ensaio de Severino Ngoenha, Eva Trindade, Giverage Amaral, Carlos Carvalho
Este “oximoro” é o título de um livro-manifesto, do escritor italiano Nuccio Ordine. Ele é ou parece absurdo, não só pelo seu anacronismo – pretender exaltar a utilidade do inútil – mas também por tentar mostrar, na época do triunfo do utilitarismo e do homo oeconomicus, o valor ilusório da posse e seu efeito destruidor sobre a dignitas hominis e sobre o amor e a verdade.
Como demonstrar, defender, provar a utilidade do inútil e a inutilidade do útil quando bens de consumo, não necessários, nos são vendidos como necessários e indispensáveis pelos mercantes do material e do espiritual?
Nenhum período da história foi mais utilitarista do que o nosso; nenhuma época foi tão devota ao útil como os nossos dias e, por causa disso, até priorizou programas de ensino, e até universitários que desvalorizam a cultura. Porque no mundo utilitarista, em que o neoliberalismo nos faz viver, aparece como útil só o que é ganho material.
Como defender uma investigação científica, livre de toda e qualquer obrigação utilitarista, e inspirada unicamente pela curiositas a qual, na esteira das teses de Abraham Flexner, até pode originar aplicações práticas – como foi o caso das telecomunicações e da electricidade – fundamentais para a humanidade?
Como sublinhar a importância vital de valores, que não é possível pesar com ajuda de instrumentos tradicionais regulamentados para avaliar só a quantitas e não a qualitas; ou investimentos sem retorno imediato e sobretudo não monetizáveis?
Quase tudo se compra, dos parlamentares aos juízes, do poder às consciências, cada coisa parece ter o seu preço. Mas o conhecimento (como o amor) é de uma outra natureza. Se não é resultado de um esforço e de uma íntima e potente motivação, não trará nenhum conhecimento verdadeiro e não comportará nenhuma metamorfose do espírito.
O verdadeiro conhecimento pode desafiar as leis do mercado ainda de uma outra maneira, eu posso partilhar os meus conhecimentos sem me empobrecer, aliás cada vez que o faço torno-me mais rico; como no amor autêntico e verdadeiro.
Hoje não é necessário convocar, como faz N. Ordine, eminentes figuras literárias como Dante, Petrarca, Bocaccio, di Lampedusa, Garcia Llorca, Charles Dickens, Eugen Ionesco, Ítalo Calvino; nem figuras filosóficas como Platão, Aristóteles, Kant, Montaigne, Heidegger (…). Com o chipunguana (covid), de repente, o “inútil” transmudou-se na única coisa que nos permite continuar a viver e a utilidade pecuniocrata desvaneceu no vazio da nossa existência materialista e utilitarista.
Os tempos do covid-19, obrigaram o neoliberalismo a uma husserliana epokê, e a colocar entre parêntesis o quantitas. As limusinas e os aviões passaram a ficar parqueados nas garagens e hangares, os El Patrons e os casinos fecharam, os Polanas, Cardosos e Avenidas, tal como sambistas velhos sem pernas, deixaram de poder evoluir na avenida; tudo isto se mostrava sem utilidade diante da vida que fugia.
De repente o inútil transmutava-se na única coisa útil e nos remetia à efemeridade da azáfama do ter. Até a polícia, desnorteada, se transmutava em ‘cultural polizei’, entregando-se a passos de dança e melodias para os confinados na Bélgica, México…
Na imperativa busca do sentido (do humano e da vida) os livros, a música, a conversa, a amizade, o amor demonstravam, preciosamente, ser a única coisa de utilidade para os directamente afectados, tomando a posição de primazia para a vida e para o seu sentido. A eudemonia passava a estar no lado do inútil…
bell hooks, grande figura da intelectualidade feminista afro-americana, no livro, Vivendo do Amor, defendeu, para os negros americanos, a necessidade de reaprenderem, não a amar, mas a demonstrarem abertamente os seus afectos.
Segundo hooks, a escravatura obrigou os negros a não se afeiçoarem pelas pessoas que amavam porque, como mercadorias, podiam ser vendidas, num ápice de tempo, a um novo dono, o que era de natureza a provocar vazios, frustrações (mortificações), dor. Eles aprenderam e transmitiram, como forma e condição de sobrevivência, até à geração post-escravatura, a não demonstrar afectos que podiam ser interpretados como manifestações de fraqueza. Entretanto a escravatura oficial terminou, mas os condicionamentos histórico-sociais perduraram e ainda hoje os afro-americanos continuam (quase patologicamente) com dificuldade de exteriorizar os seus sentimentos.
Na esteira dos jovens revolucionários de 1968, ela aparece a dizer: mais amor (não freudiano, feito de incestos, de assédios, de pedofilia) mas na sua gratuidade, que não se liga à libido, mas vai até ao sorriso inocente das crianças; mais demonstração de amor e menos violência; menos caras carrancudas e falsas indiferenças para com aqueles que amamos e dão sentido às nossas vidas e existências. A autora advoga a necessidade de mudança de atitude, a necessidade de demonstrar, manifestar, exteriorizar esses sentimentos transcendentalmente humanos.
Em Moçambique, quando ficámos independentes em 1975, éramos 8 milhões e falávamos de unidade, de camaradagem, do nosso povo e no amor à pátria e ao povo; hoje somos quase quatro vezes mais e o nosso léxico é dominado por vocábulos como rendas, lucro, dólar, boladas, e até decretámos que cada moçambicano tem de ser empreendedor.
Em 75 éramos pobres mas orgulhosos e com respeito por nós próprios, por integrarmos essa pequena mas enorme parte (outro oximoro) da humanidade que se assumiu moçambicana, e por isso , apesar da nossa pobreza, gozávamos do respeito dos outros. Hoje temos pedras preciosas, madeira, camarão, peixe, carvão, droga, mas… – quem se respeita?, quem nos respeita?
Contudo, e apesar das muitas guerras que padecemos a população de Moçambique cresceu, porque não obstante as nossas constantes e diferentes pragas, o amor, a vida sobrepõe-se a tudo, até às malárias, cóleras, sidas, secas, inundações, guerras bacteriológicas, sanções económicas, kenneths, idais, dívidas ocultas, e hoje o corona vírus.
As pessoas, nos lugares mais recônditos e nas situações mais desesperadas continuaram a procriar e a dar sentido às suas vidas, dando-se uns aos outros no amor. É isso que nos permite resistir e fazer sobreviver a vida, contra todos os malefícios da destruição de que a nossa história é palco – guerras, corrupção, calamidades naturais, fome, pandemias, pobreza, assassinatos económicos e sabotagens camaleonicamente políticas.
Se a nossa história de vida fosse aquilo que narram as televisões e os noticiários, já não existiriam moçambicanos, mas é o exacto contrário que acontece: eles continuam a multiplicar-se e a dar razão à vida.
Como diz Bocage, frequentar as musas, que ele identifica com mulheres em carne e osso, ajuda a viver melhor…
Os nossos criadores, esses ‘inúteis’, continuam a desenhar e a pintar; os escultores a transformar armas em flores (Fiel, Mabunda), os músicos, como Azagaia, a jurarem amor à dama, os Hortêncios Langas – cegos ao lixo e à desordem a cantar “Maputo o Chonguili demais”.
Até os bancos, dolarocráticos e utilitaristas por antonomásia, em frente dos balcões de juros e usura usam as suas vitrinas para expor arte sobre o amor.
Num dos mais recentes e prestigiosos templos de consumo da cidade de Maputo, o covid-19 obrigou muitas lojas a fecharem. A inutilitarista da Élia Gemusse organizou uma exposição em quatro lojas – tornadas inúteis porque desertadas pelo consumo – em dois andares, sobre os bilhetes de identidade artística dos ‘inúteis’ artistas plásticos moçambicanos dos anos 50 até aos anos 80. Como curadora/cicerone, ela explica professoral e profissionalmente as suas escolhas: o primeiro foi atribuído à Bertina Lopes (considerada por Malangatana como a mãe e o pai das artes plásticas moçambicanas), a fase das esculturas de Chissano onde as personagens aparecem sem ouvidos (para não ouvirem os rumores e as idiossincrasias da época, que ainda não eram tão cacofónicas como as dívidas ocultas, mas portavam outras surdezas) e, depois, a fase com as mãos a cobrir os olhos (para não verem as indignidades, a desumanização dos garimpos e dos transportes públicos, a gangsterização do estado…). Mas, o mais emblemático foram os dois quadros sem título, do sempre jovem Noel Langa. Eram sem nome porque, segundo o artista, os quadros não têm título mas histórias. E a história dos dois quadros, tecnicamente diferentes nas formas, era o amor, quase franciscano de um adolescente que enviado a tchopar passarinhos para o mudjonvelo, acabou fazendo amizade com um deles e por isso ficou sem coragem para matá-lo – o que demonstra a ‘inutilidade’ da amizade. O passarinho, consciente da necessidade do novo amigo, voou e trouxe-lhe fruta que ele levou para a nova dieta da família. Sem ser ecologista e ou ambientalista, Langa faz brotar na sua arte, as relações que o homem deveria estabelecer com o os outros seres e o seu habitat.
Como observou Ionesco, se não compreendemos a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não podemos compreender a arte.
Nós moçambicanos, talvez não estejamos a demonstrar convenientemente o nosso amor, por razões diferentes das de Bell Hooks. Os pobres (a maioria dentre nós) refilam, batem, violentam as pessoas que amam: casas onde falta pão e das quais a razão foge, o pai e ou a mãe ralham por não conseguir satisfazer os anseios dos filhos, e explicar a sua pobreza inexplicável, seja absoluta, relativa ou ambas ao mesmo tempo. A pobreza faz com que um quilo de arroz ou farinha tenha que durar dias, para incompreensão e sofrimento das crianças, que não entendem essas coisas de economia doméstica que leva as mães, no seu amor e preocupação a dar só um bocadinho em cada dia para o alimento durar mais tempo…
Do outro lado do xadrez estão as famílias dos pobres-ricos, dos que, coitadinhos, só têm – muito – dinheiro, e por isso, é o único amor que têm e que podem dar aos seus filhos. Então o amor dos pais se transmuta em coisas. E como os pais só tem coisas e não amor ‘inutil’ para dar, a relação transforma-se em presentes desproporcionais que engordam as crianças como se engordam os patos para fazer o foie gras, e muitos deles, por falta de amor dos país tornam-se viciados e recorrem ao álcool ou às drogas que os conduzem a piores formas de desvio social e até à delinquência.
O Oximoro do que vivemos em Cabo Delgado não tem precedentes na história recente de Moçambique. Nas cheias do Limpopo em 2000 nasceu a Rosita em cima de uma árvore – quantas outras crianças viram a luz em condições dramáticas nos Idais e Kenneths? Em Cabo Delgado, durante a actual situação, também já nasceram crianças em barquinhos de fortuna – em fuga – e até nos mangais. É um oximoro, porque as crianças continuam a nascer, e cada vez que nascem é a exaltação dessa coisa ‘inútil’ que é o amor e os seus carrascos são os caçadores das coisas úteis (rubis, madeiras preciosas, petróleo, gás) que não poupam esforços –tudo vale- e meios para os obter. O oximoro moçambicano consiste em que para além daqueles que vêm de fora, alguns de nós, no altar do útil sacrificam sem escrúpulos a vida do maior número.
O amor pelo dinheiro – totem e ídolo – pelo qual todos sofremos por nunca ser suficiente e nos satisfazer, torna-nos escravos dele e esclavagistas dos outros. Nesta degradação moral, em que na vida de cada um de nós a corrupção é o arbitro, já não há lugar para nenhuma forma de solidariedade, de comunidade. Haverá lugar no futuro para o Moçambique que sonhámos?
O paradoxo da história, é que sempre que o utilitarismo tem o vento de poupa, triunfam a barbárie e o fanatismo. Cabo Delgado, que parecia o nosso Eldorado, tornou-se o nosso inferno. Isto não seria possível sem o pecuniocratismo de alguns…
No meio de muitas incertezas e de conflitos de interpretações, como diria Paul Ricoeur, uma coisa é certa: se deixarmos padecer (morrer) o que é ‘inútil’ e gratuito, se escutarmos unicamente o chamamento do ganho e do lucro, nunca teremos uma colectividade (Moçambique) e com ela o sentido da vida e da própria realidade.
O nosso inferno já cá está: coexistimos infelizmente com ele. Existem duas maneiras de não sucumbir. A primeira é o meio onde evoluem os utilitaristas, que fogem ao inferno tornando-se parte dele, ao ponto de deixar de o perceber como espaço de danação. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e saber reconhecer quem é o quê, que no meio do inferno não é inferno, e apoiá-la para que dure e tenha respaldo.
Do tema do amor, ao tema da verdade existe só um passo que nos recorda o célebre mito de Eros de Platão. No Banquete, o filósofo é comparado ao amor, uma vez que os dois são condenados ao eterno movimento de contrários. A fábula do nascimento de Eros explica bem a comparação: durante a festa que celebra o nascimento da Afrodite, Poros, bêbado de néctar, une-se a Pénia (deusa da indigência); desta união nasce Eros, cujas qualidades, opostas às dos seus progenitores o destina a ter falta de tudo e a obter tudo, nem mortal, nem imortal, nem pobre, nem rico. Eros joga o papel de mediador e, nesse sentido, ele simboliza perfeitamente a condição do filósofo, sempre suspenso entre a ignorância e a sabedoria; situado entre os deuses, que não precisam de procurar a sabedoria porque já a possuem, e os ignorantes, que não a procuram porque pensam possuí-la. O verdadeiro filósofo, amante da sabedoria, tentará aproximar-se dela e persegui-la toda a sua vida.
É por isso que Platão, na República, queria que os governantes (filósofo-rei ou rei-filósofo) fossem imbuídos de um espírito filosófico: desinteressados da utilidade das coisas materiais e apegados à ‘inutilidade’ – socrática – do dia-logo(s), condição sine qua non da justiça e, com ela, da possibilidade da paz.
Severino Ngoenha, Eva Trindade, Giverage Amaral, Carlos Carvalho