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A necessidade de uma utopia profética para pensar o Brasil

Este texto é um trecho do ensaio “A Utopia de Caetano Veloso e a filosofia no Brasil” publicado no livro Caetano e a Filosofia. Republico essa secção como homenagem ao filósofo português Eduardo Lourenço falecido há poucos dias.


Impressa tenho na alma larga história
Deste passado bem, que nunca fora;
Ou fora, e não passara: mas já agora
Em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devera ser lembrado,
Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente…

(Camões, Soneto XXIV)

A conferência que Caetano proferiu no Museu de Arte Contemporânea do Rio em 1993 começa com uma citação de Jorge Luis Borges[1], em que o escritor argentino fala sobre a dificuldade que tem seus compatriotas de se identificarem com o Estado, que surgiria como uma monstruosa abstração em um contexto no qual só se concebem relações pessoais. A reflexão de Borges, que soa aos ouvidos brasileiros como uma constatação comum, causa certo mal-estar e serve de mote para que o cantor-compositor se interrogue sobre o que pode significar essa diferença no modo de lidar com as relações entre público e privado para o projeto de construção de uma civilização brasileira. Caetano formula essa questão nos seguintes termos:

 em que medida podemos discriminar o que é, em nós, atraso, em relação, por exemplo, às conquistas americanas de direitos dos cidadãos do que é vantagem nossa por não termos aquela obsessão, que é uma obcecação, que os americanos têm de considerar passiveis de julgamentos públicos as mais intimas, nuançadas e sutis ações do âmbito privado? (Veloso, Caetano.,2005, p.45)

Caetano destaca o perigo de tomarmos como virtude nossas mais idiossincráticas vicissitudes, folclorizando nosso subdesenvolvimento, como uma espécie a ser preservada e cantada em seu modo de ser. Tomar a nossa desigualdade como algo “natural”, promovendo uma “consciência social brasileira”, que, como bem descreve o português Eduardo Lourenço, se afirma “numa paródia tropical de Hegel, a famosa dialética do senhor e do escravo” (Lourenço, Eduardo., 2001, p.139). Tal paródia, busca no índio e no negro a dimensão “originária” do país e sublima, num recalcado parricídio, seu passado português, celebrando um eterno “presente-futuro”. Como um moderno herói da mitologia dos quadrinhos, órfãos que engendram a si mesmos, repetimos a retórica de um “não-lugar” que deve ser inventado. Deste modo, diferentemente dos norte-americanos, para Lourenço nosso único modelo ideológico-político, preferimos “não ter passado, ser apenas esse futuro em que a realidade brasileira, hoje dividida entre uma miséria sem nome e um esplendor de fábula, se encontrará com um sonho digno da “grandeza do Brasil”.” (Lourenço, Eduardo., 2001, p.159)

Tomando o mote da questão racial e do paradoxal “equilíbrio de antagonismos”, que com cordial malandragem, sustenta desigualdades, Caetano percorre, a seu modo, o caminho descrito por Lourenço, pensando o país a partir da comparação com os norte-americanos. Porém, liga sua fala utópica com a mitológica celebração da saudade que faz parte do sebastianismo. Este resgate da esperança mística portuguesa, de um destino de grandeza, focaliza uma espécie de “trauma” interessante para ser analisado por uma possível psicanálise política (Ribeiro, Renato J., 2000, p.58). Lidar com este mito português da promessa de uma civilização que não se realizou em “consciência prosaica”, mas que nos deu o épico-lírico camoniano, em que o poeta pede que “Cesse tudo que a Musa antiga canta/ que outro valor maior se alevanta” (Lusíadas I,3). Tal “valor maior” que tomava vulto pelos descobrimentos ibéricos, torna as narrativas medievais deslocadas quixotescamente nestes novos horizontes em que dilataram “Fé e Coroa”. Os portugueses, com suas caravelas, enfrentaram os mitos e o ceticismo, fizeram do conhecimento científico ventura e valor, mas não palavra. Porém, descoberto o caminho do Novo Mundo (e de outros mundos), ausente a força para tornar poder sua originalidade, sobressaiu a maldição de todo Prometeu: a melancolia e a ressaca, a queda de sua própria fantasia de Império. Ficou, com o Lusíadas de Camões, o épico misturado com o lírico, na espera de uma redenção, que não poderia ser prosaica, como a da lógica do capital. Enfim, como sintoma deste pai ausente, nossa Utopia não supera o dilema quixotesco entre o que fantasia e as suas circunstâncias e, assim, não se faz projeto (diferentemente dos cantos de Walt Whitman).

Para além dos devaneios de transformação mágica, é necessário colocar a saudade no futuro, celebrando a vontade e a coragem para desenvolver projetos e superar frustrações, e não meramente sonhar. Na agenda de Caetano surgem três tópicos como prioridades para o país: “resolver o problema da distribuição de renda entre nós, de amadurecermos uma noção de cidadania, de elevar nosso nível de competência” (Veloso, Caetano. 2005, p.71). Trabalhando nesse sentido, minorada nossa disparidade social abissal, o compositor acredita no poder transformador de nossos jeitos de nos inventar. Isso apontaria para a exigência de construirmos uma civilização marcada pela originalidade, mais que pelo poder ou força.

A fala de Caetano se dá em um contexto que a torna mais pertinente e inusitada, já que contrastava com a decepção que o país vivia diante da “Era Collor” e do colapso mundial da esquerda, com a queda da União Soviética. A “nova ordem mundial”, anunciada pelo presidente George Bush (pai), prometia um período de paz, democracia e prosperidade. Acreditavam que, com a ausência do fantasma da Guerra Fria, entraríamos num período de hegemonia incontestável do capitalismo (ideólogos como Francis Fukuyama falavam em fim da história). Enfim, o espaço para a esperança em um futuro diferente parecia inexistente. A reorganização do poder global deixou regiões periféricas (os países do “terceiro mundo” e os antigos socialistas) entregues a sua própria vulnerabilidade: não houve esforço por parte dos países desenvolvidos para que a democratização produzisse algo como o welfare state do pós-guerra ou mesmo que trouxesse uma diminuição das desigualdades. Por isso o compositor baiano percebia que o Brasil estava fora dessa nova ordem. O estranhamento em relação a posição do Brasil nesse processo tornou-se questão para Caetano: “desde o momento em que o Bush pronunciou essa expressão nova ordem mundial eu imediatamente senti a tristeza de estar excluído dessa possível nova ordem mundial, e a grande alegria de não estar com ela comprometido, de não estar identificado com ela”. (Salles Jr., Walter &. Fonseca, J. Henrique,1992).

Caetano percebia o ambiente de desencanto e sentia a necessidade de reafirmar a importância de imaginação criativa, para superar a melancolia e a resignação prévia contra novas frustrações, o que, para ele, é uma marca psicológica de um país marcado por promessas de futuro nunca cumpridas (Veloso, Caetano, 1997, p.13).

Tal defesa da Utopia exige uma espécie de balanço com o passado, já que ela não se justifica em nenhuma forma de teleologia, mas a partir de uma vontade, que ser quer responsável. Como observa Tierry Paquot “a utopia, como o romance, só pode existir se o indivíduo se torna sujeito autônomo da história, mesmo quando sua ação visa à salvação do grupo ou da sociedade” (Paquot, Thierry., 1999, p.16). Tais palavras ganham eco na avaliação de Jurandir Freire Costa de que “o sujeito só se reconhece como sujeito quando pode dar uma descrição ideal de si, sem a qual não poderia julgar o que é”(Costa, Jurandir., 1994, p.54). Sem este projeto que oferece uma resposta para a interrogação sobre “o que queremos?”, a pergunta sobre “quem somos?” fica sem ninguém quem a assuma como própria. A interrogação de Caetano se dirige a um “nós”, tomando o povo brasileiro como sujeito que deve assumir seu lugar e criar seu destino, mas parte e toma forma em torno de um “eu”: o cantor ocupa o lugar de profeta que põe em cena e encena uma Utopia. Como observa Guilherme Wisnik na poética de Caetano “todas as afirmações são inegavelmente pessoais. No entanto, nenhuma delas é privada”(Wisnik, Guilherme., 2005, p.26). Por esta posição, a auto-análise de Caetano sobre a origem do impulso para formular suas narrativa ensaística pode parecer mais justificada:

o desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos da necessidade de contrastar com esse ambiente desencantado do que da responsabilidade de compensar minha própria participação na criação do sentimento de desencanto.(Veloso, Caetano, 2005. p.46) Para entender o peso desta afirmação é enriquecedor levar em consideração a forma como Caetano traduzia aquele momento do país em suas canções e também perguntar o que justifica que a fala desse compositor popular solicite uma posição tão relevante em nossa cultura


[1] A conferência de Caetano foi publicada parcialmente no jornal Folha de São Paulo, com o título “Utopia Z” e ressurgiu no livro O mundo não é chato em sua integra como “Diferentemente dos americanos do norte”. O primeiro título apontava para o que seria uma derradeira tentativa de Utopia, o segundo para algo que perpassa a reflexão do compositor baiano: a reafirmação da possibilidade de construção de uma civilização original no Novo Mundo, como o exemplo dos norte-americanos e, ao mesmo tempo, levando em conta as diferenças da sociedade brasileira.

Marcos Carvalho Lopes

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