0

Isidore Okpewho: Heróis épicos e existentes incriados


Luís Kandjimbo |* Escritor


Tal como se depreende do ante-título e título do presente texto, a minha proposta de conversa tem como tópicos matérias pertinentes da Filosofia da Literatura e a figura de um dos mais importantes especialistas africanos das literaturas orais.

A problematização do tópico assenta em duas questões nucleares: 1) Existirá o género épico nas literaturas orais africanas?; 2) Qual o significado da existência de um tipo de herói épico que é existente incriado?
O que se segue é uma breve leitura dos esquemas argumentativos que sustentam as respostas às questões formuladas, pela mão de um desses especialistas africanos.

Nota biobibliográfica

Os meus primeiros contactos com a obra deste filho ilustre da Nigéria ocorreram há quatro décadas, através da leitura de artigos seus publicados em duas revistas pan-africanas, “Présence Africaine” e “African Literature Today”.
Em 1989, conheci-o pessoalmente e ouvi-o falar no congresso da “African Literature Association” (Associação de Literaturas Africanas) dos Estados Unidos da América, realizado em Dakar, Senegal. Trata-se do falecido professor Isidore Okpewho (1941-2016), na imagem. No campo académico, as referências genéricas a seu respeito reduzem o alcance da sua obra à Literatura Oral. Em semelhante avaliação, quanto a mim, faltará justiça epistémica, na medida em que os seus contributos ultrapassam os Estudos Literários. São seminais para a definição da Filosofia da Literatura Oral. De resto, o momento que assinala a ruptura da sua abordagem, dá-se quando observa que o estudo da epopeia africana nasceu de uma negação.

Isidore Okpewho nasceu em 1941 no Estado do Delta, Nigéria. Morreu aos 74 anos, em Setembro de 2016, no hospital de Binghamton, Nova York. Era licenciado em Estudos Clássicos com honras de primeira classe, pela Universidade de Ibadan, tendo obtido o Doutoramento em Literatura Comparada pela Universidade de Denver em 1976, Estados Unidos da América e um outro Doutoramento em Letras (D. Litt.) pela Universiade de Londres em 2000. Até à data da sua morte, exerceu a docência nas universidades de Buffalo e de Nova Iorque, de 1974 a 1976, Estados Unidos; Ibadan, de 1976 a 1990, Nigéria; de Harvard, de 1990 a 1991, e Binghamton, Estados Unidos. Foi presidente da Sociedade Internacional de Literaturas Orais Africanas (ISOLA). Mereceu várias distinções no seu país de origem e no estrangeiro, entre as quais a Ordem de Mérito Nacional em Humanidades da Nigéria, em 2010.

Na década de 80 do século passado, publicou três livros fundamentais para o debate sobre o género épico nas literaturas orais africanas: “The Epic in Africa: Toward a Poetics of the Oral Performance” (A Epopeia em África. Para uma Poética da Performance Oral,1979), sua tese de Doutoramento, “Myth in Africa: A Study of Its Aesthetic and Cultural Relevance” (O Mito em África. Para um Estudo da sua Relevância Estética e Cultural, 1983) e “African Oral Literature. Backgrounds, Character and Continuity” (Literaturas Orais Africanas.

Fundamentos, Natureza e Continuidade, 1992), “Blood on the Tides: The Ozidi Saga and Oral Epic Narratology” (Sangue nas Marés: A Saga de Ozidi e a Narratologia Épica Oral, 2014). Junta-se-lhes uma obra colectiva “The Oral Performance in Africa”, (A Performance Oral em África, 1990) de que é co-autor e editor. Com estes livros, Okpewho veio abalar a autoridade daqueles autores que negavam a existência do género épico em África, tais como C. M. Bowra (1952) e Ruth Finnegan (1970). Foi nessa década que a investigação e os estudos sobre as literaturas orais africanas realizaram avanços assinaláveis. Passaram a ser estudadas como “performance” e acontecimento, no dizer do ganense Kofi Anyidoho. Registou-se um aumento de encontros internacionais. Foram publicadas edições de revistas especializadas e estudos consagrados às tradições nacionais das literaturas orais africanas. As perspectivas etnográficas e antropológicas foram substituídas por abordagens que privilegiam a dimensão estética e literária.

O herói épico

A exclusiva classificação da epopeia, enquanto género literário, fundada nos modelos ocidentais, tem escassa audiência, presentemente. Durante o século XX, o continente africano forneceu provas suficientes que sustentam a desmistificação das teorias eurocêntricas, até aí dominantes. De tal modo que as pesquisas realizadas nos domínios dos estudos literários, antropológicos, filosóficos e hermenêuticos permitem identificar arquétipos transculturais da arte verbal oral que, numa perspectiva intercivilizacional comparada, atestam a existência do equivalente ao género literário épico ou epopeia.

Seguindo o pensamento de Isidore Okpewho, verificamos que, entre os recursos da epopeia oral, o retrato do herói épico ocupa um lugar central na análise que lhe consagra. No referido arquétipo transcultural identificam-se vários traços que caracterizam o herói: a) a mãe do herói é uma virgem; b) ele é considerado filho de um deus e o pai é um rei (ou deus); c) as circunstâncias da gravidez da mãe e sua concepção biológica são invulgares; d) no momento do seu nascimento, verifica-se uma tentativa de assassinato; e) é criado por uma família adoptiva em país distante; f) nada se sabe acerca da sua infância; g) ao atingir a idade adulta, regressa ou vai para o seu futuro reino; h) luta com um rei ou um monstro, um dragão ou uma fera selvagem e triunfa; i) casa-se com uma princesa, geralmente filha do seu predecessor e torna-se rei; j) reina sem interferências; l) perde o apoio dos deuses e seus súbditos; m) é afastado do trono e da cidade; n) morre misteriosamente, no cimo de uma colina ou numa caverna; o) seus filhos não lhe sucedem; p) seu corpo não é enterrado, mas tem uma ou mais sepulturas sagradas.
Ora, nem todos os heróis reunem os traços identitários enunciados.

Ciclos de epopeias africanas

Quando se lê a obra de I. Okpewho, percebe-se a profundidade da sua abordagem, na medida em que ambiciona uma perspectiva panafricana alargada, a da África Global. Recorrendo de modo complementar à geografia linguística e literária do continente, é possível reconhecer a existência de seis círculos épicos que correspondem às seis regiões de integração continental, incluindo as diásporas africanas. Por razões de economia ilustrativa, pode ser útil trazer apenas três exemplos de zonas com tipos de epopeias dominantes, nomeadamente, África Ocidental, África Central e África Austral.

Assim, temos o ciclo de epopeias históricas na África Ocidental, de que são exemplos a “Saga de Ozidi” da Nigéria, “Soundjata”, a epopeia mandinga, e “Kambili”, que celebra o nome do lendário Almamy Samori Touré, imperador Malinké que resistiu contra a presença europeia. Por outro lado, as epopeias míticas na África Central e epopeias corporativas na África Austral.
Angola inscreve-se no itinerário dos ciclos épicos míticos e corporativos da África Central e África Austral. Por essa razão, esses heróis preenchem as narrativas orais das diferentes comunidades étnicas angolanas. Em todo o caso, já aqui falei destas personagens autoexistentes, existentes incriados, gerados por si mesmos.

A afirmação da autoexistência sugere uma reflexão que Isidore Okpewho não aprofunda. Trata-se do debate sobre os existentes incriados e as variações do argumento ontológico sobre a existência de Deus. Em duas línguas nacionais, Nyaneka-Nkhumbi e Umbundu, o argumento sobre o existente incriado é formulado através dos actos de fala dos próprios heróis, nos seguintes termos: “Ndadia mo, ame Nambalisita, hisitilwe komunu, ame mwene ndelisita” (Saí do ovo, não fui gerado por ninguém, a mim mesmo me gerei); “Ame Kalitangi, nda litanga la Suku. Ndalicita ame mwele” (Eu sou Kalitangi, aquele que se confunde com Deus. Gerei-me a mim mesmo).

O mapa das epopeias mitológicas e do herói “gerado por si mesmo” abrange uma vasta área, povoada por povos Bantu. O ponto de origem situa-se na África Central, onde encontramos ciclos de heróis épicos dos Camarões como “Djekki-la-Njambé”, que fala ainda no ventre da mãe (Dwala); “Akomo Mba”, Gabão; “Mwindo”, o “pequeno-recém-nascido-que-já-andava-à-nascença”, o herói épico dos Nyanga, da República Democrática do Congo. E na África Austral a zona atravessa as comunidades étnicas do delta do Kavango, sudeste de Angola e nordeste da Namíbia, penetra o norte do Botswana e alcança as comunidades Benamukuni na Zâmbia e Sotho da África do Sul. Os nomes próprios atribuídos ao herói épico são por si só reveladores. Por exemplo: Nambalicita (Kuanyama), Mpambaicita (Ndonga), Sambilikita (Kwangali), Sambilia (Shambyu) Ciakova (Mbukushu). O seu significado traduz exactamente a ideia de ser autocriado, sendo o nascimento de um ovo uma das suas características mais marcantes.

Para Isidore Okpewho, o herói incriado representa o mais alto ideal a que uma sociedade pode aspirar, em busca da excelência e da segurança. Neste sentido, Okpewho acrescenta, “as epopeias nos mostram que um homem que se esforça, destacando-se da multidão, pode ultrapassar as limitações a que aquela multidão se sujeita, por força de interesses circunstanciais”.

Do ponto de vista moral, a avaliação de Okpewho confere alguma importância ao modelo de conduta desse herói, existente incriado, introduzindo assim um interessante tema de debate. Ele propõe a ideia segundo a qual é necessário indagar-nos acerca das certezas que exigem apenas uma argumentação baseada na possibilidade de existirem sujeitos que parecem inexistentes, tais como as personagens ficcionais. Dito por outras palavras: cultivar a possível crença na transformação benigna de nós mesmos, partindo de uma consciência colectiva endógena. Para comunidades que sentem as manifestações de uma erosão moral minoritária como a que agita actualmente os angolanos, o desafio consiste em compreender a dimensão ética e formativa deste tipo de personagens ficcionais da literatura oral angolana. Pois elas ainda aguardam por auditórios de verdadeiros ouvintes, leitores e intérpretes que tenham em conta a bondade do seu carácter para a edificação de uma nova sociedade.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 13/06/2021:
https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/herois-epicos-e-existentes-incriados/

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *