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PARA QUE FILOSOFIA X: A filosofia e seus inesgotáveis objetos

Gonçalo Armijos Palácios

Filosofia, curiosamente, é o que pode ser pensado fora, dentro, antes e depois das ciências

Henri Poincaré


No artigo da semana passada discuti a crítica de Bochenski à concepção atribuída a Bertrand Russell, e aos filósofos “positivistas”, segundo a qual a filosofia seria “um conceito coletivo para tudo o que ainda não pôde ser pesquisado e investigado cientificamente”. (J. M. Bochenski, Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1977, p. 22). Bochenski discorda dessa concepção porque a interpreta como sustentando que a filosofia seria, de algum modo, um estudo pré-científico. Nesse sentido, um estudo inferior. Se fosse isso o que a concepção atribuída a Russell defendesse, claro, seria uma posição insustentável. Pois o próprio Bochenski dá um argumento contrário contundente. O que nós vemos, afirma, é que a própria ciência abre campos para a pesquisa filosófica. Com efeito, quando numa determinada ciência chegamos aos limites de suas possibilidades, o que resta fazer — e de fato é feito — é pensar sobre os próprios limites e possibilidades dessa ciência específica. Assim é que nascem a filosofia da matemática, a filosofia da física, a filosofia da biologia e a filosofia das ciências em geral. Mas isso não ocorre unicamente no campo das ciências naturais. Também ocorre, por exemplo, no pensamento sobre a natureza e essência da lei, na filosofia do direito, e nas reflexões sobre o belo, na filosofia da arte.

Há, realmente, a idéia errônea de que o avanço das ciências, com o respectivo aparecimento de novos campos científicos, é acompanhado por um correspondente definhar da filosofia. Assim, o desenvolvimento — e a consolidação — das ciências viria acompanhado do ocaso da filosofia. O que concretamente vemos, no entanto, é o oposto. Por quê? Porque o próprio avanço científico chega a limites que os conhecimentos adquiridos nas ciências não conseguem ultrapassar. Não se ultrapassa as fronteiras do desconhecido com o já conhecido, pois isso implicaria num retorno ao terreno conhecido. Ultrapassa-se o desconhecido com hipóteses e reflexões, muitas vezes, altamente improváveis e a maioria das vezes ousadas e aparentemente inadmissíveis. Em alguns casos, quebram-se as barreiras da chamada ciência normal com teorias às que poucos, ou ninguém, estariam inclinados a dar crédito. Ou, então, com teorias que muitos as rejeitariam como “meramente” filosóficas ou, ainda, “metafísicas”.

Os grandes cientistas não só tiveram profundo conhecimento filosófico e leram filosofia, como foram influenciados por filósofos. O próprio Einstein reconhece a influência que vários filósofos tiveram na elaboração de suas teorias. Com efeito, cita a influência dos filósofos David Hume, Berkeley e Kant.

Temos o caso de outro grande físico e matemático, o francês Henri Poincaré, que escreveu, não um nem dois, mas quatro textos em que reflete filosoficamente sobre a ciência: Ciência e método, Ciência e hipótese, O valor da Ciência, Últimos pensamentos. Dificilmente um grande cientista não tem algo com que contribuir, para a própria ciência, com reflexões filosóficas. A reflexão sobre a física, não resulta em ciência física, a reflexão sobre a matemática não fornece necessariamente teoremas matemáticos. No primeiro caso temos filosofia da física e, no segundo, filosofia das matemáticas.

Que podemos concluir disso tudo. Que não encontramos a filosofia unicamente antes do aparecimento da ciência. Ela coexiste com a ciência fora dela, refletindo sobre assuntos não científicos, assuntos que à ciência não interessam nem poderiam interessar. Mas aparece dentro da própria ciência, quando a ciência não consegue avançar com seus próprios métodos ou com ajuda de seus resultados conhecidos. Portanto, não somente na base da ciência temos a filosofia, como no limiar dela. Assim, não encontramos a filosofia unicamente no campo das questões sobre as quais a ciência não se ocupa, mas dentro da própria ciência, quando ela mesma não consegue, com seus próprios métodos e resultados, avançar, resolver novos problemas ou solucionar enigmas.

As pessoas não conseguem entender o que é a filosofia porque perseguem quimeras. Ou seja, pensam que há objetos privilegiados, ou exclusivamente filosóficos. Acostumadas, como estão, a identificar os números e as figuras como objetos matemáticos, os corpos como objetos da física ou os seres vivos como o objeto da biologia, querem um campo restrito de objetos que deveria ser clara e propriamente filosóficos. Mas não existe esse campo restrito de objetos filosóficos como no caso da matemática, da física e da biologia. Porque tudo é passível de reflexão filosófica, incluída a própria ciência. Houve filosofia antes da existência das ciências naturais, há filosofia fora delas, mas, também, e curiosamente, dentro delas e depois delas, isto é, quando elas não conseguem mais explicar com seus próprios métodos e conceitos. É nesse sentido que a filosofia é universal, e seguirá o sendo.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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