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A filosofia entre o jargão e o refrão

Neste breve texto, publicado em Outubro de 2012 na Revista Conhecimento Prático Filosofia (editada por Daniel Rodrigues Aurélio), falo sobre minha experiência como professor de filosofia no Ensino Médio e a necessidade de recontextualizar o discurso para conversar com mais pessoas. Em 2012 (Mercado de Letras) lancei meu primeiro livro, Canção Estética e Política: ensaios legionários, em que tento mostrar como a Legião Urbana traduziu seu tempo em canção.

Marcos Carvalho Lopes*

O filósofo norte-americano Richard Rorty (1930-2007) acreditava que livros de filosofia, obras literárias, obras de arte (torsos arcaicos de Apolo, telas de Vermeer), os concertos de rock (cita Greatful Dead) etc. tem uma função equivalente: ocasionalmente inspiram pessoas a mudarem suas vidas, algumas vezes sugerindo como poderiam fazer isso. Ora, se é assim, não deveríamos nos dedicar ao ensino de algo que não tenha transformado nossas vidas ou que não tenha potencial para mudar a vida de nossos alunos. Para Rorty o principal trabalho do educador não estaria em fazer com que seus alunos se aproximem e se submetam a uma “verdade” inumana, mas em tentar multiplicar as oportunidades para que eles sejam arrebatados, que se apaixonem por aquilo que estudam, o que os faria crescer, ampliar seus horizontes de identificação.

Essa descrição torna a atividade educativa algo não-teorizável, já que depende de que professores e alunos se coloquem “em jogo”. O que não é uma tarefa fácil, quando o que na maioria das vezes aprendemos nas universidades é imitar o jargão de alguns pensadores mortos, não com aplicação, mas com desprezo em relação ao cotidiano. Está é uma postura que mantém o platonismo e sua estratégia de separar a Filosofia do restante da cultura, também pedindo que o filósofo mantenha um tom de voz arrogante, como se sua modulação particular tivesse a força de valer como universal. O professor que chega numa sala do ensino médio pressupondo a aceitação de sua “autoridade” ou daquele filósofo que “representa”, corre o risco de não somente soar “arrogante”, mas de reivindicar uma herança de moedas gastas que nunca entraram ou já saíram de circulação.  

A tarefa no ensino médio não é criar teorias, mas trazer a Filosofia como um patrimônio comum, algo que pode ser útil para que os estudantes entendam o mundo em que vivem.  Atualmente – ao menos a partir da década de sessenta do século XX – são os produtos da cultura de massa que prioritariamente moldam a identidade dos jovens, brilhando em gadgets eletrônicos, camisetas, canções, quadrinhos, filmes, séries, jogos etc., não podemos simplesmente ignorar este contexto, retomando o tempo em que certos livros sagrados eram a fonte privilegiada para a formação cultural.

Quando me tornei professor do ensino médio, escolhi – por exemplo – canções do rock nacional, da Legião Urbana, como caminho para começar a falar sobre Filosofia com meus alunos (o que resultou em meu livro “Canção, estética e política: ensaios legionários” (Mercado de Letras, 2012)). Desde o princípio o rock tem algo de autocriação romântica, de um individualismo existencialista (que repercute em reivindicações de autenticidade) que caminhou junto com a invenção da juventude. No Brasil o rock dos anos 80 se contaminou do anseio da MPB de retratar o país, traduzir o seu tempo em canção. Em parte, o contínuo fascínio de suas canções se deriva da tentativa de pensar seu contexto, muitas vezes utilizando referências filosóficas. O líder da Legião Urbana, Renato Manfredini Jr., para criar seu nome artístico “Russo” sintetizou o sobrenome dos filósofos Jean-Jacques Rousseau, Bertrand Russel, o pintor Henry Rousseau e a expressão “tá russo”. Mas a filosofia aparece na obra da Legião Urbana não somente como uma citação: não é João do Santo Cristo, o herói de Faroeste Caboclo uma espécie de “bom selvagem”, um índio entre aspas (como na canção “Índios”) corrompido pela sociedade atual? Não é um tema constante das letras da Legião a dificuldade de comunicação que vem junto com o avanço da tecnologia, o avanço da indústria cultural antropofagicamente consumida pela geração coca-cola? Não podemos ver o ser-para-a-morte e o impessoal de Heidegger acenando na letra de Tempo Perdido? Não é que uma aula de filosofia pode mesmo ser – como sugeria de modo provocativo Gilles Deleuze – algo parecido com um show de rock?

Publicado originalmente em:

CARVALHO LOPES, Marcos . Entre o jargão e o refrão. Conhecimento Prático Filosofia , v. 1, p. 2012-66, 2012.


*Marcos Carvalho Lopes é professor na UNIRIO, doutorando em Filosofia no PPGF/UFRJ e bolsista da CAPES. Autor do livro Canção, estética e política: ensaios legionários (Mercado de Letras, 2012).

Marcos Carvalho Lopes

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