Sócrates foi condenado a morte por razões semelhantes às que levaram milhares a morrer sob o poder da Santa Inquisição e das ditaduras latino-americanas recentes. É bom não esquecer para que a história não teime em se repetir
Gonçalo Armijos Palácios
Como vimos na semana passada, Sócrates, aguardando seu julgamento, encontra Eutífron, quem se dizia adivinho e estava naquele lugar, não para ser processado, como Sócrates, mas para processar. Da leitura de diálogos como este, o leitor pode ter uma idéia tanto da maiêutica socrática, como das pessoas que o filósofo desmascarava em público.
Questionado por Sócrates sobre quem ele acusa, Eutífron começa fazendo mistério: “A quem, realmente, parece loucura que eu venha a acusar.” Sócrates responde: “O quê? Acaso persegues algo impossível?” Eutífron diz que se trata de “um velho de muita idade”. “Quem é?” insiste Sócrates. “Meu pai” é a resposta de Eutífron! Surpreso, Sócrates pergunta: “Qual seu delito, qual a acusação?” “De homicídio, Sócrates”! Nas práticas judiciais de muitos países de hoje, como de antigamente, nem sequer podemos ser obrigados a depor contra pai, mãe ou cônjuge, não digamos processá-los. A não ser, claro, que as vítimas também sejam parentes. Não sendo esse o caso, e imaginando que estamos num país em que exista a pena de morte, o filho não pode ser obrigado a carregar na consciência um depoimento que termine na execução do pai. Compartilhando os antigos gregos esses princípios, não é de nos surpreender que, chocado, Sócrates reaja exclamando: “Por Heracles! Eutífron, a multidão desconhece o correto! Creio que agir corretamente neste caso não é coisa para qualquer um, mas para homem de muita sabedoria”. Evidentemente, se é correto processar o pai, então todos estamos enganados e Eutífron certo. Mas Eutífron não percebe a ironia e se acha um sábio, pois responde imediatamente: “Por Zeus, Sócrates, que com efeito a demonstra”. Esta demonstração de “sabedoria”, com o poder da maiêutica socrática, converte-se, no decorrer do diálogo, e por própria confissão de Eutífron, em confusão de idéias e admissão de ignorância.
Eutífron estaria agindo corretamente sob a única condição de o pai de Eutífron ter matado algum parente próximo. E é isso que Sócrates pergunta: “E claro está que a vítima de teu pai é um de teus parentes, não é isso? Uma vez que não acusarias teu pai de homicídio para defender um estranho”. A suposição de Sócrates, baseada em critérios éticos compartilhados pelos antigos gregos e por nós, Eutífron considera absurda. E acha ridículo que Sócrates acredite “que se deva estabelecer uma distinção entre estranho o parente relativamente à vítima”. Eutífron vai achar amparo para sua ação na própria religião grega, mas explica antes os fatos que envolveram seu pai. Conta que “a vítima era um serviçal que trabalhava para mim… Dominado certa feita pela embriaguez se irritou contra um de nossos servidores e o degolou. Meu pai então mandou que fossem atados seus pés e suas mãos e, depois de tê-lo atirado a um fosso, envia até aqui um homem para perguntar… o que devia fazer. Entrementes, esquece do prisioneiro, abandona-o como um homicida e torna-se indiferente à sua morte, que realmente veio a acontecer”. Supondo que tenha ocorrido tudo desse modo, diríamos hoje que o pai é responsável pela morte do empregado e que poderia e deveria ser processado por homicídio culposo, não como homicídio doloso, como Eutífron quer. Pelo que conta, não podemos considerar o pai um assassino, isto é, alguém que tenha premeditado a morte do empregado, alguém que tenha agido consciente e voluntariamente para matá-lo. Isso é justamente o que revolta os familiares de Eutífron, inconformados com o processo. Segundo ele mesmo diz: “É claro que tanto meus pais como os parentes mostram-se indignados pelo fato de que eu acione judicialmente a meu pai em nome desse homicida, pois dizem que ele não o matou…”. O pai pode, como eu disse, ser responsabilizado pela morte daquele homem, mas também fica claro que ele não o matou.
Interessa aqui lembrar duas coisas, a acusação contra Sócrates e o tipo de crenças religiosas que os gregos da época tinham. Sócrates, recorde-se, estava aguardando ser julgado sob a acusação de irreligiosidade. Especificamente, a acusação foi esta: “não reconhecer os deuses que o Estado reconhece… e, também, …de corromper a juventude”. O fato é que as crenças religiosas da época, como podemos hoje entender muito bem, provocaram a reação de mais de um filósofo. Os deuses gregos faziam tudo o que os homens faziam e eram tão corruptos como nós. Antes de Sócrates, Xenófanes já se queixava, como disse num artigo anterior, de que “tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo. Tudo o que entre os homens merece censura e repulsa: roubo, adultério e fraude mútua”!
Platão, na República, escreve longas passagens contra Homero e Hesíodo precisamente por terem popularizado uma imagem dos deuses contrária ao que eles, sendo deuses, poderiam ser. Chega, por isso, a expulsar os poetas da sua república e, concretamente, expulsa Homero. Qualquer pessoa sensata, hoje como então, reagiria se ouvisse histórias segundo as quais os deuses mentem, roubam e cometem atos piores, como matar, devorar seus próprios filhos etc. Por ter mostrado o absurdo de tais crenças, Sócrates foi processado, condenado e morto. Mas são justamente essas crenças que fundamentam a ação de Eutífron contra seu pai, como ele mesmo diz: “… os mesmos homens que acreditam que Zeus é o melhor e o mais justo dos deuses reconhecem que encadeou a seu pai que devorava a seus filhos injustamente, que, por sua vez, o pai deste mutilou ao seu, Urano, por coisas semelhantes”! Se os próprios deuses dos gregos faziam todas essas coisas, por que Eutífron, inspirando-se neles, não poderia fazer coisas semelhantes?
Ouvindo tal explicação, Sócrates lembra que justamente por não aceitar histórias como essas é que estava sendo processado: “Esta é, sem dúvida, ó Eutífron, a razão pela qual sou acusado, pois, se dizem tais coisas dos deuses, as recebo com desagrado, no que, segundo parece, afirmam que me engano”. E pergunta: “Mas dize-me agora, pelo deus da amizade, Zeus, acreditas que as coisas tenham acontecido tais quais são contadas?” E logo depois insiste: “Acreditas, por ventura, que entre os deuses ocorrem guerras, inimizades terríveis e combates, e muitas outras coisas do mesmo estilo, conforme nos contam os poetas (…)? Diremos, Eutífron, que tudo isso é verdade?” Este diz que sim e até se dispõe a contar outras histórias ainda mais “admiráveis” — o que Sócrates, claro, não duvidava e não quer ouvir.
Veremos nos próximos artigos o que fazia Sócrates com interlocutores como Eutífron que começavam afirmando sua grande sabedoria e, a contragosto, terminavam reconhecendo sua ignorância. Mas há algo que devemos notar. Sócrates foi processado por não reconhecer os deuses oficiais. Num sentido, isso era falso. Noutro, não, pois ele não podia aceitar que os deuses tivessem sido como os que a religiosidade tradicional descrevia. Assim, Sócrates, como seus predecessores e os filósofos posteriores, coincide em algo: queira ou não, o filósofo, em algum sentido, é um crítico acérrimo das tradições. A justiça que condenou Sócrates a morrer não é diferente da que, por motivos religiosos, torturou e matou tantos na época da Santa Inquisição e na das ditaduras latino-americanas. É bom não esquecer do que o fanatismo religioso e político é capaz…
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |