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Bibliotecas em conflito

A biblioteca africana de lutas por liberdade é, mais do que nunca, necessária

ensaio de Severino Ngoenha, Carlos Carvalho e Filomeno Lopes

Não é em referência às guerras barrocas e metafísicas nos mosteiros medievais de O Nome da Rosa (Umberto Eco);  também não se trata de um conflito entre a galáxia Gutemberg e a oralidade (Amadou Hampate Ba) nem entre as bibliotecas virtuais – sempre em ascendência – e as bibliotecas tradicionais ou do paradigmático choque e perplexidade de Marsílio Ficino quando, intimado por Cosimo a abandonar as traduções de Platão a favor de Hermes Trismegisto, que o dignitário florentino considerava muito mais importante; de facto não se trata de nenhum conflito hermenêutico  ou filológico de interpretações (Paul Ricouer), mas de uma  batalha existencial, multissecular, de sangue,  que se desenrola em África e via corpos dos africanos.

A Invenção de África – título de livro publicado por Valentim Mudimbe em 1988, precedido pela Idea Of África – foi um sucesso editorial e teve muito eco em vários âmbitos das ciências humanas e sociais, nomeadamente na filosofia, antropologia, estudos pós coloniais (…).  O livro foi comparado, em termos de impacto  ao Orientalismo de Eduard Said ou ainda à Black Athena de Martin Bernal.

Mundimbe mobiliza o pensamento de Michel Foucault – nomeadamente o conceito de episteme – para elaborar uma arqueologia das representações de África e demonstrar como o conteúdo do significado África foi construído pelo conjunto dos discursos coloniais produzidos por missionários, etnólogos, filósofos… Estes discursos formam uma parte do corpus do que ele chama a biblioteca colonial, que é a história das representações históricas do ocidente sobre a África e a sua retomada por etnófilos africanos: gradualistas na política, negritudistas na literatura e etno-filósofos na filosofia.

Se a desconstrução crítica do filósofo congolês tivesse tomado por empréstimo a perspectiva de um outro grande pós-modernista francês (Jacques Derrida, sobretudo a Gramatologia da Diferença), teria podido mostrar que existe, em oposição à biblioteca colonial, uma biblioteca e uma gnose (saberes não impostos pelo sistema colonial) Africana multimídia;  primeiro, escondida,  aquilo a que James Scott chama Infra-política dos subalternos; uma rica discografia (espirituais, Gospel, Jazz, Blues, Reggae, Samba) e finalmente, sobretudo com Alioune Diop uma Presença Africana (nome da editora fundada pelo senegalês na Paris dos anos  50 e acompanha todo o movimento da negritude e das independências )  ao mundo, feita de poesia, literatura, filosofia (…). Porém, a biblioteca Africana ganhou os seus títulos de nobreza com as obras de Zumbi nos Palmares do Brasil, Garvey nos planaltos da Jamaica, Toussaint Louverture na ilha de  Haiti, Blyden nas encostas da Libéria, Du Bois em Harlem nos EUA. Depois do quinto congresso pan-africano de 1945, Nkrumah tentou inscrever a gnosis africana numa nova geopolítica pensada a partir do interesse dos africanos, Mamadou Touré e Mamadou Dia  (e mais tarde Samir Amin) tentaram dar-lhe uma dimensão económica; o todo cimentado por uma cultura africana, não de contraposição senghoriana de emoção versus razão,  não só da descoberta de um substracto cultural africano comum (Cheik Anta Diop), mas de uma consciência a infieri, amadurecida fanonamente da luta e orientada para o futuro ((Wole Soyinka); o que  Leonora Miano chama Afropea e Feliwine Sarr  Afrotopia.

Para além disso, a genealogia de Mudimbe poderia ter demonstrado que existe uma gramatologia da diferença representada pelos países lusófonos – vítimas de um colonialismo que Spivak não evitaria em colocar entre os subalternos – cuja diferença específica não reside, como comumente se pensa, em terem arrebatado a independência com sangue, mas em terem produzido um pensamento sui generis de maneira autónoma e terem se organizado, para além das fronteiras delimitadas pela biblioteca colonial. Enquanto Portugal, a seguir ao ultimato inglês de 1890, abandonou em debandada as suas veleidades do mapa cor de rosa,  com a CONCP (criada em 1961, antes da fundação da Frelimo e dirigida por Marcelino dos Santos) os cinco, com uma audácia inédita e para além das lutas dos bibliotecários coloniais e da geografia, uniram esforços numa unidade na determinação, no pensamento e numa organização articulada e multi facetada que acabou obrigando Portugal (e quem por detrás dele) a claudicar e depois a ceder. A CONCP não foi, in primis, uma conjugação de estratégias militares, mas de objectivos. De uma maneira fanoniana, consolidou no processo de luta um pensamento próprio (Arma da Teoria), pragmático (Mondlane), não necessariamente alinhado nem com as filosofias e/ou ideologias então dominantes mas fixando-se objetivos claros que Cabral resumiu em: liberdade, progresso e felicidade dos povos.

Por sua vez, o respeitável  Moçambique de outros tempos, engajou-se (a custo de negociar com a ultra liberal Margaret Thatcher)  pela liberdade do Zimbábue e (de enormes sacrifícios) para a mudança de regime na África do Sul; denunciou  monarquias africanos tentados (como os kagamés de hoje) pelo colonialismo e militou pela criação da SADCC (antes da SADC), onde se dava primazia à unidade política da região.

A biblioteca africana pós-Alexandria, pós-hieróglifos, pós-Tombouctu nasceu e se desenvolve em  antítese ao status quo imposto desde há cinco séculos pela razão colonial; ela diz não (pensar é dizer Não, título de uma obra maior de Derrida) à biblioteca colonial sem nunca sucumbir a uma simples busca geográfica ou identitária. A biblioteca africana não é uma raça, sangue ou religião mas um ideal – como mostra a revolução haitiana, a mais sublime personificação da liberdade (e da lei) jamais realizada, nem mesmo pelas revoluções liberais holandesa, inglesa, americana ou francesa.

Mutatis mutandis, a biblioteca colonial nunca se rendeu (nunca se deu por vencida), nunca parou de contra-atacar, de reinventar e tentar domesticar a África e os africanos: Napoleão mandou a sua armada para repor a escravatura – e ainda hoje Haiti paga os juros económicos e políticos da sua vontade de liberdade – ; desde a décima quinta emenda da constituição Americana de 1865 que o KKK impediu os afro-americanos de exercer os seus direitos cívicos;  desde De Gaule que as cláusulas  da França-África impedem as antigas colónias francesas de transitar das independências para as liberdades. Para impedir os  ideias da gnose africana de vingar, os bibliotecários da razão colonial derrubaram Nkrumah, mataram Lumumba, Mondlane, Cabral, Machel, Sankara, Gadafhi (…).

Hoje está em curso, diante dos nossos olhos, a restruturação do espaço e mundo e com ela a reconfiguração do espaço colonial: EUA, UE, Rússia, China disputam-se recursos e espaços de influência em África. A biblioteca colonial continua a escrever novas páginas em línguas (e linguagens)  sempre mais pluriformes; ao inglês (britânico e americano), francês, português vieram se juntar o chinês, o russo, o Globis (UE, Japão, Brasil, Índia…). Esta nova biblioteca  antagónica e em conflito, transforma de novo a África (depois da corrida do fim do século XIX e da guerra fria) em campo de batalha e, como os Romanos em Alexandria, a queimar as nossas bibliotecas e como  Champollion a falsificar os nossos hieróglifos .

A  diferença específica do espaço da língua portuguesa é hoje um oximoro paradoxal. Ele foi o primeiro a se pensar de maneira autónoma, a se engajar com todos os meios para atingir os fins de liberdade que se propôs e pré-definiu. Agora que, finalmente, países como o Mali, o Burkina, a Guiné, o Níger se puseram a denunciar os efeitos do Tratado France-Afrique e o Kenia a denunciar a presença militar britânica (Batuk), um colonialismo de um novo tipo se instala em Moçambique (FMI, BM, mas também agências e países no Ministérios, na Defesa, na Procuradoria da República até no Banco de Moçambique) com o beneplácito das elites político/económicas (e filhos de heróis) que, ao invés de prosseguirem a luta, se instalam nos conselhos de administração dos bancos, empresas totais e outros fazedores do colonialismo em acto.

A biblioteca colonial continua a escrever as suas páginas, enquanto – como em Alexandria – a nossa biblioteca continua em fogo, alimentado por pirómanos disfarçados em bombeiros. Como a inquisição nos seus tempos áureos, os nossos fantoches de líderes castigam os langas, colocam em índex as principais realizações do Lutar por Moçambique; com um anacrónico revisionismo histórico desclassificam as páginas áureas  da nossa história escritas e pintadas com pinceis de sangue de heróis conhecidos e desconhecidos; com um anti alfarrabismo – digno dos melhores intelectualoides – confundem o antigo com o  velho e como ardinas, mercantes de novidades e do sensacionalismo, negam fazer contas com a história; golpes traiçoeiros e cobardes desferidos contra Toussaints Louvertures, mobutus usados para matar Lumumbas (heróis) e depois abandonados, bokassas içados a imperadores e depois ridicularizados…

Pedro Pires (antigo presidente de Cabo Verde) numa conferência aos jovens lamentava-se com amargura: vocês podem criticar a nossa geração mas nós lutámos com abnegação pela independência e vo-la entregámos de bandeja: o que é que vocês fizeram com ela?

Apesar da força e das artimanhas para neutralizar a gnosis africana – com cooptações, golpes de estado e até assassinatos – conquistámos as independências quando éramos muito mais fracos do que hoje. O que tínhamos então era a determinação  que hoje substituímos com cobardia de quem se deixou comprar (o poder do dinheiro já denunciado por Cabral e Machel) e abdicou a luta. Pari passu, as novas gerações de políticos e líderes (dos partidos no poder, das oposições e até mesmo da sociedade civil) ignoram a história, não têm nenhum compromisso com o ‘hoje’ do povo e nenhuma visão do futuro.

Os jovens – com aquilo no lugar e decididos a escrever as suas páginas na biblioteca Africana – têm pela frente  uma disjunção monocórdica: lutar  ou lutar, resistir ou resistir. A  biblioteca de Babel do escritor Jorge Luis Borges acende um xipepho no fundo do tunel: o mundo e a realidade são  apresentados como um grande livro, aberto  a todas as possibilidades de interpretação. O Espectro de Marx (Derrida continua a desafiar (filósofos e jovens) a não se contentarem (como fazem os filósofos eunucos ) com a simples interpretação do mundo mas ousar  (audi)  a luta  pela sua transformação, através da suspensão de evidências instituídas e a invenção de novas formas de acção.

Veritas Philia temporis (A Verdade é Filha do Tempo).

Marcos Carvalho Lopes

2 Comentários

  1. O texto muito interessante. Ainda temos um longo caminho para uma África, seus habitantes e descentes sejam de facto donos donos de si, da sua terra e veleidades. Doi saber que a independência que foi conquistada com muito suor e sacrifico nao passou de um episódio que deu lugar a uma colonização lite. Acredito que nem Mondlane, nem Cabral ou Nkrumah serao capazes, se nos encontrar nos futuro, de nos perdoar. Deixamos morrer Kadaffi, rimos do Robert Mugabe, nao conseguimos seguer percorrer os caminhos de Mandela. Os velhos donos do Mundo (EU, Russia e UE) voltaram a África e com mais um parceiro a China, alias nunca dela sairam, em busca dos mesmos recursos que procuraran no passado e degladiam-se aos nossos olhos, alimentam conflitos internos, nem um filosofo ousa ir a rua, há que desdomesticar os filosofos….

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