Desde o início, a filosofia mostra uma característica: a de ser a prática e a efetivação de uma dissidência intelectual
Gonçalo Armijos Palácios
O contexto dos últimos artigos é o diálogo que estabeleço com meus estudantes sobre a origem e a natureza da filosofia. Alunas e alunos levantam questões que provocam estimulantes discussões e me permitem ir formando aos poucos uma imagem cada vez mais exata do que foi a filosofia desde suas origens.
Uma interessante pergunta, feita por uma aluna, era a de se eles iriam estudar, também, filosofia oriental. A pergunta é extremamente pertinente porque permite um esclarecimento fundamental. No Brasil, por exemplo, há uma influência incomparavelmente maior das variadas culturas africanas do que toda a influência que eventualmente poderia ter sido recebida da China, do Japão ou de algum povo asiático. O fato é que há uma enorme diferença entre a influência que as culturas orientais tiveram sobre o Ocidente e a que recebemos dos gregos clássicos. De alguma maneira, nós, ocidentais, fomos feitos à imagem e semelhança deles, dos gregos, e não dos povos orientais. Recebemos seus valores, sua cultura, sua visão do mundo e da vida e tudo isso se mostra da maneira mais variada. Não é uma influência que tivemos no passado e ficou no passado. Nós falamos, pensamos e nos comportamos, ainda, em algum sentido muito importante, seguindo padrões gregos. Para ver como fomos influenciados a pensar e dizer as coisas como os gregos, basta olhar o nosso vocabulário e ver quantas palavras (e, portanto, valores), herdamos deles. Repito, não é só pela quantidade de palavras que herdamos, é pela bagagem de valores e formas de ver o mundo que recebemos e nunca abandonamos. Uma dessas formas de ver o mundo consiste na nossa tendência a racionalizar as coisas e exigir explicações lógicas — o que fazemos desde que somos crianças. Isso, não podemos negar, devemos em muito aos gregos.
As primeiras explicações que encontramos nos primeiros filósofos (sobre o princípio e a origem de todas as coisas) se caracterizam por serem fundamentalmente racionais. Os considerados primeiros filósofos (Tales, Anaximandro e Anaxímenes), entretanto, não foram os primeiros a querer explicar as coisas. A mitologia grega é rica em explicações de toda sorte. A diferença está em que a explicação mitológica não é nem pretende ser puramente racional. Ela apela continuamente ao irracional e não exige de si mesma explicações coerentes — o que seria impossível para um conjunto de lendas, estórias e explicações que foram fruto de tradições, constituídas ao longo do tempo e elaboradas por inúmeras pessoas. O filósofo, pelo contrário, é uma pessoa, apenas, e responsável pela consistência do que diz e pela veracidade do que propõe. No filósofo, poderíamos dizer, o aspecto irracional é reduzido ao mínimo. Aqueles que criam e difundem mitos não têm essa responsabilidade nem esse interesse. Importa que os mitos sejam convincentes, não fundamentados logicamente. Nos mitos, as coisas ocorrem graças à ação de pessoas, animais e objetos dotados de propriedades únicas, especiais, sobrenaturais. Na filosofia, o pensador recorre a princípios com os quais se procura submeter o inexplicável. É parte do mito, pelo contrário, que o racional seja subjugado pelo sobrenatural e que se aceite o inexplicável como parte da explicação. O irracional, de algum modo, não é mais do que uma outra forma de racionalidade que não obedece nem se reduz aos parâmetros lógicos clássicos.
Membros de uma cultura que desejava entender e explicar as coisas o mais satisfatoriamente possível, os primeiros filósofos, influenciados pelas explicações mitológicas mas insatisfeitos com elas, esforçaram-se por depurar tais explicações de todos os seus elementos irracionais.
Vemos, então, uma ruptura dentro de um tipo de continuidade. É a continuidade de uma tradição explicativa depurada de seus elementos irracionais. Essa ruptura, porém, deve ser bem entendida. Não implica no abandono súbito da explicação mitológica e sua imediata substituição pela filosófica. Estamos frente à coexistência (que não foi pacífica) de uma cultura mitológica, de um lado, e das propostas individuais de contestadores, de outro. Num sentido importante, a filosofia é uma espécie de contestação cultural provocada por livre-pensadores que se negam a aceitar o que a tradição lhes impõe.
Esta contestação deve ser entendida, também, como sendo de natureza política. Não é por acaso que os filósofos, já desde aqueles tempos, foram perseguidos, processados, condenados, executados ou banidos. Em épocas mais propícias, no entanto, eles floresceram e suas teorias conviveram com as explicações mitológicas de suas culturas — como hoje convivem, por exemplo, o Livro do Gênese e a Teoria da Evolução. Assim, a linguagem simbólica do mito convivia, não sem sobressaltos, com a linguagem lógica da filosofia.
De qualquer forma, o longo processo que levou à consolidação da tradição filosófica na antiga Grécia, não foi simples. Como dizem Kirk, Raven e Schofield,no seu excelente e clássico The Presocratic Philosophers: “a transição dos mitos à filosofia… é muito mais radical que aquela envolvida num simples processo de de-personificação ou de de-mitologização… Ao contrário, ela compreende e é o produto de uma mudança que é política, social e religiosa mais do que meramente intelectual…”. 1
Os filósofos gregos se opuseram a uma tradição da qual eles faziam parte — cultura que também tinha recebido influências de outras culturas, como a egípcia, a babilônica e a fenícia. Mas em nenhuma dessas culturas surgiu, como na grega, uma atitude de contestação racional que conseguiu, ao longo de vários séculos, constituir uma nova tradição que caracterizaria a atitude filosófica: a tradição da cultura crítica, do livre debate e da dissidência intelectual.
1 Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 73.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |