Luís Kandjimbo |*
Escritor
A epígrafe sugere que a nossa conversa inicie com algumas anotações acerca do interesse que o “Tratado” do filósofo do século XVIII vem suscitando.
O filósofo beninense Paulin Hountondji foi um dos poucos Africanos que, não sendo ghanense, na segunda metade da década de 60 do século XX, dedicou alguma atenção a Anton W. Amo Afro. Trata-se da comunicação que apresentou no seminário dirigido pelo filósofo francês Georges Canguilhem no Instituto de História das Ciências e Técnicas de Paris. Da obra de Anton W. Amo Afro, Hountondji limitou-se a comentar a tese de Doutoramento: “De Humanae Mentis Apatheia”, [A Ausência de sensações e da faculdade de sentir na alma humana]. Já o burkinabe Ypoka Somet publicou em 2007 um artigo na revista de Egiptologia e Civilizações Africanas-Ankh, sobre a vida e obra de Anton W. Amo Afro.
Chama a atenção para a questão que ele levanta a respeito da dúvida acerca da identidade africana do filósofo. Mas conclui que semelhante posição já não é hoje defensável. A este propósito o filósofo camaronês, Nsame Mbongo, entende que Amo foi “pioneiro na época moderna”. Pertence à “nobre estirpe de Africanos expatriados que não trairam a sua africanidade”. No decurso do ano passado, o francês Daniel Dauvois publicou igualmente mais um livro sobre o filósofo, “Anton Wilhelm Amo, Une philosophie de l’implicite” [Anton Wilhelm Amo. Uma filosofia do implícito], com a chancela das Edições Présence Africaine.
Influências e protocolos paratextuais
Quando o filósofo Amo Afro chegou à Universidade de Halle viviam-se aí igualmente as fortes influências das heterodoxias filosóficas de G. W. Leibniz e Christian Wolff. Tinha chegado àquela cidade quatro anos após a expulsão de Wolff e passou a defender uma antropologia filosófica anti-racial, aderindo por isso a algumas teses leibnizianas.
Nas notas biográficas que apresentei na conversa anterior, referi que em 1736 Anton W. Amo Afro ministrava seminários através dos quais submetia à crítica o princípio leibniziano da razão suficiente e as teorias do filósofo alemão Christian Wolff. Data dessa época a redacção da sua tese de habilitação para a docência. É um livro datado de 1738. Tal como os outros, originariamente escrito em latim, com o seguinte título: “Tractatus de Arte sobrie et Accurate Philosophandi” [Tratado sobre a arte de filosofar com simplicidade e precisão].
Obedecendo ao protocolo paratextual, o livro abre com dedicatórias ao Vice-Reitor da Universidade de Halle, Karl Gottlieb Knorre; ao professor e filósofo Johan Peter Henning von Ludewig, seu mestre, protector e conselheiro íntimo do rei da Prússia; ao professor de Direito Justus Henning Bohmer, da Universidade de Halle; ao professor de Medicina Friederich Hoffmann, seu mecenas, além de uma referência geral a outros doutores em Teologia e Humanidades, servidores da igreja luterana.
Destacam-se aí três dos mais altos representantes alemães dos domínios do saber em que Anton W. Amo Afro se formou, designadamente, Direito, Filosofia e Medicina.
Justus Henning Böhmer (1674-1749) foi um distinto jurista alemão e professor da Universidade de Halle. Promovido a professor associado da Universidade de Halle, em 1701, obteve o seu doutoramento em 1702. Condecorado pelo rei Frederico Guilherme I da Prússia em 1719, chegou a ser Director da Universidade de Halle, tendo sido professor titular adjunto da Faculdade de Direito. Distinguiu-se pela sua erudição e profunda religiosidade.
Friedrich Hoffmann nasceu em Halle (1660-1742). Era conhecido como “o segundo Hipócrates”. Foi um dos médicos mais lidos do século XVIII, devido às suas ideias sobre o modelo iatromecânico de medicina.
Doutorou-se em medicina pela Universidade de Jena em 1681 com uma dissertação sobre o suicídio. Exerceu medicina em vários consultórios médicos, após o abandono da actividade docente. Efectuou viagens académicas. Foi fundador da Escola de Medicina da Universidade de Halle e seu primeiro professor de medicina, em 1693, que se tornou uma das mais reputadas entre as universidades de língua alemã, na época. Em companhia de Georg Ernst Stahl, seu amigo e colega de faculdade dedicou-se à docência durante vinte anos. Apesar de sua admiração por Leibniz, Hoffmann atacava as suas doutrinas, em virtude de não ter sido comprovada a refutação do facto de a alma racional e o corpo terem a capacidade de produzirem efeitos um sobre o outro.
Johann Peter Ludewig (1668-1743) estudou Teologia em Wittenberg e Tübingen antes de frequentar a Universidade de Halle, onde obteve a habilitação para leccionar História e Filosofia. Em 1695, foi nomeado professor de Filosofia. Foi o orientador da dissertação de licenciatura de Amo Afer e profesor da Universidade de Halle até à sua morte.
Na última página dessa tese “De Humanae Mentis Apatheia”, [A Ausência de Sensações e da Faculdade de Sentir na Alma Humana], publica-se um texto assinado por Johann Gottfried Kraus, o reitor da Universidade de Wittenberg, através do qual são destacados os méritos e manifestado o cordial acolhimento ao brilhante filho de África que honra a memória de outros ilustres e notáveis Africanos, tais como Terêncio de Cartago, Apuleio de Madaura ou ainda Tertuliano, Cipriano e Santo Agostinho.
Estrutura e conteúdo
Não havendo espaço para fornecer uma síntese do livro “Tractatus de Arte sobrie et Accurate Philosophandi” [Tratado sobre a Arte de Filosofar com Simplicidade e Precisão], vou apenas fazer uma breve glosa, percorrendo a sua estrutura para que se tenha uma perspectiva da robustez intelectual do seu autor. O livro, muito bem escrito, estrutura-se em cinco partes, sendo uma parte geral e quatro partes especiais, todas divididas em capítulos e estes subdivididos em títulos. A parte geral comporta seis capítulos.
Dialogando efectivamente com o filósofo alemão G.W. Leibniz (1616-1716), autor do “Discurso de Metafísica”. Tematiza-se aí a intenção, seus diferentes aspectos e efeitos. Partindo do pressuposto segundo o qual Deus é a causa primeira de tudo que lhe é exterior, Amo Afro conclui que “todo o ser é antes de mais o efeito de uma intenção que alcança o seu fim”. Em seguida fornece duas provas. Com a primeira prova, Anton Wilhelm Amo sustenta o princípio de que, além de Deus, qualquer ser existe ou por si, por acaso, ou tem a sua origem dependente de um outro ser, considerado como a sua causa eficiente.
No entanto, considera que, exceptuando Deus, nada obtem o seu ser a partir de si mesmo: obter o ser a partir de si mesmo significa ser a causa eficiente de si mesmo. Isto permite pensar que um tal ser existe antes da sua causa eficiente. É perfeitamente um absurdo, conclui Amo. Como nenhum ser existe por acaso, propõe que se explique a origem das suas partes e propriedades constituintes.
Na segunda prova, debruça-se sobre os objectos do conhecimento: “nada” ou “ser”. Anton Wilhelm Amo afirma que “o nada é a ausência de uma coisa, dito por outras palavras, a sua não-existência”. Já o “ser é o que está concretamente presente em algum lugar”. O nada, acrescenta, não pode ser matéria de discussão, na medida em que não dispõe de qualquer atributo. Esta é a razão por que não pode ser conhecido, já que não se conhecem coisas a não ser pelas suas propriedades e atributos.
Por sua vez, o ser ou é actual ou racional. O primeiro pode manifestar-se como substância ou propriedade. Qualquer ser racional encontra na alma humana a sua causa eficiente: Deus e a alma humana são causa eficiente.
A partir do título V da primeira parte, Anton Wilhelm Amo cuida do “saber em geral”. Por conseguinte, sublinha que “a intenção de um sábio visa a apreensão das coisas inteligíveis em si”. A este respeito considera que tudo o que é cognoscível ou é coisa em si ou sensação ou ainda acção da alma. É por isso que defende a ideia segundo a qual “o saber é real se se tratar do conhecimento das coisas em si”.
Para Anton Wilhelm Amo existem quatro mais nobre domínios do saber: Teologia, Direito, Medicina e Filosofia.
A Filosofia é vista como resultado da acção do intelecto e da vontade. Por isso, tal como defende Anton Wilhelm Amo, a filosofia deve concentrar-se incessantemente sobre a coisa a conhecer. Se a verdade é o acordo do conhecimento e da coisa conhecida, acrescenta Amo, um conhecimento que não encontra fundamento na coisa conhecida é nulo. Neste sentido considera que o “princípio do conhecimento é efectivamente a coisa ela mesma”. Assim, “se as coisas mesmas estiverem ausentes, qualquer conhecimeno sobre elas é apenas provável, possível, simples opinião”. Portanto, no dizer de Amo, “todo o conhecimento filosófico deve ser, tanto quanto possível, certo, demonstrativo e real. Em síntese, “todo o conhecimento filosófico deve ser preciso e distinto”.
Finalmente, importa referir que a argumentação e as técnicas de convencer são tratadas na última parte do livro sob o seguinte subtítulo: 1) Convencer aqueles que persistem no erro; 2) A arte do debate.
Para os leitores que cultivam alguma curiosidade em matérias relacionadas com a lógica informal e a argumentação, o “Tractatus de Arte sobrie et Accurate Philosophandi” [Tratado sobre a Arte de Filosofar com Simplicidade e Precisão], conserva a sua utilidade prática no século XXI com as secções dedicadas aos silogismos, discursos, crítica e hermenêutica. Resta aguardar que os departamentos e cursos das faculdades de ciências sociais e humanidades do nosso País, bem como os editores universitários cuidem da publicação de traduções dos livros deste filósofo Africano do século XVIII, de tal modo que possa ser lido em Angola, em homenagem à memória secular do nosso continente.
Fonte: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/anton-w-amo-afro-e-o-tratado-sobre-a-arte-de-filosofar/ publicado em: 24/10/2021
Excelente ensaio sobre Amo.
Posso perceber que o filósofo leva-nos, enquanto humanos para uma dimensão metafísica.