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Alternativas, escolhas, dilemas

A história da filosofia parece se resumir ao processo de achar problemas, descobrir alternativas, fazer escolhas e se defrontar com dilemas

Gonçalo Armijos Palácios

Desde seu início, a filosofia é a história de escolhas. A escolha parece estar na essência mesma do problema. Com efeito, se observamos os primeiros filósofos ocidentais, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, vemos que o modo tipicamente ocidental de pensar filosoficamente consiste em encontrar um problema e decidir, entre várias opções, qual seria a solução do problema ou a escolha certa. Como sabemos, o primeiro problema filosófico de que temos notícia é o do princípio de todas as coisas. Os antigos gregos tinham concebido a água, o ar e o fogo como os elementos que constituíam as coisas e tinham que escolher, dentre eles, qual seria o elemento fundante. A escolha de Tales foi à água, talvez — como pensava Aristóteles — por ver que por trás de todas as coisas vivas havia umidade e todas elas só viviam na medida em que pudessem encontrar água. Anaximandro tinha a opção de concordar com Tales ou propor outro elemento. Ele não se decidiu nem por uma nem por outra coisa. Pensou que a natureza mesma de tal princípio estava em questão e que, sendo vários os elementos, a água não podia ser um princípio, por ser algo determinado. Assim, Anaximandro propõe o “indeterminado” — o “apeíron” — como o princípio de todas as coisas. Anaxímenes, por sua vez, tendo a possibilidade de escolher entre essas duas respostas, prefere negá-las e voltar a propor como princípio de todas as coisas um elemento determinado, mas distinto do proposto por Tales. Propõe, então, o ar. Na sua brilhante intuição, o ar explicava facilmente o passo de um elemento a outro por dilatação e contração. Assim, pensava Anaxímenes, quando comprimimos o ar o esfriamos. O frio extremo condensa o ar e o torna gelo. A ação do frio no ar, portanto, faz surgir o gelo, isto é, o elemento sólido. Quando sólido, o gelo se esquenta, se liquefaz, surgindo assim, por dilatação, a água. A água, sob a ação do calor, se evapora e surge, de novo, o ar, que, mais dilatado, é o fogo. Simplício explica assim essa teoria: “Anaxímenes de Mileto, filho de Eurístrates, companheiro de Anaximandro, afirma também que uma só é a natureza subjacente, e diz, como aquele, que é ilimitada, não porém indefinida, como aquele diz, mas definida, dizendo que ela é ar. Diferencia-se nas substâncias por rarefação e condensação. Rarefazendo-se, torna-se fogo; condensando-se, vento, depois, nuvem, e ainda mais, água, depois terra, depois pedras, e as demais coisas provêm destas”.

Gosto muito de trabalhar os primeiros filósofos gregos com meus alunos porque é fácil demonstrar como surge e quais são as características próprias da atitude filosófica: descoberta de um problema, percepção das alternativas para sua possível solução, escolha de uma delas e estruturação da solução. É interessante que Anaxímenes fora discípulo de Anaximandro que, por sua vez, teve Tales como mestre. Mas nisso irá consistir a filosofia, na descoberta de problemas e na tentativa de achar soluções. Alguns problemas são novos, outros não. Quando o problema é novo, o filósofo só tem a si mesmo — sua razão, isto é — como guia. Quando o problema já fora posto ou descoberto por outros, o pensador tem a possibilidade de se orientar pelas soluções que porventura já foram dadas. Mas, se é filósofo, com certeza tenderá a estrutura sua própria solução.

Desse modo, a filosofia é um diálogo interno, com nós mesmos, com nossos contemporâneos (como no caso de Anaximandro e Anaxímenes) ou com a tradição. Mas o belo exemplo dos filósofos gregos é que eles foram constituindo uma tradição muito especial: a do diálogo, do debate, da discordância.

Xenófanes, crítico de Homero, Hesíodo e de Tales, Anaximandro e Anaxímenes, tinha a escolha de seguir uma certa linha de pensamento próxima à daqueles, mas seus problemas foram outros. Foi um dos primeiros a pôr como problema à questão do conhecimento e, talvez, o primeiro a pensar os deuses como uma projeção da própria natureza humana. Decide, assim, não aceitar a imagem antropomórfica e politeísta da sua cultura, e propõe um deus impessoal e uno, no seu lugar. Mais uma escolha é feita, mais uma área da reflexão filosófica é constituída.

Quando chegamos aos filósofos gregos posteriores, vemos que alguns problemas se mantêm, mas aparecem outros. Uns postos de uma forma mais abstrata do que outros. Assim, a natureza das coisas já não é pensada de forma material ou física. Pensa-se pela essência de tudo o que existe e, aos poucos, introduz-se a questão do ser. Tudo o que é, a realidade, como um todo, como é? Qual sua natureza: material ou imaterial? No fundo, a natureza é só física ou é espiritual.

Estas questões levam os pensadores a conceber o ser humano como composto de algo físico e de algo espiritual. Essa união é concebida como um conflito que provoca questões éticas: devo viver obedecendo aos meus impulsos físicos, naturais, ou devo me inclinar pelo que meu espírito me indica? Um novo tipo de problema surge: o que tem a ver com a ação humana.

Passa-se, assim, dos problemas sobre a origem das coisas ao da natureza da ação humana, passando pela questão do conhecer e do ser.

Nessa maravilhosa história que é a do pensamento filosófico, o que vemos é o defrontar-se do homem com problemas que o levam às alternativas, às escolhas e à solução de seus intermináveis dilemas.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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