a classificação da narrativa não depende da lógica grafocêntrica da textualidade, na medida em que a memória, histórica, social ou pessoal, anda incindivelmente associada às tradições orais enquanto fontes históricas.
*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia
p.s: publicado originalmente em 26/02/2023 no Jornal de Angola