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Como Kant leu Hume

Num sentido, filosofar é lutar contra as  convicções que nos incute a tradição

Gonçalo Armijos Palácios*

            É difícil pensar numa crítica da filosofia tão radical como a de Kant. Seus ataques se dirigiram ao que tradicionalmente se considerou a disciplina filosófica por excelência: a metafísica. A leitura que Kant fez dela, em poucas palavras, foi esta: não existe metafísica. Mais ainda:

Parece quase ridículo que cada ciência progrida sem cessar, enquanto que esta, que pretende ser a própria sabedoria, cujo oráculo cada homem consulta, continue girando num mesmo círculo, sem poder dar um passo adiante.[1]

            A metafísica, entendida como o estudo do ser, vai ser abandonada por Kant e no seu lugar será posto algo que nada terá a ver com o ser enquanto tal ou com as essências das coisas. Essa concepção clássica de metafísica, de ser o estudo do ser enquanto tal, abandonar-se-ia depois dos ataques do pensador alemão e nunca voltaria a ser seriamente proposta. Desafiador, Kant tinha perguntado poucas linhas antes sobre a antiga metafísica:

Se ela é uma ciência, como é que não obtém, como as outras ciências, aplauso unânime e duradouro? Se ela não é uma ciência, como explicar que se vanglorie incessantemente sob o brilho de uma ciência e iluda o entendimento humano com esperanças nunca saciadas e nunca realizadas? É necessário, portanto, chegar-se a uma conclusão segura a respeito da natureza desta pretensa ciência, quer isto demonstre saber ou ignorância, pois ela não pode permanecer por mais tempo no pé em que está. (Loc. cit.)

A conclusão à que Kant chegou, com efeito, foi que ela nunca mais poderia ser concebida como a ciência do ser enquanto tal ou das essências do real. Essa, que fora a pretensão principal da metafísica clássica, foi o alvo do ataque do pensador de Königsberg. E desse ataque, a metafísica nunca se recuperou. O que ocorreu foi uma mudança radical na própria compreensão do que seria a metafísica. Algo, no entanto, se conservou. Ela era concebida como a ciência que permitia um conhecimento fundamental: o da essência do real. Em Kant, ela passa a ser concebida como uma ciência fundamental, mas no sentido de indicar as bases, os alicerces, os fundamentos, isto é, que possibilitam o conhecimento científico.

            Kant sabia que sua ousadia iria provocar a reação da academia oficial e dos tradicionalistas:

Chegar a perguntar-se se uma ciência é possível, pressupõe que se duvide da realidade da mesma. Tal dúvida, porém, ofende a todos aqueles cuja riqueza consiste talvez justamente neste pretenso tesouro; assim se explica que aquele que deixa transparecer esta dúvida só encontre resistência à sua volta. Alguns, orgulhosamente cônscios de seus bens, adquiridos há muito tempo, e por isso mesmo considerados legítimos, irão, com seus compêndios metafísicos na mão, olhá-lo com desdém; outros, que nunca conseguem ver algo que não seja idêntico ao já visto em outra parte, não irão compreendê-lo; e tudo permanecerá assim durante algum tempo, como se nada houvesse ocorrido capaz de acarretar ou de fazer esperar uma transformação próxima. (Ibid., p. 102)

            Na filosofia, como na ciência, ocorrem esses períodos de transição provocados por obras, como a de Kant, revolucionárias. Algumas obras produzem mudanças mais imediatas, outras não. O pensador alemão pensava que a sua não iria ter uma aceitação rápida e fácil. Os Prolegômenos, com efeito, foram escritos para esclarecer o público sobre o que tinha proposto na Crítica da Razão Pura. Pelas resenhas que ela recebeu e as reações que provocou, Kant sabia que sua obra não teria acolhida. Isso, porém, não tirou Kant do seu empenho, que confiou que os Prolegômenos levariam o leitor a admitir

(…) que está prestes a acontecer uma reforma completa e inevitável, ou, mais ainda, um renascimento da metafísica segundo um plano até agora desconhecido, mesmo que se queira resistir a isto por algum tempo. (Loc. cit.)

            Nos Prolegômenos, Kant reconhece a dívida que tem com Hume. Foi o filósofo escocês, com sua crítica à noção de causa, que, em palavras do filósofo alemão, o tirou do seu “sonho dogmático”. Segundo Hume, nada há, numa relação causal entre A e B que objetivamente me deva levar a concluir que sempre que ocorra A deverá, necessariamente, ocorrer B. Segundo Hume, é o hábito de vermos sempre A seguido de B que nos leva a imaginar uma propriedade em A que cause B. Mas isso, diz Hume, é uma mera ilusão fruto do hábito que não tem base nos próprios objetos, pois, pensa o filósofo, nada há em A que cause B. Mesmo apesar de reconhecer que foi Hume que o tirou de seu sonho dogmático, Kant pensa que o filósofo escocês foi longe demais ao afirmar que a relação causal é fruto da nossa imaginação. Se isso fosse assim — pensava o filósofo de Königsberg — a ciência não existiria. Pois se a ciência — notadamente a física — está baseada no conceito de causa, ela não poderia atribuir necessidade e universalidade a suas leis, cuja forma é: sempre que ocorra A, necessariamente ocorrerá B.

            Voltemos, porém, ao nosso assunto. Kant tem uma determinada leitura da tradição. Ela, pensava o filósofo, tinha criado uma pretensa ciência, a metafísica, que sempre se vangloriou de permitir o acesso à essência das coisas. Desde Aristóteles, ou desde seu nascimento, nunca deu um passo. O fato decisivo para que ela possa, finalmente, elevar-se ao pedestal que merecia foi o ataque de Hume ao conceito de causa. Hume foi longe demais, por um lado, e ninguém o compreendeu, por outro:

Ele não trouxe luz a esta espécie de conhecimento, mas despertou uma centelha, na qual se poderia ter acendido uma luz, se ela tivesse encontrado uma mecha inflamável, cujo arder fosse cuidadosamente mantido e aumentado. (Loc. cit.)

Mas isso não ocorreu — não, pelo menos, até a chegada de Kant.

            É difícil o progresso nas ciências e na filosofia. Isso podemos inferir da leitura que Kant faz da tradição. A tradição se enraíza e, ao fazê-lo, alicerça os preconceitos em que as novas gerações erroneamente se baseiam. E mesmo quando se levantam vozes discordantes deste ou daquele pensador, não é fácil se abandonar antigas convicções. Por isso, filosofar é, num sentido, lutar contra as convicções que herdamos da tradição.


[1] Ibid., p. 101.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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